Segurança e eleições municipais: não dá para fugir do assunto
10/05/2024 | 20h11
Policiais da DRACO/IE no Centro do Rio.
Policiais da DRACO/IE no Centro do Rio. / Tomaz Silva/Agência Brasil
A segurança pública é apontada como um dos temas que mais preocupam os brasileiros. Como a inflação em décadas anteriores, a criminalidade violenta tende a ser percebida pela sociedade como uma espécie de monstro indomável. Se, na percepção generalizada, nem os governos federal e dos estados conseguem avançar nessa área, o que se poderia esperar dos municípios?
Até bem pouco tempo atrás, nos debates entre candidatos à prefeitura, quando o tema da segurança era colocado, os candidatos se limitavam a dizer que a questão tinha outra alçada e que no máximo as prefeituras poderiam melhorar a iluminação pública. Hoje não é mais assim: várias mudanças legais apontam para uma participação mais efetiva do município nessa seara. Pode não ser o ideal — na minha visão, a gente se distanciou dele ao longo do percurso —, mas há mudanças importantes.
No texto original da Constituição Cidadã, de 1988, a segurança pública foi definida genericamente como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, devendo ser “exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. As forças de segurança pública então definidas foram a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal (poucos sabem que existe) e, no âmbito estadual, as polícias civis, as militares e os bombeiros militares. Em 2019, a Emenda Constitucional 104 instituiu as polícias penais federal, estaduais e distrital. Aos municípios, que nos tocam de perto neste artigo, coube o direito de constituir guardas municipais, inicialmente destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, mas depois reconhecidas por leis e por interpretações do Supremo Tribunal Federal como pertencentes ao aparato mais geral da segurança pública.
Recapitulemos, brevemente, os avanços e recuos no debate e nas normas relativas à participação dos municípios nas políticas de segurança pública. O “Projeto Segurança Pública para o Brasil”, lançado no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apresentou propostas de reformas na área também na esfera municipal. Entre elas, previa-se a reorientação do pacto federativo, com a criação de um Sistema Único de Segurança Pública (Susp) ao qual os municípios seriam integrados. Previa-se uma reorganização institucional que incluía o âmbito municipal. Os guardas municipais adquiririam poder de polícia e atuariam seguindo um policiamento orientado à solução de problemas.
Mas boa parte dessas propostas não chegou a sair do papel — algumas ficaram paradas no Congresso Nacional ou foram completamente esvaziadas na versão aprovada. Parte dessas propostas foi retomada no segundo governo do presidente Lula. O governo conseguiu aprovar o Programa Nacional de Segurança Pública (Pronasci), em 2007 (Lei n.º 11.530/2007, alterada pela Lei n.º 11.707/2008), mas que não tinha o teor reformador do plano anterior, que previa alterações estruturais nas polícias e o fortalecimento das guardas municipais. Com vigência de cinco anos, o Pronasci foi um programa, e não um plano de reforma.
Foi o Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei n.º 13.022/2014) que atribuiu explicitamente às guardas municipais uma participação efetiva na segurança pública, onde deveria atuar de forma articulada com os demais órgãos que fazem parte do sistema. O Estatuto versa sobre a criação, o efetivo, a capacitação, as competências e o controle das guardas municipais. Isto foi ratificado em 2018 com a aprovação da lei de criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
A aprovação — ainda que tardia — da Lei n.º 13.675/2018, que criou o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), atribuiu novas responsabilidades aos municípios, de forma a equiparar seu papel ao da União, Estados e Distrito Federal como integrantes estratégicos (e não apenas coadjuvantes) do Sistema. No entanto, o sistema não foi implementado de fato no governo seguinte, do presidente Jair Bolsonaro. Esse tema volta à agenda no terceiro governo Lula: o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, defendeu recentemente a implementação do Susp nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas, até o momento, a implementação desse sistema de fato ainda não aconteceu, para além de algumas diretrizes.
Outra alteração que trouxe mudanças para os municípios foi a nova regulamentação, por meio da Lei n.º 13.756/2018, do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). A lei passou a permitir que os municípios tenham acesso aos recursos do Fundo desde que formulem seus próprios planos de segurança pública. A nova Lei suspendeu uma antiga exigência de instituição de guarda municipal para acesso ao fundo. Essa alteração buscou facilitar o acesso, principalmente dos pequenos municípios, aos recursos do Fundo.
Essas propostas de mudanças de papéis na segurança pública para os entes federados trazem desafios para os municípios. Nesse sentindo, qual a capacidade institucional de os municípios cumprirem esse papel e lidarem com problemas reais de segurança pública em seus territórios? Especificamente, o que dizer dos municípios do Rio de Janeiro e região Norte Fluminense?
Dados recentes mostram que 85,87% dos municípios do Rio de Janeiro tinham algum órgão responsável pela área de segurança pública, sendo que 35,87% afirmaram ter uma secretaria municipal exclusiva. O Rio de Janeiro é, no Brasil, o estado com maior percentual de municípios possuidores de guardas municipais, chegando a 85,9% dos municípios, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) de 2019. No entanto, somente 15,21% deles tinham plano de segurança pública e 10,8 % um fundo municipal de segurança pública.

Segundo os dados da Pnad de 2019, todos os municípios do Norte Fluminense possuem um órgão gestor (subordinado ou exclusivo) responsável pela área de segurança pública e criaram guardas municipais nos últimos anos. Os municípios da região parecem ter priorizado a criação de guardas municipais, que fazem o policiamento ostensivo.
No entanto, em pesquisa recente, em conjunto com o pesquisador Renato Dirk, verificamos que nenhum município do Norte Fluminense tem um plano municipal de segurança pública, ainda que em três deles (Campos, Quissamã e Macaé) haja registros da intenção de elaborá-lo. Na prática, significa que hoje estes municípios não podem solicitar recursos do FNSP, que seriam fundamentais para o desenvolvimento de programas e projetos voltados para a prevenção da violência e da criminalidade em suas cidades.
Embora o cenário não seja tão animador, já não é possível aos candidatos a prefeito e a vereador se esquivar de suas responsabilidades nessa área. As eleições estão às portas, e a sociedade tem o direito de saber como as forças políticas pensam em enfrentar, no nível local, esse problema tão agudo.

