Participação cidadã e dinheiro público: o que aprendemos com o imbróglio da LOA em Campos?
Nilo Azevedo e Felipe Quintanilha 01/04/2024 19:52 - Atualizado em 01/04/2024 19:55
Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
A recente contenda entre o Legislativo e o Executivo de Campos dos Goytacazes sobre a Lei Orçamentária Municipal (LOA) para 2024 pode não ter sido o melhor exemplo de harmonia entre os poderes, mas trouxe um ganho: suscitou um debate intenso que foi além das questões técnicas para se tornar um fenômeno de participação popular. Geralmente os cidadãos não se interessam pelo tema do orçamento público, tantas vezes referido como “peça de ficção”. Mas a ameaça de paralisação de serviços públicos fundamentais -- mais comum nos Estados Unidos, onde é conhecida como “shutdown” -- mostrou uma face muito concreta da importância e urgência da participação.
Para usar uma expressão cara ao presidente da República, nunca antes na história de Campos dos Goytacazes se viu tamanha mobilização em torno da aprovação do orçamento municipal. A LOA, antes considerada por muitos um mero trâmite burocrático, tornou-se o epicentro de debates, manifestações e discussões nas redes sociais. A cidade experimentou um despertar para a importância do orçamento público em seu cotidiano.
O envolvimento de pessoas e entidades, embora inicialmente motivado por paixões políticas e interesses particulares, proporcionou uma oportunidade única de diálogo sobre um tema frequentemente distante do cidadão comum. A falta de compreensão sobre o funcionamento do orçamento público cedeu lugar a uma conscientização geral à medida que a população percebia as potenciais consequências de uma paralisação governamental.
O desfecho desse episódio em Campos trouxe à tona a importância do Ministério Público como mediador extrajudicial. Sua intervenção, motivada por preocupações relacionadas à tutela coletiva, evidencia o papel crucial que as instituições podem desempenhar na defesa do interesse público. Contudo, é imperativo destacar que a atuação do Ministério Público não deveria ser uma solução isolada. Essa experiência deve servir como uma lição aprendida para os cidadãos, demonstrando que o envolvimento direto nos assuntos públicos é importante para o funcionamento efetivo da democracia.
A participação popular pode representar uma ferramenta essencial para garantir uma gestão orçamentária participativa que possa ir além da polarização política e dos embates partidários. Esses eventos recentes podem inspirar a população a se envolver ativamente em todos os níveis de tomada de decisão, promovendo um acompanhamento mais efetivo das ações do governo, o que se potencializa neste ano eleitoral.
É verdade que a participação não é assunto simples, como percebem tanto os cidadãos comuns quanto os estudiosos do tema. Todos sabem que o ato de participar envolve custos -- de tempo, energia, paciência e até custos financeiros. Por isso, embora em geral se reconheça a importância da participação, é preciso pensar constantemente em mecanismos institucionalizados para favorecê-la e fortalecê-la, superando certos desafios estruturais. Um dos pontos específicos que podem ser melhorados diz respeito à ausência de diretrizes claras para a gestão orçamentária participativa.
O Estatuto da Cidade, promulgado pela Lei nº 10.257 em 2001, consagrou a gestão orçamentária participativa como condição indispensável, introduzindo a obrigatoriedade de realizar debates, audiências e consultas públicas como pré-requisitos para a aprovação de leis orçamentárias nas Câmaras Municipais. No entanto, a deficiência de coordenação federativa no Brasil, juntamente com a autonomia dada aos municípios, resulta em disparidades significativas na condução das audiências públicas. Esta situação, por sua vez, pode levar a inconsistências e desafios no próprio processo de gestão orçamentária.
Por isso, a participação popular e os desafios da gestão orçamentária municipal têm suscitado interesse como um tema importante de ser discutido pela cidade. A condução discricionária das audiências públicas, marcada pela ausência de diretrizes claras quanto aos responsáveis por sua organização, prazos adequados e a incorporação de propostas oriundas de diversos setores da sociedade, compromete tanto a efetividade da participação cidadã quanto a transparência administrativa. Há municípios que agendam as audiências em prazos exíguos, o que impede uma preparação efetiva por parte da sociedade civil. Essa carência de orientações precisas não apenas eleva os custos associados à gestão orçamentária participativa, como também restringe significativamente a influência do público no processo decisório.
Escassas, por demais, são as iniciativas de regulamentação do tema, da qual podemos citar como exemplo quase que único, a Nota Técnica nº 1/2023-DICAMI/SECEX, do Tribunal de Contas do Amazonas, que destaca a importância de realizar audiências tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo. No Executivo, visam enriquecer o planejamento estratégico do governo, enquanto no Legislativo integram-se ao debate e à aprovação das leis orçamentárias, colaborando com a transparência e participação. A normativa aborda prazos adequados, ampla divulgação e estrutura acessível para as audiências públicas. Contudo, lacunas persistem, especialmente no formato das propostas populares para o Orçamento.
Outro raro exemplo é o de Belo Horizonte, onde foram estabelecidos procedimentos legais para tratar sugestões populares, destacando a importância de boas práticas na gestão orçamentária participativa. Neste sentido, uma normativa nacional, abordando aspectos centrais das audiências, poderia garantir uma padronização mínima, impulsionando práticas eficazes nos municípios.
Durante a 22ª Conferência do Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP), em novembro do ano passado (2023), foi destacado o papel do Orçamento Participativo (OP) como ferramenta essencial cujas raízes remontam às gestões progressistas pós-redemocratização brasileira, notadamente as de Porto Alegre a partir de 1989. O êxito do OP brasileiro, legitimando a voz popular na alocação de recursos municipais, transcendeu fronteiras, sendo adotado em diversas cidades globais, como Paris e Barcelona. Hoje já se fala que o Brasil pode aprender sobre o OP com experiências do exterior, originariamente inspiradas em nós, mas de qualquer maneira a democracia brasileira contempla outras formas de participação, obrigatórias e discutidas em audiências públicas, que são as relacionadas ao Plano Plurianual (PPA), à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e à Lei Orçamentária Anual (LOA).
Seria um avanço significativo a implementação de uma normativa nacional que abordasse de forma abrangente os aspectos essenciais das audiências públicas e da incorporação das sugestões populares no orçamento público. Tal medida não só estabeleceria um guia claro para os municípios, como também promoveria práticas mais eficazes de participação orçamentária em todo o país. No entanto, se a normativa não vier de cima, nada nos impede de fazermos nós mesmos esse dever de casa.
Ao aprender com seus desafios orçamentários particulares, Campos pode se tornar um exemplo inspirador para outras cidades, demonstrando que a participação popular não é apenas um direito, mas uma ferramenta valiosa na difícil escolha da alocação de recursos para as políticas públicas prioritárias do município. Neste ano de eleições municipais, em que ouviremos muitas propostas e promessas de boas intenções, estariam os candidatos dispostos a assumir um compromisso formal com a regulamentação local da participação popular no processo orçamentário e com a implantação do Orçamento Participativo?
Nilo Azevedo é doutor em Sociologia Política e Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense “Darcy Ribeiro” (UENF)
Felipe Quintanilha é Pesquisador e doutorando em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense “Darcy Ribeiro” (UENF)
 

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