Como enfrentar os desafios da gestão democrática em São João da Barra? O caso do Porto do Açu
Raquel Chaffin Cezario 26/02/2024 20:57 - Atualizado em 26/02/2024 21:09
Tânia Rêgo / Agência Brasil
Desde sua emergência, o planejamento urbano tem sido identificado como uma política pública onde o Estado (poder público federal, estadual e/ou municipal) é o principal ou o único agente responsável pelo ordenamento das cidades, mas com algumas mudanças de foco durante seu percurso. Nas décadas de 1930 a 1970, o planejamento foi entendido no Brasil como um instrumento de política higienista para controle de doenças infectocontagiosas.

Depois, nas décadas de 1970 e 1980, o planejamento foi utilizado para difundir o urbanismo tecnocrático-modernista, caracterizado por um paradigma replicável em qualquer cidade. Com a intensificação do crescimento populacional urbano, surgiram movimentos sociais que questionaram a ação do Estado e desse planejamento tecnocrático, exigindo que o poder público garantisse o direito à cidade à população de baixa renda. Nesse contexto, a Constituição de 1988 afirmou o princípio da participação social na elaboração de políticas públicas.
Contudo, a partir da década de 1990, a incapacidade financeira do Estado o levou a firmar parcerias com o empresariado para a promoção de projetos que associavam o planejamento com o empreendedorismo urbano. Nesse sentido, o planejamento das cidades deixou de ser tecnocrático para ser um processo explicitamente político do qual participam vários agentes sociais, com evidente assimetria de poder entre eles.
Assim, o planejamento moderno -- desenhado nos gabinetes da burocracia -- foi cedendo espaço para um planejamento competitivo e flexível, sendo orientado pelo e para o mercado. O Estado passou a aproveitar as oportunidades de negócios, apresentando as cidades como eficientes dos pontos de vista econômico, social e competitivo. Desse modo, os municípios são pensados para competir na atração de novos negócios, utilizando, para tanto, estratégias como a concessão de benefícios fiscais (isenção de impostos e taxas) e não fiscais (cessão de terrenos, por exemplo).
Uma importante conquista para a promoção da política urbana foi o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001), que instituiu o Plano Diretor municipal como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Esse plano é obrigatório para todos os municípios com mais de 20 mil habitantes, para aqueles que integrem regiões metropolitanas ou área de especial interesse turístico e para os inseridos na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental (regional ou nacional), como é o caso do Porto do Açu, em São João da Barra (RJ).
Em 1999, foram realizados estudos de batimetria na localidade do Açu (5º Distrito sanjoanense) para verificar a viabilidade da construção de um terminal oceânico. Inicialmente, o projeto seria uma parceria entre o poder público estadual, a Petrobras e empresas privadas. Contudo, a Petrobras e as demais instituições envolvidas desistiram de financiar o empreendimento, o que levou o governo estadual a autorizar que o projeto fosse entregue ao empresário Eike Batista. O porto assumiu uma nova configuração, denominada Maritime Industrial Development Areas (MIDAs), reunindo as condições para se transformar no Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu (Clipa).
Sua pedra fundamental foi lançada em 2006, e a construção começou em 2007, sob responsabilidade da LLX Açu Operações Portuárias S/A, hoje Prumo Logística Global, entrando em operação em 2014. Atualmente, o Clipa possui o quarto maior terminal de minério de ferro do Brasil, é responsável por 30% das exportações brasileiras de petróleo, tem o maior parque térmico da América Latina e abriga a maior base de apoio offshore do mundo.
Com a perspectiva da chegada do porto, o Plano Diretor do município passou por uma revisão em 2006.
Até então, o plano anterior, de 1991, através de sua Lei Complementar de Uso e Ocupação do Solo (Luos), inseria a localidade do Açu em uma Zona de Expansão Urbana (ZEU–4), onde a faixa ocupada era classificada como Zona Residencial 2 e o entorno da Lagoa do Açu como Setor Especial 1. No novo plano, parte dessa área foi considerada Macrozona de Desenvolvimento Econômico (equivalente ao local para a instalação do Distrito Industrial de São João da Barra – DISJB), fronteiriça à Macrozona de Serviços e ao Setor de Interesse Ambiental. Em linhas gerais, o ordenamento urbano foi redesenhado para receber o porto e atender às demandas do empreendimento.
O Plano de 2006 começou a ser desenhado em 2004, e sua redação foi integralmente proposta por técnicos da hoje extinta Fenorte, que tinham conhecimento da região e do município sanjoanense, sendo financiado com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contudo, o diagnóstico realizado pela equipe da Fenorte não foi para a versão final, que se tornou a Lei Municipal Nº 050/2006, o que acabou servindo a interesses privados.
Essa lei passou por uma revisão em 2013. A proposta revisora foi coordenada pela Prefeitura e envolveu a Equipe Técnica Municipal (formada por profissionais da Prefeitura), a Comissão de Acompanhamento (formada por representantes da sociedade civil) e uma conhecida empresa de consultoria de Curitiba, contratada pelo município. Embora em 2006 a minuta dos técnicos não tenha sido integralmente aproveitada, é de se sublinhar que se tratava de profissionais familiarizados com a realidade local, o que não se deu em 2013.
Isso só veio afirmar o quão “empresarial” a cidade se tornou, ratificando o tipo de planejamento urbano que tem sido tendência nos municípios brasileiros. Nesse cenário, é possível afirmar que o planejamento socioespacial em São João da Barra, sujeito aos parâmetros do Estatuto da Cidade, teve uma evolução ao ampliar a participação cidadã, porém se deslocou para a lógica que exige das cidades flexibilidade e competitividade.
Além de o município receber royalties do petróleo e participações especiais, o Porto do Açu aumentou substancialmente as receitas municipais. Contudo, o caso sanjoanense reflete como um grande empreendimento reconfigurou a organização socioespacial da cidade por meio de planos que formalmente contemplam a igualdade de acesso à cidade, mas na prática continuam gerando desigualdades no uso e ocupação do solo, mesmo com o aumento nas receitas municipais. O que pôde ser verificado é que os processos de revisão do Plano Diretor visavam ao desenvolvimento urbano, mas a sua concretização ainda não foi totalmente efetivada. O porto ocasionou algumas mudanças positivas, porém estas não podem ser consideradas como medidas que trouxeram o desenvolvimento para o município.
Em pleno século XXI, o planejamento ainda enfrenta seus desafios e, muitas vezes, não se efetiva no ordenamento do espaço das cidades. Todavia, este não deve ser um motivo para desconsiderá-lo. Concomitante à gestão, o mesmo precisa a cada dia ser aprimorado para que os municípios alcancem o tão almejado desenvolvimento, que não chegará com o crescimento da economia local, mas sim com a eficaz participação dos cidadãos na vida política de suas cidades e a correta ação do poder público para melhorar a qualidade de vida da população e fazer crescer a justiça social, minimizando as segregações e garantido o pleno direito à cidade.
Diante do exposto, a próxima gestão pretende seguir essa receita de planejamento? Será que os candidatos às Eleições 2024 estão atentos às demandas urbanas? Qual modelo de planejamento e articulação com os grupos empresariais os candidatos apresentam em suas propostas? E, por fim, o que a população espera frente aos desafios que o planejamento enfrenta?
Raquel Chaffin Cezario é doutora em Sociologia Política, mestra em Políticas Sociais, bacharela e licenciada em Ciências Sociais. Atua como Articuladora de Políticas Públicas na Secretaria de Educação de São João da Barra e é Pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles Núcleo Norte Fluminense.

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