Patricia Burlamaqui é doutora em ciência política pela UFF, pós-doutoranda em Sociologia política pela UENF e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense INCT Observatório das Metrópoles.
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Os carrinhos no dia a dia de uma periferia: pensando as fronteiras entre o legal e o ilegal no fluxo da vida cotidiana
30/04/2024 | 21h31
Gustavo Smiderle /Núcleo Norte Fluminense, INCT Observatório das Metrópoles
Por um considerável período de tempo tive minha atenção e tempo direcionados para a região de Santa Rosa, em Guarus. Primeiramente em razão do trabalho, pois sou professora em uma escola da região, e depois pelo meu trabalho de campo para minha pesquisa de doutorado. E, dentre as peculiaridades locais, chamou minha atenção a circulação dos chamados carrinhos — isto é, carros particulares de transportes de pessoas, oficialmente classificados como clandestinos, mas que constituem expediente muito utilizado para facilitar a mobilidade e o acesso à cidade em face da precariedade que é o sistema de transporte público da cidade em geral e do território em particular.
Embora oficialmente essa modalidade de transporte seja irregular, há uma organização interna, dentro do próprio território, para viabilizar sua execução, incluindo um monitoramento exercido sobre o funcionamento interno — quem, quando e onde circular — e a fiscalização externa — como as blitze e as operações do IMTT (Instituto Municipal de Trânsito e Transportes). No contexto social específico, olhando de forma microssociológica, essas fronteiras entre o legal e o ilegal, o regulado e o clandestino — e, no limite, entre o lícito e o ilícito — são muito tênues. Nem sempre o que é declarado fora da norma (irregular, ilegal, fora da lei) é considerado ilegítimo pela coletividade.
No caso dos carrinhos, houve períodos de repressão aberta e outros de leniência, mas em tese a prática esteve sempre proibida. No entanto, as pessoas reconhecem certa legitimidade, devido principalmente a dois aspectos: (a) o transporte público oficial é insuficiente (quando não inteiramente ausente) para atender as demandas e as necessidades da população; (b) os condutores das lotadas estão trabalhando, e a repressão a sua atividade é percebida como a perseguição ao livre exercício do trabalho que põe o pão na mesa da família.
Como participante da sociabilidade local, eu mesma algumas vezes lancei mão desses meios para o desenvolvimento da minha pesquisa, dada a sua agilidade e também a possibilidade de obter informações sobre o bairro, pois o contato e o diálogo com motoristas e outros passageiros eram muito mais facilitados. Como se sabe, certos ambientes de interação são ótimos para a gente ter um termômetro da realidade ou do que as pessoas pensam a respeito dela.
Digo em termos concretos: um dos sinais de quebra da rotina na vida ordinária do bairro era a interferência no transporte, especialmente na circulação dos carrinhos. A ausência na circulação indicava que algo não ia bem. Para ilustrar, transcrevo um trecho do caderno de campo, registrado em 14 de março de 2016, em que pude observar essa questão:
Hoje, ao chegar ao Centro, percebi algo diferente: observei que não havia carrinhos e que o fluxo de van estava diminuído. De fato, o Centro pareceu mais ordenado, com um menor fluxo de pessoas em relação aos outros dias, especialmente para uma segunda-feira. Observei que havia dois guardas municipais na praça com seus blocos de multas. Deduzi que a ausência dos carrinhos se devia a este fato; no entanto, no fim do dia fui informada por Marilda (nome fictício) (...) que o motivo foi outro, a saber; ordem do tráfico para somente circular ônibus e vans. E ainda, estas últimas deveriam ir somente até o Ciep. No fim do dia, o fluxo já estava normalizado.
Embora eu não tenha conseguido confirmar a informação por outras fontes, conforme registrei no caderno de campo, ela também não se mostrou improcedente. Em muitas viagens houve relatos dos motoristas acerca das restrições no itinerário ou no horário de circulação dos carros, impostas por outrem ou pela própria recusa do motorista em ir a determinados lugares. Em regra, o ordenamento imposto à circulação desses transportes é obedecido, pois, conforme pude presenciar algumas vezes, por meio de discussões e/ou telefonemas acalorados, as quebras dos acordos não são toleradas. E, como ouvi de um motorista em uma das viagens em um carrinho, em maio de 2017, a proteção é “primeiro Deus, depois o revólver”.
Pensando de um ponto de vista puramente jurídico ou formal, por que os carrinhos seriam ilegais e deveriam ser combatidos enquanto as grandes plataformas de transporte por aplicativo agem de forma soberana? Alguém poderia dizer que as condições objetivas dos veículos seriam muito diferentes nos dois casos, uma vez que na prática grande parte das lotadas é praticada em carros velhos e de manutenção duvidosa. Mas esse não seria um argumento de verdade; se o fosse, um carrinho totalmente regularizado deveria ter reconhecido o direito à livre passagem em qualquer época, sob qualquer gestão municipal.
Também se pode dizer que o maior problema de certos ilegalismos não é a prática irregular propriamente dita, mas os esquemas de violência que se montam por de trás, como era o caso do Jogo do Bicho. Bem lembraram os autores do  artigo anterior dessa seção, os professores Wania Mesquita e David Maciel, que os conflitos surgidos em esquemas ilegais de atuação não podem ser processados via apelo à Justiça ou a algum órgão do gênero, mas acabam resolvidos na base de ameaças, espancamentos e até homicídios.
Não é exagero pronunciar uma má-fé institucional, em termos bourdieusianos, quando se verifica que o município como ente regulador não mobiliza os recursos necessários para prover aquele território, habitado por trabalhadores, dos meios necessários para sua mobilidade e acesso à cidade, e também não organize a circulação dos carrinhos, deixando esse ordenamento aos controles internos. Pois, considerando o número de indivíduos lá residentes, uma rápida observação dá conta da insuficiência do serviço, vista no tempo de espera nos pontos, na lotação dos ônibus e na condição de viagem dos passageiros. O fato é que, diante das precariedades produzidas pelas desigualdades sociais, vê-se no dia a dia as pessoas construindo estratégias para tornar viável o fluxo da vida ordinária e nesta tentativa vão operando (e negociando com) as estruturas sociais que lhes condicionam os comportamentos.

Ana Carla de Oliveira Pinheiro é doutora em Sociologia Política pela Uenf, pós-doutoranda em Sociologia e Direito pela UFF e professora de Sociologia da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro
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Ilegalismos em Campos: dinâmicas do tráfico na planície Goitacá
29/04/2024 | 21h15
Fuzis e munição aprendidos em paiol do tráfico de drogas no Rio de Janeiro
Fuzis e munição aprendidos em paiol do tráfico de drogas no Rio de Janeiro / Fernando Frazão/Agência Brasil
No mês de abril, em diferentes regiões do país, estudiosos da rede Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles estão debatendo com a sociedade, em artigos de opinião, o tema dos ilegalismos. A palavra vem da obra do filósofo Michel Foucault e traduz, em linhas gerais, transgressões à lei toleradas e praticadas por diferentes grupos sociais. Frequentemente, estudos que usam esse conceito têm como objeto o domínio do tráfico de drogas ou das milícias sobre certas porções do território. Teríamos esse problema em Campos dos Goytacazes?

Em um capítulo do recém-lançado livro “Desenvolvimento urbano e governança: para uma agenda do Norte Fluminense”, reunimos, junto com outros cinco pesquisadores(as) vinculados(as) à rede Observatório das Metrópoles, subsídios que permitem responder a essa pergunta. Além dos autores desse artigo, o capítulo é assinado por Juliana Blasi, Ana Carla Pinheiro, Vanessa Palagar, Patricia Burlamaqui e Renato Dirk. Primeiro, as milícias: estariam elas atuando na cidade como atuam em áreas do Rio de Janeiro e da Região Metropolitana?

Segundo o texto, “não há milícias em Campos”, pelo menos por ora. “Não existem hoje evidências robustas que apontem para um domínio territorial típico de grupos milicianos na planície campista”, afirmam os autores. “Há, sim, pistoleiros, justiceiros locais e grupos de extermínio; todavia não extorquem sistematicamente moradores e comerciantes, tampouco impõem o monopólio da compra de mercadorias essenciais (...)”. E quanto ao tráfico? Sobre isso, há dados fartos para subsidiar o debate. Para não reforçar estereótipos, vamos mencionar os locais e as pessoas usando nomes fictícios.

Reportando-se a um tempo em que não se falava em facções do crime em Campos, o capítulo cita como marco fundamental a chegada da cocaína em grandes quantidades, na década de 1980. Na ocasião, conviviam em relativa paz as quadrilhas do Abacateiro e do Limoeiro (nomes fictícios), à época separadas apenas por uma linha férrea, cada qual controlada por uma família. Mas havia dois pontos de conflito. Primeiro, o Abacateiro era “mais expansionista” — o que poderia levar a uma postura de disputa — e logo fez acordo com a família que dominava o tráfico em outro local da cidade, aqui referido como Castanheira (nome também fictício). O segundo ponto é que o Abacateiro tinha fama de mau pagador, encarnando o ditado campista nem fiado nem à vista. Uma vez que no mercado ilegal não é possível acionar o SPC, o Procon ou a Justiça, os acordos são muitas vezes garantidos “pelo puro e simples uso da força: ameaças, espancamentos, expropriações e, em último caso, assassinatos” (pág. 270). Diz o texto que, quando o fornecedor ia receber o pagamento, o pessoal do Abacateiro não pagava o valor total nem devolvia a mercadoria correspondente à diferença. “Não se sabe ao certo como, mas essa situação desembocou em um confronto armado entre o Limoeiro e a dupla Abacateiro/Castanheira”, conta o capítulo, registrando a vitória e o subsequente domínio desta.

