Patricia Burlamaqui
- Atualizado em 10/05/2024 20:11
A segurança pública é apontada como um dos temas que mais preocupam os brasileiros. Como a inflação em décadas anteriores, a criminalidade violenta tende a ser percebida pela sociedade como uma espécie de monstro indomável. Se, na percepção generalizada, nem os governos federal e dos estados conseguem avançar nessa área, o que se poderia esperar dos municípios?
Até bem pouco tempo atrás, nos debates entre candidatos à prefeitura, quando o tema da segurança era colocado, os candidatos se limitavam a dizer que a questão tinha outra alçada e que no máximo as prefeituras poderiam melhorar a iluminação pública. Hoje não é mais assim: várias mudanças legais apontam para uma participação mais efetiva do município nessa seara. Pode não ser o ideal — na minha visão, a gente se distanciou dele ao longo do percurso —, mas há mudanças importantes.
No texto original da Constituição Cidadã, de 1988, a segurança pública foi definida genericamente como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, devendo ser “exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. As forças de segurança pública então definidas foram a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal (poucos sabem que existe) e, no âmbito estadual, as polícias civis, as militares e os bombeiros militares. Em 2019, a Emenda Constitucional 104 instituiu as polícias penais federal, estaduais e distrital. Aos municípios, que nos tocam de perto neste artigo, coube o direito de constituir guardas municipais, inicialmente destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, mas depois reconhecidas por leis e por interpretações do Supremo Tribunal Federal como pertencentes ao aparato mais geral da segurança pública.
Recapitulemos, brevemente, os avanços e recuos no debate e nas normas relativas à participação dos municípios nas políticas de segurança pública. O “Projeto Segurança Pública para o Brasil”, lançado no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apresentou propostas de reformas na área também na esfera municipal. Entre elas, previa-se a reorientação do pacto federativo, com a criação de um Sistema Único de Segurança Pública (Susp) ao qual os municípios seriam integrados. Previa-se uma reorganização institucional que incluía o âmbito municipal. Os guardas municipais adquiririam poder de polícia e atuariam seguindo um policiamento orientado à solução de problemas.
Mas boa parte dessas propostas não chegou a sair do papel — algumas ficaram paradas no Congresso Nacional ou foram completamente esvaziadas na versão aprovada. Parte dessas propostas foi retomada no segundo governo do presidente Lula. O governo conseguiu aprovar o Programa Nacional de Segurança Pública (Pronasci), em 2007 (Lei n.º 11.530/2007, alterada pela Lei n.º 11.707/2008), mas que não tinha o teor reformador do plano anterior, que previa alterações estruturais nas polícias e o fortalecimento das guardas municipais. Com vigência de cinco anos, o Pronasci foi um programa, e não um plano de reforma.
Foi o Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei n.º 13.022/2014) que atribuiu explicitamente às guardas municipais uma participação efetiva na segurança pública, onde deveria atuar de forma articulada com os demais órgãos que fazem parte do sistema. O Estatuto versa sobre a criação, o efetivo, a capacitação, as competências e o controle das guardas municipais. Isto foi ratificado em 2018 com a aprovação da lei de criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
A aprovação — ainda que tardia — da Lei n.º 13.675/2018, que criou o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), atribuiu novas responsabilidades aos municípios, de forma a equiparar seu papel ao da União, Estados e Distrito Federal como integrantes estratégicos (e não apenas coadjuvantes) do Sistema. No entanto, o sistema não foi implementado de fato no governo seguinte, do presidente Jair Bolsonaro. Esse tema volta à agenda no terceiro governo Lula: o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, defendeu recentemente a implementação do Susp nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas, até o momento, a implementação desse sistema de fato ainda não aconteceu, para além de algumas diretrizes.
Outra alteração que trouxe mudanças para os municípios foi a nova regulamentação, por meio da Lei n.º 13.756/2018, do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). A lei passou a permitir que os municípios tenham acesso aos recursos do Fundo desde que formulem seus próprios planos de segurança pública. A nova Lei suspendeu uma antiga exigência de instituição de guarda municipal para acesso ao fundo. Essa alteração buscou facilitar o acesso, principalmente dos pequenos municípios, aos recursos do Fundo. Essas propostas de mudanças de papéis na segurança pública para os entes federados trazem desafios para os municípios. Nesse sentindo, qual a capacidade institucional de os municípios cumprirem esse papel e lidarem com problemas reais de segurança pública em seus territórios? Especificamente, o que dizer dos municípios do Rio de Janeiro e região Norte Fluminense?
Dados recentes mostram que 85,87% dos municípios do Rio de Janeiro tinham algum órgão responsável pela área de segurança pública, sendo que 35,87% afirmaram ter uma secretaria municipal exclusiva. O Rio de Janeiro é, no Brasil, o estado com maior percentual de municípios possuidores de guardas municipais, chegando a 85,9% dos municípios, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) de 2019. No entanto, somente 15,21% deles tinham plano de segurança pública e 10,8 % um fundo municipal de segurança pública.
Segundo os dados da Pnad de 2019, todos os municípios do Norte Fluminense possuem um órgão gestor (subordinado ou exclusivo) responsável pela área de segurança pública e criaram guardas municipais nos últimos anos. Os municípios da região parecem ter priorizado a criação de guardas municipais, que fazem o policiamento ostensivo.
No entanto, em pesquisa recente, em conjunto com o pesquisador Renato Dirk, verificamos que nenhum município do Norte Fluminense tem um plano municipal de segurança pública, ainda que em três deles (Campos, Quissamã e Macaé) haja registros da intenção de elaborá-lo. Na prática, significa que hoje estes municípios não podem solicitar recursos do FNSP, que seriam fundamentais para o desenvolvimento de programas e projetos voltados para a prevenção da violência e da criminalidade em suas cidades.
Embora o cenário não seja tão animador, já não é possível aos candidatos a prefeito e a vereador se esquivar de suas responsabilidades nessa área. As eleições estão às portas, e a sociedade tem o direito de saber como as forças políticas pensam em enfrentar, no nível local, esse problema tão agudo.
Patricia Burlamaqui é doutora em ciência política pela UFF, pós-doutoranda em Sociologia política pela UENF e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense INCT Observatório das Metrópoles.
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