Em um capítulo do recém-lançado livro “Desenvolvimento urbano e governança: para uma agenda do Norte Fluminense”, reunimos, junto com outros cinco pesquisadores(as) vinculados(as) à rede Observatório das Metrópoles, subsídios que permitem responder a essa pergunta. Além dos autores desse artigo, o capítulo é assinado por Juliana Blasi, Ana Carla Pinheiro, Vanessa Palagar, Patricia Burlamaqui e Renato Dirk. Primeiro, as milícias: estariam elas atuando na cidade como atuam em áreas do Rio de Janeiro e da Região Metropolitana?
Segundo o texto, “não há milícias em Campos”, pelo menos por ora. “Não existem hoje evidências robustas que apontem para um domínio territorial típico de grupos milicianos na planície campista”, afirmam os autores. “Há, sim, pistoleiros, justiceiros locais e grupos de extermínio; todavia não extorquem sistematicamente moradores e comerciantes, tampouco impõem o monopólio da compra de mercadorias essenciais (...)”. E quanto ao tráfico? Sobre isso, há dados fartos para subsidiar o debate. Para não reforçar estereótipos, vamos mencionar os locais e as pessoas usando nomes fictícios.
Reportando-se a um tempo em que não se falava em facções do crime em Campos, o capítulo cita como marco fundamental a chegada da cocaína em grandes quantidades, na década de 1980. Na ocasião, conviviam em relativa paz as quadrilhas do Abacateiro e do Limoeiro (nomes fictícios), à época separadas apenas por uma linha férrea, cada qual controlada por uma família. Mas havia dois pontos de conflito. Primeiro, o Abacateiro era “mais expansionista” — o que poderia levar a uma postura de disputa — e logo fez acordo com a família que dominava o tráfico em outro local da cidade, aqui referido como Castanheira (nome também fictício). O segundo ponto é que o Abacateiro tinha fama de mau pagador, encarnando o ditado campista nem fiado nem à vista. Uma vez que no mercado ilegal não é possível acionar o SPC, o Procon ou a Justiça, os acordos são muitas vezes garantidos “pelo puro e simples uso da força: ameaças, espancamentos, expropriações e, em último caso, assassinatos” (pág. 270). Diz o texto que, quando o fornecedor ia receber o pagamento, o pessoal do Abacateiro não pagava o valor total nem devolvia a mercadoria correspondente à diferença. “Não se sabe ao certo como, mas essa situação desembocou em um confronto armado entre o Limoeiro e a dupla Abacateiro/Castanheira”, conta o capítulo, registrando a vitória e o subsequente domínio desta.
A aliança vencedora durou pouco, e a cisão não teria ocorrido por disputas frias em torno de dinheiro ou de porções do território, mas sim por uma questão passional e de certo modo infantil. Uma moça que tinha sido namorada do gerente do tráfico no Abacateiro veio a se tornar namorada do gerente da Castanheira. Tudo corria normalmente até que o ex-namorado fez um comentário elogioso a sua ex: “Fala para o Diego” — nome fictício — “que essa mulher dele tá muito bonita. Se bobear, eu venho aqui e pego ela de novo para mim.” O gracejo chegou aos ouvidos do então companheiro da moça. O relato que se segue é instigante, mas em resumo o chefão do Abacateiro resolveu ir até a Castanheira, acompanhado de outro gerente (não envolvido com a confusão), para apaziguar a situação. Ao contrário, o que ocorreu foi o assassinato de ambos. “Enquanto Francisco e Joaquim” — nomes fictícios — “aguardavam na Castanheira para ser atendidos, resolveram ‘apertar um baseado’. Parece que, à época, fumar maconha em frente a crianças e moradores era considerado uma violação moral das leis do tráfico. Inconformados com mais um abuso de autoridade, os traficantes da Castanheira decidiram matar Francisco e seu gerente Joaquim. Cortaram os cadáveres na barriga para não flutuarem e os jogaram nas águas do Paraíba do Sul. Logo em seguida, rumaram armados para tomar o Abacateiro, mas não obtiveram sucesso.” (pág. 271). Desde então, o pessoal do Abacateiro jura vingança contra a Castanheira.
“Até os dias atuais, as relações de reconhecimento e oposição entre as quadrilhas se dão mais com base em com qual favela/família alguém é coligado (...) do que com a sigla de alguma facção”, afirma o texto, baseado em estudos anteriores. As facções Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigo dos Amigos (ADA) só teriam chegado a Campos depois, quando os chefes das quadrilhas campistas, presos e enviados a unidades do Grande Rio, precisaram se aliar a alguma das facções hegemônicas para sobreviverem. Assim nasceu a identificação do Abacateiro com a ADA e da Castanheira com o TCP, assim como o enquadramento praticamente automático de cidadãos de cada um desses locais à respectiva facção.
A dimensão territorial dessa disputa atingiu um “ponto de acomodação” — pelo menos na margem direita do Paraíba — mediante o estabelecimento do canal Campos-Macaé como divisa entre as áreas de cada facção. Ao leste da Beira-Valão, os pontos de venda de drogas ficariam nas mãos da Castanheira (leia-se TCP), enquanto ao oeste o domínio seria do Abacateiro (leia-se ADA). Mas no subdistrito de Jabuticabeira (outro nome fictício) esse equilíbrio tênue não foi atingido, e, segundo os estudos sobre o tema, sua ausência tem bastante a dizer sobre o índice de violência muito mais alto nesse subdistrito — em 2019, por exemplo (e o exemplo não é atípico), o índice de homicídios por 100 mil habitantes foi de 87,11 na delegacia que o tem como jurisdição e de 20,95 na da margem direita. “Na margem norte” (do Paraíba), “muitas vezes, uma quadrilha é separada da outra apenas por uma rua”, escrevem os autores, citando como exemplo um condomínio municipal de habitação popular dominado pela ADA. A região é por vezes referida como Faixa de Gaza, cercada de todos os lados por domínios do TCP.
Ao implementar o referido e conhecido programa habitacional municipal, que instalou conjuntos em diferentes pontos da cidade, a Prefeitura de Campos não atentou para essa dimensão territorial das quadrilhas do tráfico e permitiu que famílias de diferentes bairros e “pertenças” fossem reunidas em um mesmo espaço, gerando conflitos que o Estado ainda não se tem mostrado apto a processar. Esse é um ponto negativo sempre apontado pelos analistas dessa política pública, que, evidentemente, também teve seus méritos. Por isso se pode fazer uma pequena autocrítica ao título escolhido para o capítulo em questão, que é “O inesperado imbricamento entre moradia e tráfico de drogas em Campos”. A rigor, não há nada de inesperado nas consequências desse descuido trágico.
Wania Mesquita é doutora em Sociologia, professora associada do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (Lesce) da Uenf e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
David Maciel de Mello Neto é doutor em Sociologia, professor associado do Laboratório de Gestão e Políticas Públicas (LGPP) da Uenf e pesquisador do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles.
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