A aliança vencedora durou pouco, e a cisão não teria ocorrido por disputas frias em torno de dinheiro ou de porções do território, mas sim por uma questão passional e de certo modo infantil. Uma moça que tinha sido namorada do gerente do tráfico no Abacateiro veio a se tornar namorada do gerente da Castanheira. Tudo corria normalmente até que o ex-namorado fez um comentário elogioso a sua ex: “Fala para o Diego” — nome fictício — “que essa mulher dele tá muito bonita. Se bobear, eu venho aqui e pego ela de novo para mim.” O gracejo chegou aos ouvidos do então companheiro da moça. O relato que se segue é instigante, mas em resumo o chefão do Abacateiro resolveu ir até a Castanheira, acompanhado de outro gerente (não envolvido com a confusão), para apaziguar a situação. Ao contrário, o que ocorreu foi o assassinato de ambos. “Enquanto Francisco e Joaquim” — nomes fictícios — “aguardavam na Castanheira para ser atendidos, resolveram ‘apertar um baseado’. Parece que, à época, fumar maconha em frente a crianças e moradores era considerado uma violação moral das leis do tráfico. Inconformados com mais um abuso de autoridade, os traficantes da Castanheira decidiram matar Francisco e seu gerente Joaquim. Cortaram os cadáveres na barriga para não flutuarem e os jogaram nas águas do Paraíba do Sul. Logo em seguida, rumaram armados para tomar o Abacateiro, mas não obtiveram sucesso.” (pág. 271). Desde então, o pessoal do Abacateiro jura vingança contra a Castanheira.

“Até os dias atuais, as relações de reconhecimento e oposição entre as quadrilhas se dão mais com base em com qual favela/família alguém é coligado (...) do que com a sigla de alguma facção”, afirma o texto, baseado em estudos anteriores. As facções Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigo dos Amigos (ADA) só teriam chegado a Campos depois, quando os chefes das quadrilhas campistas, presos e enviados a unidades do Grande Rio, precisaram se aliar a alguma das facções hegemônicas para sobreviverem. Assim nasceu a identificação do Abacateiro com a ADA e da Castanheira com o TCP, assim como o enquadramento praticamente automático de cidadãos de cada um desses locais à respectiva facção.

A dimensão territorial dessa disputa atingiu um “ponto de acomodação” — pelo menos na margem direita do Paraíba — mediante o estabelecimento do canal Campos-Macaé como divisa entre as áreas de cada facção. Ao leste da Beira-Valão, os pontos de venda de drogas ficariam nas mãos da Castanheira (leia-se TCP), enquanto ao oeste o domínio seria do Abacateiro (leia-se ADA). Mas no subdistrito de Jabuticabeira (outro nome fictício) esse equilíbrio tênue não foi atingido, e, segundo os estudos sobre o tema, sua ausência tem bastante a dizer sobre o índice de violência muito mais alto nesse subdistrito — em 2019, por exemplo (e o exemplo não é atípico), o índice de homicídios por 100 mil habitantes foi de 87,11 na delegacia que o tem como jurisdição e de 20,95 na da margem direita. “Na margem norte” (do Paraíba), “muitas vezes, uma quadrilha é separada da outra apenas por uma rua”, escrevem os autores, citando como exemplo um condomínio municipal de habitação popular dominado pela ADA. A região é por vezes referida como Faixa de Gaza, cercada de todos os lados por domínios do TCP.

Ao implementar o referido e conhecido programa habitacional municipal, que instalou conjuntos em diferentes pontos da cidade, a Prefeitura de Campos não atentou para essa dimensão territorial das quadrilhas do tráfico e permitiu que famílias de diferentes bairros e “pertenças” fossem reunidas em um mesmo espaço, gerando conflitos que o Estado ainda não se tem mostrado apto a processar. Esse é um ponto negativo sempre apontado pelos analistas dessa política pública, que, evidentemente, também teve seus méritos. Por isso se pode fazer uma pequena autocrítica ao título escolhido para o capítulo em questão, que é “O inesperado imbricamento entre moradia e tráfico de drogas em Campos”. A rigor, não há nada de inesperado nas consequências desse descuido trágico.

Wania Mesquita é doutora em Sociologia, professora associada do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (Lesce) da Uenf e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.

David Maciel de Mello Neto é doutor em Sociologia, professor associado do Laboratório de Gestão e Políticas Públicas (LGPP) da Uenf e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
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Participação cidadã e dinheiro público: o que aprendemos com o imbróglio da LOA em Campos?
01/04/2024 | 19h52
Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
A recente contenda entre o Legislativo e o Executivo de Campos dos Goytacazes sobre a Lei Orçamentária Municipal (LOA) para 2024 pode não ter sido o melhor exemplo de harmonia entre os poderes, mas trouxe um ganho: suscitou um debate intenso que foi além das questões técnicas para se tornar um fenômeno de participação popular. Geralmente os cidadãos não se interessam pelo tema do orçamento público, tantas vezes referido como “peça de ficção”. Mas a ameaça de paralisação de serviços públicos fundamentais -- mais comum nos Estados Unidos, onde é conhecida como “shutdown” -- mostrou uma face muito concreta da importância e urgência da participação.
Para usar uma expressão cara ao presidente da República, nunca antes na história de Campos dos Goytacazes se viu tamanha mobilização em torno da aprovação do orçamento municipal. A LOA, antes considerada por muitos um mero trâmite burocrático, tornou-se o epicentro de debates, manifestações e discussões nas redes sociais. A cidade experimentou um despertar para a importância do orçamento público em seu cotidiano.
O envolvimento de pessoas e entidades, embora inicialmente motivado por paixões políticas e interesses particulares, proporcionou uma oportunidade única de diálogo sobre um tema frequentemente distante do cidadão comum. A falta de compreensão sobre o funcionamento do orçamento público cedeu lugar a uma conscientização geral à medida que a população percebia as potenciais consequências de uma paralisação governamental.
O desfecho desse episódio em Campos trouxe à tona a importância do Ministério Público como mediador extrajudicial. Sua intervenção, motivada por preocupações relacionadas à tutela coletiva, evidencia o papel crucial que as instituições podem desempenhar na defesa do interesse público. Contudo, é imperativo destacar que a atuação do Ministério Público não deveria ser uma solução isolada. Essa experiência deve servir como uma lição aprendida para os cidadãos, demonstrando que o envolvimento direto nos assuntos públicos é importante para o funcionamento efetivo da democracia.
A participação popular pode representar uma ferramenta essencial para garantir uma gestão orçamentária participativa que possa ir além da polarização política e dos embates partidários. Esses eventos recentes podem inspirar a população a se envolver ativamente em todos os níveis de tomada de decisão, promovendo um acompanhamento mais efetivo das ações do governo, o que se potencializa neste ano eleitoral.
É verdade que a participação não é assunto simples, como percebem tanto os cidadãos comuns quanto os estudiosos do tema. Todos sabem que o ato de participar envolve custos -- de tempo, energia, paciência e até custos financeiros. Por isso, embora em geral se reconheça a importância da participação, é preciso pensar constantemente em mecanismos institucionalizados para favorecê-la e fortalecê-la, superando certos desafios estruturais. Um dos pontos específicos que podem ser melhorados diz respeito à ausência de diretrizes claras para a gestão orçamentária participativa.
O Estatuto da Cidade, promulgado pela Lei nº 10.257 em 2001, consagrou a gestão orçamentária participativa como condição indispensável, introduzindo a obrigatoriedade de realizar debates, audiências e consultas públicas como pré-requisitos para a aprovação de leis orçamentárias nas Câmaras Municipais. No entanto, a deficiência de coordenação federativa no Brasil, juntamente com a autonomia dada aos municípios, resulta em disparidades significativas na condução das audiências públicas. Esta situação, por sua vez, pode levar a inconsistências e desafios no próprio processo de gestão orçamentária.
Por isso, a participação popular e os desafios da gestão orçamentária municipal têm suscitado interesse como um tema importante de ser discutido pela cidade. A condução discricionária das audiências públicas, marcada pela ausência de diretrizes claras quanto aos responsáveis por sua organização, prazos adequados e a incorporação de propostas oriundas de diversos setores da sociedade, compromete tanto a efetividade da participação cidadã quanto a transparência administrativa. Há municípios que agendam as audiências em prazos exíguos, o que impede uma preparação efetiva por parte da sociedade civil. Essa carência de orientações precisas não apenas eleva os custos associados à gestão orçamentária participativa, como também restringe significativamente a influência do público no processo decisório.
Escassas, por demais, são as iniciativas de regulamentação do tema, da qual podemos citar como exemplo quase que único, a Nota Técnica nº 1/2023-DICAMI/SECEX, do Tribunal de Contas do Amazonas, que destaca a importância de realizar audiências tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo. No Executivo, visam enriquecer o planejamento estratégico do governo, enquanto no Legislativo integram-se ao debate e à aprovação das leis orçamentárias, colaborando com a transparência e participação. A normativa aborda prazos adequados, ampla divulgação e estrutura acessível para as audiências públicas. Contudo, lacunas persistem, especialmente no formato das propostas populares para o Orçamento.
Outro raro exemplo é o de Belo Horizonte, onde foram estabelecidos procedimentos legais para tratar sugestões populares, destacando a importância de boas práticas na gestão orçamentária participativa. Neste sentido, uma normativa nacional, abordando aspectos centrais das audiências, poderia garantir uma padronização mínima, impulsionando práticas eficazes nos municípios.
Durante a 22ª Conferência do Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP), em novembro do ano passado (2023), foi destacado o papel do Orçamento Participativo (OP) como ferramenta essencial cujas raízes remontam às gestões progressistas pós-redemocratização brasileira, notadamente as de Porto Alegre a partir de 1989. O êxito do OP brasileiro, legitimando a voz popular na alocação de recursos municipais, transcendeu fronteiras, sendo adotado em diversas cidades globais, como Paris e Barcelona. Hoje já se fala que o Brasil pode aprender sobre o OP com experiências do exterior, originariamente inspiradas em nós, mas de qualquer maneira a democracia brasileira contempla outras formas de participação, obrigatórias e discutidas em audiências públicas, que são as relacionadas ao Plano Plurianual (PPA), à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e à Lei Orçamentária Anual (LOA).
Seria um avanço significativo a implementação de uma normativa nacional que abordasse de forma abrangente os aspectos essenciais das audiências públicas e da incorporação das sugestões populares no orçamento público. Tal medida não só estabeleceria um guia claro para os municípios, como também promoveria práticas mais eficazes de participação orçamentária em todo o país. No entanto, se a normativa não vier de cima, nada nos impede de fazermos nós mesmos esse dever de casa.
Ao aprender com seus desafios orçamentários particulares, Campos pode se tornar um exemplo inspirador para outras cidades, demonstrando que a participação popular não é apenas um direito, mas uma ferramenta valiosa na difícil escolha da alocação de recursos para as políticas públicas prioritárias do município. Neste ano de eleições municipais, em que ouviremos muitas propostas e promessas de boas intenções, estariam os candidatos dispostos a assumir um compromisso formal com a regulamentação local da participação popular no processo orçamentário e com a implantação do Orçamento Participativo?
Nilo Azevedo é doutor em Sociologia Política e Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense “Darcy Ribeiro” (UENF)
Felipe Quintanilha é Pesquisador e doutorando em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense “Darcy Ribeiro” (UENF)
 
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Inundação em Santo Eduardo: a tragédia que tem história
27/03/2024 | 14h40
Campos dos Goytacazes
Campos dos Goytacazes / Foto: Lenilson Werneck
Os desastres no norte e noroeste fluminense apresentam uma dinâmica diferente do que ocorre em outras regiões do estado, onde há enxurradas e deslizamentos de terra marcados por mortes e às vezes perdas totais de residências. Não ter vítimas fatais, na maior parte dos casos, é uma dimensão positiva do norte e noroeste, favorecidos por aspectos físicos em seu relevo que tornaram possível a formação das cidades em áreas planas, em especial no norte fluminense. É o caso de Campos dos Goytacazes, que tem seu território constituído sobre uma extensa planície. Apesar disso, os desastres relacionados à água acumulam um histórico de tempestades, com alagamentos, inundações e vendavais, que vêm sendo acompanhados há anos pelo Núcleo de Pesquisas e Estudos Socioambientais (Nesa) da Universidade Federal Fluminense (UFF), parceiro do INCT Observatório das Metrópoles.

Apesar da baixa ocorrência de mortes, os dados revelam que as perdas e danos humanos são devastadores em diversas localidades da região, como Ururaí, Morro do Coco, Três Vendas, Santo Eduardo etc. Nas ciências humanas e sociais, os desastres desse tipo geralmente são compreendidos como desastres do cotidiano ou desastres invisibilizados, uma vez que a atenção da sociedade e do poder público geralmente ocorre apenas durante ou logo após o acontecimento trágico.

A tragédia em Santo Eduardo, que teve seu ápice entre os dias 22 e 23 de março de 2024, foi anunciada pelos órgãos federais e estaduais durante os dias anteriores de modo bem genérico para regiões de três estados do sudeste, entre eles o estado do Rio de Janeiro. Mas esse distrito do extremo norte de Campos, situado na divisa com o estado do Espírito Santo, apresenta um histórico expressivo de perdas, danos e demandas não atendidas que aprofundam os impactos das chuvas. O Observatório dos Desastres Ambientais do Norte Fluminense (ODAm), a partir de extensa pesquisa realizada na localidade entre 2020 e 2023, envolvendo levantamento de dados, aplicação de questionários e entrevistas com a população, mostra que houve inundações nos anos de 1975, 1985, 1997, 2005, 2006, 2009 e 2023.
Santo Eduardo corresponde, na divisão territorial do município, a um distrito específico. Sua sede, a cerca de 70 km do Centro de Campos, é a mais distante da área central. No levantamento do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da Prefeitura de Campos de 2018, foram computados 1.150 imóveis residenciais. No ano de 2022, em pesquisa realizada pelo NESA/UFF, foram entrevistadas 54 famílias (envolvendo 150 pessoas) da rua principal (considerada o centro local) e das áreas conhecidas como Departamento, Rua da Lama, São Sebastião e 69. Nessa pesquisa, a população reconheceu a relação entre as inundações e problemas como a falta ou insuficiência de infraestrutura de saneamento ambiental (esgoto, drenagem, destinação de resíduos sólidos), assoreamento do ribeirão Santo Eduardo, dentre outros, como as chuvas e vendavais extremos em curto espaço de tempo. Além disso, a comunidade atribuiu responsabilidades sobre a ocorrência dos desastres, em primeiro lugar, à ausência de atuação do poder público, em seguida às causas naturais e, em terceiro lugar, às ações da população local.
Os moradores entrevistados em 2022 também informaram que, em geral, não identificam a atuação de profissionais do poder público para busca de soluções relativas aos problemas estruturais das inundações. Quando essa atuação ocorre, os serviços são de caráter emergencial durante ou logo após as inundações, considerados insuficientes, restritos à doação de gêneros de primeira necessidade (que são importantes), limpeza e drenagem. Quanto aos danos vivenciados pelas famílias, as principais perdas com as inundações são de móveis, utensílios domésticos e veículos, assim como prejuízos nos imóveis – casas, estabelecimentos comerciais, propriedades etc. Também foram relatadas perdas de objetos afetivos, instrumentos de trabalho e documentos. Alguns respondentes informaram que a ocorrência das inundações provocou problemas de saúde física e/ou emocional nos membros das famílias.
As medidas efetivas para lidar com as decorrências das inundações já pesquisadas acabam ficando restritas ao âmbito da família e ao apoio de vizinhos e parentes, como pequenas obras e reparos na casa, edificação de muros, contenção no portão, construção em andar superior, escada etc.
Sobre a avaliação dos serviços públicos na localidade àquela época, a principal demanda da população entrevistada nas áreas de ocorrência de inundação foram os serviços de saneamento básico relacionados a esgoto, abastecimento de água, coleta de lixo e drenagem. Ações de limpeza urbana, como a manutenção das margens e fundo do ribeirão Santo Eduardo, que corta a localidade, também foram apresentadas como urgentes.
É preciso pontuar que, apesar das recorrentes perdas, a percepção sobre estar em uma área de risco é bem variada e polêmica. Há os que compreendem estarem em uma área de risco, enquanto outros não. Em geral, a alteração de percepção está relacionada com a proximidade de suas moradias ao ribeirão e situações pretéritas de inundações que tenham atingido as residências. Em ambos os casos, observa-se uma forte vinculação dos moradores a Santo Eduardo, os quais reivindicam condições de permanência no lugar em que cresceram, formaram laços de amizade, constituíram suas famílias e com o qual possuem grande identificação.
O que aconteceu nos anos anteriores está sendo evidenciado em maiores proporções na inundação deste penúltimo final de semana de março de 2024, ainda a ser estudada com maior detalhe. A magnitude dessa inundação recente realmente não parece ter precedente na história local, uma vez que atingiu praticamente toda a localidade, conforme observações que fizemos e segundo relatos dos próprios moradores. A água atingiu o teto de algumas residências e algumas pessoas foram resgatadas pelo telhado. Apesar disso, em várias entrevistas realizadas antes dessa última inundação, os residentes já relataram que se sentem abandonados pelo poder público, como registrado no documentário “Esquecidos”, elaborado entre 2020 e 2021, que pode ser conferido aqui.
A vinculação afetiva com Santo Eduardo aparece atravessada pelas reclamações dos moradores, que muitas vezes acabam recorrendo a outros municípios por não encontrarem no seu território os serviços necessários para atendimento de suas demandas. Santo Eduardo atualmente não conta com Núcleo de Proteção e Defesa Civil, desativado há mais de dez anos, tampouco com qualquer equipamento da assistência social. Vale lembrar que defesa civil e assistência social constituem políticas públicas primordiais para o atendimento em situações de desastres.
A população local tem um histórico de luta pelos bens coletivos desse espaço de vida e trabalho, onde quem saiu mantem vínculos com o lugar e os que moram querem permanecer. Que essa última tragédia, tanto pela sua magnitude como pelo histórico de suas origens, motive canais de diálogo e ação permanente entre moradores e governos para que haja a resolução dos problemas estruturais que intensificam as consequências dos desastres.


Antenora Siqueira é professora da UFF Campos, pesquisadora do PPGDAP e do Núcleo de Pesquisas e Estudos Socioambientais (NESA), coordena o ODAm-Observatório dos Desastres Ambientais

Adriana Dutra é professora da UFF Campos, pesquisadora do PPGPS e do Núcleo de Pesquisas e Estudos Socioambientais (NESA)

Érica Tavares é professora da UFF Campos, pesquisadora do PPGDAP, do Núcleo de Pesquisas e Estudos Socioambientais (NESA) e do INCT Observatório das Metrópoles
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O debate da mobilidade urbana em Campos dos Goytacazes para além das novas ciclofaixas
18/03/2024 | 21h07
 
Foto: IMTT Campos.
Ações no campo da mobilidade ocupam cada vez mais um papel central nas transformações urbanas experimentadas em diversas cidades ao redor do mundo. Grandes cidades, como Hamburgo, Copenhague, Estocolmo, Milão, Paris e Londres, por exemplo, já vêm empreendendo alterações consideráveis na forma de utilização de suas áreas centrais, onde há maior circulação de pessoas, comércio e serviços. Tais mudanças são o ponto de partida para promover uma cidade mais acessível, justa, igualitária, democrática, viva e sustentável, sobretudo em razão da necessária transição ecológica e da urgente descarbonização da mobilidade.

O debate atual, em geral, apresenta um ponto de partida trágico que é o modelo de mobilidade urbana prevalecente ao longo da constituição das cidades brasileiras no século XX. O planejamento dos sistemas de transporte sempre foi orientado pelo modelo rodoviarista, baseado na implementação de infraestrutura, no incentivo à indústria automobilística e no consumo de combustíveis fósseis.
Historicamente, no Brasil, o transporte se expandiu como contrapartida das soluções debilitadas de moradia, com a população sendo empurrada para espaços mais distantes das melhores infraestruturas, equipamentos e recursos. Nesse processo de periferização, a população se torna dependente de um sistema de transporte precário, insuficiente e inseguro para acessar os empregos concentrados nas áreas centrais. Assim, à medida que algumas famílias experimentam inserção no mercado de trabalho e aumento da renda, a solução sempre almejada para contornar os desafios de se locomover na cidade é a aquisição do carro particular ou, como tem ocorrido mais recentemente, optar pela solução mais barata que é a motocicleta.
Ambas as soluções são problemáticas para a boa utilização do espaço urbano.
Diante do caos instalado em boa parte das cidades, da insuficiência do transporte público escancarada pela pandemia e do cenário adverso das mudanças climáticas, esse modelo mostra claros sinais de que é insustentável.

Ações voltadas para a promoção da mobilidade urbana sustentável são fundamentais
Os problemas evidenciam a necessidade inadiável de medidas direcionadas para o rompimento do modelo rodoviarista e do privilégio assegurado ao transporte individual. No rol dessas soluções, estão ações que priorizem os transportes públicos coletivos e os meios ativos (bicicleta e caminhada), inclusive em cidades de porte médio, como Campos em Goytacazes. No atual contexto, caminhar nessa direção requer, obviamente, muito engajamento político, programas de sensibilização e mobilização coletiva. Portanto, para melhorar as condições de deslocamento e enfrentar os efeitos das mudanças climáticas sentidos diretamente pela população – como alagamentos, inundações, calor intenso –, a promoção da mobilidade urbana sustentável é fundamental.
Em que pesem as ações pontuais, dificuldades, incompletude do traçado, transtornos e questionamentos, a ampliação da malha cicloviária de Campos ganha ainda mais importância se for observada a partir desse contexto, especialmente ao considerarmos a característica geográfica de ser uma planície e todo o seu potencial para o deslocamento ativo. Até porque, é preciso ter foco na melhoria das condições de mobilidade urbana, de modo universalista, para atender a todos os grupos sociais e demandas populacionais, o que requer ponderação quanto aos previsíveis conflitos de interesses. Enquanto há questões urgentes e necessárias, discussões pontuais não podem ofuscar a importância inquestionável dessa política pública.
Sob essa ótica, é preciso estar atento aos princípios estabelecidos pela Lei Nacional de Mobilidade urbana (Lei nº 12.587/12), assim como, ao nível local, ao Plano de Mobilidade Urbana Sustentável (Lei Municipal nº 9.137/2022) e ao Plano Diretor de Campos dos Goytacazes (Lei Complementar Municipal nº 015/2020) – instrumento básico de planejamento urbano que exige a observância da função socioambiental da cidade e que reforça o quanto a mobilidade urbana está associada às diretrizes básicas para o uso e ocupação do solo urbano. Tais leis precisam, inclusive, ser interpretadas e implementadas em conformidade com o Estatuto da Cidade e o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Em termos normativos, as ciclofaixas devem atender aos critérios, métricas e condições estabelecidas nas resoluções vigentes, como as do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Assim sendo, uma discussão sobre ser maior ou menor não é o que mais importa. Por outro lado, aumentar os quilômetros de ciclofaixa é uma ação restrita se não dialogar com as reais demandas da população para a promoção de um bom uso do espaço livre público.
O discurso de que “tirar vaga de carro” diminui a circulação de consumidores também precisa ser visto com cuidado e a longo prazo. A princípio, é muito mais interessante ter um espaço público favorável para circulação de pedestres e ciclistas, numa escala que prioriza a dimensão humana, do que uma vaga de carro que fica ocupada por horas, muitas vezes para o deslocamento de uma pessoa que nem interage com os equipamentos e serviços disponíveis.
Diversas experiências no mundo mostraram que a implementação de ciclovias é boa para o comércio local. Estacionar um pouco mais distante do local exato de destino aumenta a caminhabilidade e, consequentemente, a circulação. Ou seja, é justamente o inverso. Pode não parecer bom, num primeiro momento, para um estabelecimento específico, mas para o coletivo dos estabelecimentos em áreas comerciais e para a economia da cidade como um todo, pode haver um impacto positivo a médio e longo prazo. Por isso precisamos mudar essa perspectiva, fugir do lugar comum e abrir as possibilidades para pensar que quem compra no comércio são as pessoas e não os carros.

A população precisa participar dos processos decisórios relativos à mobilidade
Valorizar as áreas centrais para o deslocamento por bicicleta em detrimento dos carros é importantíssimo e está alinhado ao que tem sido adotado em diversas parte do mundo, com relativo sucesso. No entanto, é também consenso que essas ações precisam vir acompanhadas de outras medidas, como aumento da oferta e da qualidade dos serviços de transporte público, segurança na estrutura viária e melhoria das condições de caminhabilidade nas calçadas, na ótica da acessibilidade para todas e todos.
Também é importante a promoção de campanhas de educação no trânsito e de sensibilização da população em torno dos efeitos positivos da ampliação da malha cicloviária. É imprescindível criar um ambiente colaborativo, onde a população se sinta parte do processo decisório, com o poder público garantindo o planejamento e a gestão urbana efetivamente participativos.
Neste sentido, cabe pensarmos que é o momento para reforçar a atuação do Conselho Municipal de Mobilidade Urbana, assim como integrar e articular as ações da Secretaria de Planejamento Urbano, Mobilidade e Meio Ambiente (SEMPUMMA) e do Instituto Municipal de Trânsito e Transporte (IMTT). Não podemos perder a chance de priorizar os modos de transporte menos poluentes, mais sustentáveis, mais acessíveis e os de caráter coletivo, como meio de concretizar o direito à cidade.
O cenário eleitoral torna ainda mais importante o debate local sobre os caminhos para a mobilidade urbana sustentável e inclusiva, considerando que a agenda em torno desse tema está na ordem do dia, em consonância com a Meta 11.2 do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 11 da Agenda 2030 da ONU que visa ao “acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis, sustentáveis e a preço acessível para todos”. Qualquer proposta de governo municipal precisa lidar com essas questões, não apenas as cidades metropolitanas, mas também as cidades em nível intermediário na hierarquia urbana que já apresentam questões sérias para serem enfrentadas em seus centros urbanos, como as cidades do Norte Fluminense.
Érica Tavares é professora da UFF Campos, pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do Núcleo de Estudos Socioambientais da UFF
Daniela Bogado é professora do IFF Campos e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do APPA/MobiRede
Juciano Rodrigues é pesquisador e membro do Comitê Gestor do INCT Observatório das Metrópoles. Professor colaborador no IPUUR/UFRJ e bolsista de pós-doutorado sênior da FAPERJ
 
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Desenvolvimento e futuro da região em debate no II Fórum Norte Fluminense
06/03/2024 | 15h16
Com a chegada do período eleitoral nos municípios, alguns eventos criam espaços para debater o atual curso e o futuro das cidades. Um deles está previsto para acontecer de 12 a 14 de março, na cidade de Macaé. Trata-se do II Fórum Norte Fluminense “Cooperação Intermunicipal e Capacidades Estatais: Desafios e Possibilidades para Ações Comuns” sediado no Pólo Universitário. O evento é organizado pelo Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles, que integra pesquisadores da UENF, UFF, IFF, UCAM e UFRJ. A atividade conta com apoio da FAPERJ e é realizada em parceria com a Subsecretaria de Educação de Macaé.

O II Fórum se inscreve no propósito que os diversos núcleos do INCT Observatório das Metrópoles formularam desde o começo de 2024, de incidir com ideias e reflexões surgidas das pesquisas científicas, para o desenvolvimento urbano das cidades, no marco das eleições municipais deste ano. Trata-se de uma iniciativa decisiva, inclusive por pautar as possibilidades de atuação concertada em âmbito intermunicipal, o que normalmente não entra espontaneamente no debate. Este próprio espaço cedido pela Folha da Manhã é outra dimensão do nosso esforço.
Nossa pretensão é ao mesmo tempo modesta e ambiciosa. Modesta porque não se arvora qualquer senso de superioridade sobre outras vozes presentes ao debate. Ambiciosa porque cultiva a expectativa de colocar no debate público, os achados de uma pesquisa em rede que dificilmente estariam à disposição do debate regional de outra maneira.
O olhar acadêmico ajuda a mapear os interesses em jogo, os conflitos estabelecidos ou latentes e os riscos associados a certas decisões coletivas. Dependendo da perspectiva teórica que embasa os estudos, a academia ajuda a dar visibilidade a atores simplesmente desconsiderados em suas demandas e até mesmo no seu direito de continuar existindo.
Tudo isso tem a ver com o caráter político da nossa atuação, que é explícito e não se confunde com militância partidária. É político porque atuamos sob certos pressupostos de universalização do direito à cidade, de fomento à cidadania, de fortalecimento de grupos sociais tradicionalmente subalternizados nos conflitos urbanos. Por outro lado, somos movidos por uma perspectiva plural dos pontos de vista teórico-metodológico e ideológico, reconhecendo a multiplicidade de visões cabíveis em qualquer questão (para além da diversidade dos interesses pura e simplesmente considerados).
Nesse sentido, o II Fórum aborda as diversas pontas e possibilidades do desenvolvimento da nossa região. Os debates previstos analisam os impactos da economia extrativista na sustentabilidade e dinâmica ambiental, nas capacidades dos municípios para implementar políticas urbanas inclusivas, a importância da transparência pública e a participação da sociedade civil nos diversos ciclos orçamentários e a possibilidade de cooperação entre os municípios da região. O evento é aberto para todos os setores da sociedade, isto é, ativistas, estudantes, agentes do poder público e cidadãos em geral.
Além do conjunto de debates, o evento terá o lançamento do livro “Desenvolvimento Urbana e Governança: Para uma agenda do Norte Fluminense”, e a apresentação do repositório de Bases de Dados regional para auxiliar na formulação das políticas públicas. Ambos os produtos foram realizados pelo Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles, através do projeto “Como se Governam as cidades? Os desafios institucionais para o desenvolvimento urbano do Estado do Rio de Janeiro, financiado pela Fundação de Amparo às Pesquisas no Rio de Janeiro, FAPERJ.
O modo de inserção do Norte Fluminense na economia nacional precisa ser pensado e debatido, ainda que a sociedade tenha limitado poder de interferência no processo. Em resumo, o atual padrão baseado em grandes empreendimentos (sobretudo petrolíferos, portuários e afins) tem tendência fortemente excludente, pois deixa fora das possibilidades de ganho amplos segmentos da população. Mais ainda, tende a aumentar a segregação socioespacial, levando a uma organização do espaço urbano estruturada em ilhas de prosperidade e bem-estar (das quais os condomínios horizontais de alto padrão são o emblema) cercadas por espaços dominados pela precariedade e muitas vezes por ilegalismos como o tráfico de drogas e as milícias.
Esse estado de coisas reflete, em grande medida, os dilemas mais amplos do nosso país, para quem “sobrou” esse padrão de crescimento econômico na divisão internacional do trabalho. Essa dimensão macro dos nossos problemas, que está na raiz da constituição da pesquisa em rede do INCT Observatório das Metrópoles, indica o quanto é difícil optar por caminhos diferentes, remando contra a maré; mas o reconhecimento do desafio não pode significar um conformismo e uma renúncia à prerrogativa de disputar narrativas e modelos de sociedade no espaço público.
Para dar exemplos próximos, a exploração e produção de petróleo na Bacia de Campos, a partir da década de 1970, foi uma decisão que ultrapassava o âmbito dos municípios da região, mas há testemunhos oculares de que a ida da base de operações da Petrobras para Macaé foi uma decisão política tomada em uma reunião da elite usineira campista. Quem mais participou desse debate? Que motivos levaram essa elite a rejeitar a presença da estatal? Outro exemplo: a implantação do Porto do Açu em São João da Barra se insere nessa já referida modalidade de inserção internacional do nosso país, mas se o poder público municipal não tivesse adequado sua lei de uso do solo, o empreendimento não teria sido viabilizado. Como foi tomada essa decisão? Houve debate? O empreendimento seria “bom para todo mundo”?
Será que vamos continuar apostando nossas tentativas de desenvolvimento regional em grandes empreendimentos como portos, refinarias e afins? O debate eleitoral será muito mais construtivo se conseguirmos pautar as questões e os dilemas que afligem a coletividade e assim superarmos a dimensão “paroquial” que tantas vezes reduz a disputa municipal a uma luta por hegemonia entre grupos descomprometidos com o interesse público.
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Como enfrentar os desafios da gestão democrática em São João da Barra? O caso do Porto do Açu
26/02/2024 | 20h57
Tânia Rêgo / Agência Brasil
Desde sua emergência, o planejamento urbano tem sido identificado como uma política pública onde o Estado (poder público federal, estadual e/ou municipal) é o principal ou o único agente responsável pelo ordenamento das cidades, mas com algumas mudanças de foco durante seu percurso. Nas décadas de 1930 a 1970, o planejamento foi entendido no Brasil como um instrumento de política higienista para controle de doenças infectocontagiosas.

Depois, nas décadas de 1970 e 1980, o planejamento foi utilizado para difundir o urbanismo tecnocrático-modernista, caracterizado por um paradigma replicável em qualquer cidade. Com a intensificação do crescimento populacional urbano, surgiram movimentos sociais que questionaram a ação do Estado e desse planejamento tecnocrático, exigindo que o poder público garantisse o direito à cidade à população de baixa renda. Nesse contexto, a Constituição de 1988 afirmou o princípio da participação social na elaboração de políticas públicas.
Contudo, a partir da década de 1990, a incapacidade financeira do Estado o levou a firmar parcerias com o empresariado para a promoção de projetos que associavam o planejamento com o empreendedorismo urbano. Nesse sentido, o planejamento das cidades deixou de ser tecnocrático para ser um processo explicitamente político do qual participam vários agentes sociais, com evidente assimetria de poder entre eles.
Assim, o planejamento moderno -- desenhado nos gabinetes da burocracia -- foi cedendo espaço para um planejamento competitivo e flexível, sendo orientado pelo e para o mercado. O Estado passou a aproveitar as oportunidades de negócios, apresentando as cidades como eficientes dos pontos de vista econômico, social e competitivo. Desse modo, os municípios são pensados para competir na atração de novos negócios, utilizando, para tanto, estratégias como a concessão de benefícios fiscais (isenção de impostos e taxas) e não fiscais (cessão de terrenos, por exemplo).
Uma importante conquista para a promoção da política urbana foi o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001), que instituiu o Plano Diretor municipal como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Esse plano é obrigatório para todos os municípios com mais de 20 mil habitantes, para aqueles que integrem regiões metropolitanas ou área de especial interesse turístico e para os inseridos na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental (regional ou nacional), como é o caso do Porto do Açu, em São João da Barra (RJ).
Em 1999, foram realizados estudos de batimetria na localidade do Açu (5º Distrito sanjoanense) para verificar a viabilidade da construção de um terminal oceânico. Inicialmente, o projeto seria uma parceria entre o poder público estadual, a Petrobras e empresas privadas. Contudo, a Petrobras e as demais instituições envolvidas desistiram de financiar o empreendimento, o que levou o governo estadual a autorizar que o projeto fosse entregue ao empresário Eike Batista. O porto assumiu uma nova configuração, denominada Maritime Industrial Development Areas (MIDAs), reunindo as condições para se transformar no Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu (Clipa).
Sua pedra fundamental foi lançada em 2006, e a construção começou em 2007, sob responsabilidade da LLX Açu Operações Portuárias S/A, hoje Prumo Logística Global, entrando em operação em 2014. Atualmente, o Clipa possui o quarto maior terminal de minério de ferro do Brasil, é responsável por 30% das exportações brasileiras de petróleo, tem o maior parque térmico da América Latina e abriga a maior base de apoio offshore do mundo.

Com a perspectiva da chegada do porto, o Plano Diretor do município passou por uma revisão em 2006. Até então, o plano anterior, de 1991, através de sua Lei Complementar de Uso e Ocupação do Solo (Luos), inseria a localidade do Açu em uma Zona de Expansão Urbana (ZEU–4), onde a faixa ocupada era classificada como Zona Residencial 2 e o entorno da Lagoa do Açu como Setor Especial 1. No novo plano, parte dessa área foi considerada Macrozona de Desenvolvimento Econômico (equivalente ao local para a instalação do Distrito Industrial de São João da Barra – DISJB), fronteiriça à Macrozona de Serviços e ao Setor de Interesse Ambiental. Em linhas gerais, o ordenamento urbano foi redesenhado para receber o porto e atender às demandas do empreendimento.
O Plano de 2006 começou a ser desenhado em 2004, e sua redação foi integralmente proposta por técnicos da hoje extinta Fenorte, que tinham conhecimento da região e do município sanjoanense, sendo financiado com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contudo, o diagnóstico realizado pela equipe da Fenorte não foi para a versão final, que se tornou a Lei Municipal Nº 050/2006, o que acabou servindo a interesses privados.

Essa lei passou por uma revisão em 2013. A proposta revisora foi coordenada pela Prefeitura e envolveu a Equipe Técnica Municipal (formada por profissionais da Prefeitura), a Comissão de Acompanhamento (formada por representantes da sociedade civil) e uma conhecida empresa de consultoria de Curitiba, contratada pelo município. Embora em 2006 a minuta dos técnicos não tenha sido integralmente aproveitada, é de se sublinhar que se tratava de profissionais familiarizados com a realidade local, o que não se deu em 2013.
Isso só veio afirmar o quão “empresarial” a cidade se tornou, ratificando o tipo de planejamento urbano que tem sido tendência nos municípios brasileiros. Nesse cenário, é possível afirmar que o planejamento socioespacial em São João da Barra, sujeito aos parâmetros do Estatuto da Cidade, teve uma evolução ao ampliar a participação cidadã, porém se deslocou para a lógica que exige das cidades flexibilidade e competitividade.
Além de o município receber royalties do petróleo e participações especiais, o Porto do Açu aumentou substancialmente as receitas municipais. Contudo, o caso sanjoanense reflete como um grande empreendimento reconfigurou a organização socioespacial da cidade por meio de planos que formalmente contemplam a igualdade de acesso à cidade, mas na prática continuam gerando desigualdades no uso e ocupação do solo, mesmo com o aumento nas receitas municipais. O que pôde ser verificado é que os processos de revisão do Plano Diretor visavam ao desenvolvimento urbano, mas a sua concretização ainda não foi totalmente efetivada. O porto ocasionou algumas mudanças positivas, porém estas não podem ser consideradas como medidas que trouxeram o desenvolvimento para o município.
Em pleno século XXI, o planejamento ainda enfrenta seus desafios e, muitas vezes, não se efetiva no ordenamento do espaço das cidades. Todavia, este não deve ser um motivo para desconsiderá-lo. Concomitante à gestão, o mesmo precisa a cada dia ser aprimorado para que os municípios alcancem o tão almejado desenvolvimento, que não chegará com o crescimento da economia local, mas sim com a eficaz participação dos cidadãos na vida política de suas cidades e a correta ação do poder público para melhorar a qualidade de vida da população e fazer crescer a justiça social, minimizando as segregações e garantido o pleno direito à cidade.
Diante do exposto, a próxima gestão pretende seguir essa receita de planejamento? Será que os candidatos às Eleições 2024 estão atentos às demandas urbanas? Qual modelo de planejamento e articulação com os grupos empresariais os candidatos apresentam em suas propostas? E, por fim, o que a população espera frente aos desafios que o planejamento enfrenta?
Raquel Chaffin Cezario é doutora em Sociologia Política, mestra em Políticas Sociais, bacharela e licenciada em Ciências Sociais. Atua como Articuladora de Políticas Públicas na Secretaria de Educação de São João da Barra e é Pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Norte Fluminense.
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Grandes investimentos acentuam as desigualdades
07/02/2024 | 12h12
 
Tânia Rêgo/Agência Brasil
Há mais de quatro décadas, os municípios do Norte Fluminense são conflagrados por grandes investimentos, que inserem a região na economia brasileira e internacional, mas são inócuos na promoção da inclusão e do desenvolvimento social. Apesar das expectativas que eles sempre mobilizam, o debate público em torno dos seus efeitos sobre a desigualdade e a segregação social -- balanceando custos e benefícios -- é ainda limitado.
Paralelamente ao declínio da agroindústria sucroalcooleira, uma busca por alternativas econômicas que pudessem reverter o cenário de pobreza instaurado povoou o imaginário coletivo de Campos e região. Desde que a base de operações da Petrobras foi instalada em Macaé, na década de 1970 -- refletindo, segundo alguns, uma rejeição da elite usineira a que sua implantação ocorresse em Campos --, a expectativa em torno da redenção econômica pela via de grandes investimentos tem sido alimentada junto à opinião pública local e regional. Quem não se lembra, por exemplo, da campanha “a refinaria é nossa”, que, no entanto, não pôde impedir aquele empreendimento (posteriormente reformulado) de ser direcionado a Itaboraí?
A despeito desse aparente revés, o Norte Fluminense tornou-se um ambiente propício para receber os chamados grandes investimentos (GI), como o do Porto do Açu, em São João da Barra. Em geral, os empreendimentos relacionados a esse conceito (GI) são conhecidos pela mobilização de grandes montantes de capital e pela transformação do uso dos solos. A expectativa associada a eles é a promoção de emprego, o crescimento econômico, a melhoria da qualidade de vida e o aquecimento do mercado local. O que poderia ser mais sedutor? No entanto, pouco se pondera acerca dos custos sociais associados.
A princípio, o empreendimento portuário serviria para o escoamento da produção de minério oriundo de Minas Gerais e transportado através do mineroduto com 525 km de extensão. Já nessa etapa a Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB) apontava irregularidades no processo de licenciamento ambiental, caracterizando-o como não convencional e excludente, pois a população local não teve condições de interferir no processo. No entanto, o projeto inicial foi ampliado e nesse movimento assumiu características estruturais típicas dos portos mais modernos, chamados de Maritime Industrial Development Areas (MIDAS). A nova configuração expandiu o projeto para além do porto, com retroárea industrial e possibilidade de atracação de navios maiores.
Uma das etapas mais marcantes da expansão foram as desapropriações através do decreto estadual n.º 41.584, para a instalação do Distrito Industrial de São João da Barra (DISJB). Estima-se que 1.500 famílias foram diretamente atingidas com a perda da posse de suas terras. Atualmente com área de 130km², incluindo a reserva ambiental, o empreendimento é maior do que 15 dos 92 municípios do estado do Rio de Janeiro.
A expansão do porto desencadeou conflitos e intensificou o debate em torno dos seus efeitos. Trabalho de Ana Almeida da Costa, desenvolvido em 2018, aponta que a execução do porto se fundamentou em três pilares: a) autoritarismo; b) expulsão imposta pelo Estado; c) deslocamentos forçados dos camponeses com uso de violência. Tais conflitos e uma série de irregularidades contribuíram para a crise no “Grupo X”, cujo proprietário era o Eike Batista, culminando na troca do controle do porto. A chegada dos novos donos estreitou a relação com a atividade petrolífera sob a justificativa do aumento na produção em virtude da exploração na camada pré-sal, fornecendo apoio logístico capaz de garantir a sua “fluidez”.
A implantação dos empreendimentos serviu para influenciar a configuração do quadro regional de empregos formais. Observando o Norte Fluminense, houve uma perda de 16,3% dos vínculos entre 2014 e 2021. No geral, os dados indicam que a região tem respectivamente em Macaé, Campos e São João da Barra os polos de indústrias extrativas, serviços e atividades portuárias. Do ponto de vista das desigualdades, na região configura-se um cenário onde os maiores salários estão concentrados nas atividades relacionadas à extração de recursos naturais, seja na indústria extrativa ou na logística.
Chama a atenção, especialmente no município de Campos, o crescimento da participação das atividades imobiliárias, atividades financeiras, informação e comunicação, serviços domésticos e administração pública. Isso indica que o município tem se consolidado como sede dos trabalhadores nas atividades de extração e logística. Uma das consequências da demanda por moradia em Campos é o aumento da pressão pelo uso do solo. No município também houve deslocamentos da população, como no caso do “Programa Morar Feliz”, realizado pela prefeitura sob justificativa de retirar as famílias de situação de risco, mas realocadas em áreas mais distantes do centro urbano.
A descoberta de novas reservas de petróleo e gás na camada do pré-sal, que elevou a posição brasileira entre os produtores mundiais, tem direcionado os novos investimentos a porções da Bacia de Santos. Os campeões das rendas petrolíferas (royalties mais participações especiais) já não são Campos e Macaé, mas sim Maricá, Niterói e Saquarema. Se em janeiro de 2013 a Bacia de Campos (BC) respondia por 74,7% da produção nacional, em novembro de 2023 sua participação já era de apenas 19,8%. Em termos absolutos, considerando as duas datas de referência, a produção na BC caiu a menos da metade (de 1,89 milhão para 930 mil barris por dia). Esse cenário pode ser um indicativo do futuro da região em relação aos royalties.
Do ponto de vista das finanças municipais de Campos, Macaé e São João da Barra, essa distribuição incentiva o debate acerca da dependência das transferências nas receitas das prefeituras, sobretudo em um cenário de queda no volume de recursos recebidos. Mais de um terço das receitas totais desses municípios (em média 38,1%) tinha origem nas transferências de royalties e participações especiais, enquanto as receitas próprias (como IPTU, ISS e ITBI) representavam 19,7% do total. Os dados são do portal FINBRA, Finanças do Brasil.
Longe de esgotar o debate, mas oferecendo breves considerações sobre a dinâmica da região, o cenário atual indica que a região tem forte dependência das atividades de extração, mesmo que com volume menor de recursos financeiros diretos. A atividade logística ganha destaque. Essa realidade traz o risco de os municípios investirem nela os seus recursos e assim promoverem novas rodadas de remoções e deslocamentos da população, consequentemente aprofundando a segregação e as desigualdades na região.
Não faltam vozes questionando e incentivando planejadores locais quanto à adequação dos municípios a iniciativas que possam fazer prevalecer o interesse público e não o privado, pelo bem do futuro da região.
Por enquanto ficamos na expectativa quanto às eleições municipais no final do ano. Será que os candidatos repetirão o discurso de desenvolvimento apoiados em empreendimentos desse mesmo tipo ou dessa vez estarão dispostos ao debate amplo com a população para enfrentar os velhos conflitos e desenhar novas alternativas?

Guilherme Vasconcelos Pereira é doutorando em Sociologia Política/UENF e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do Observatório das Metrópoles
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O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles é uma rede nacional de 18 Núcleos de Pesquisas e Programas de Ensino de Graduação e Pós-Graduação que analisa os desafios metropolitanos para o desenvolvimento nacional. Integrado por mais de 400 pesquisadores e professores de distintas universidades brasileiras, o INCT se propõe, nesse espaço, incidir sobre a agenda pública sobre os temas centrais do destino das cidades no marco das eleições municipais de 2024. Visando dialogar com amplos espectros sociais, nosso objetivo é transferir conhecimento e informação qualificada, decorrentes das nossas pesquisas, para definir um futuro inclusivo, sustentável e redistributivo das cidades brasileiras. O Núcleo Norte Fluminense (NNF) do INCT, responsável pelos artigos publicados neste espaço, é integrado por mais de 25 intelectuais de diversos Programas da UENF, UFF, IFF e UCAM em Campos dos Goytacazes. Nossa intenção é apresentar propostas e chaves para pensar o desenvolvimento econômico e social da nossa região.