Os carrinhos no dia a dia de uma periferia: pensando as fronteiras entre o legal e o ilegal no fluxo da vida cotidiana
Ana Carla de Oliveira Pinheiro 30/04/2024 21:31 - Atualizado em 30/04/2024 21:37
Gustavo Smiderle /Núcleo Norte Fluminense, INCT Observatório das Metrópoles
Por um considerável período de tempo tive minha atenção e tempo direcionados para a região de Santa Rosa, em Guarus. Primeiramente em razão do trabalho, pois sou professora em uma escola da região, e depois pelo meu trabalho de campo para minha pesquisa de doutorado. E, dentre as peculiaridades locais, chamou minha atenção a circulação dos chamados carrinhos — isto é, carros particulares de transportes de pessoas, oficialmente classificados como clandestinos, mas que constituem expediente muito utilizado para facilitar a mobilidade e o acesso à cidade em face da precariedade que é o sistema de transporte público da cidade em geral e do território em particular.
Embora oficialmente essa modalidade de transporte seja irregular, há uma organização interna, dentro do próprio território, para viabilizar sua execução, incluindo um monitoramento exercido sobre o funcionamento interno — quem, quando e onde circular — e a fiscalização externa — como as blitze e as operações do IMTT (Instituto Municipal de Trânsito e Transportes). No contexto social específico, olhando de forma microssociológica, essas fronteiras entre o legal e o ilegal, o regulado e o clandestino — e, no limite, entre o lícito e o ilícito — são muito tênues. Nem sempre o que é declarado fora da norma (irregular, ilegal, fora da lei) é considerado ilegítimo pela coletividade.
No caso dos carrinhos, houve períodos de repressão aberta e outros de leniência, mas em tese a prática esteve sempre proibida. No entanto, as pessoas reconhecem certa legitimidade, devido principalmente a dois aspectos: (a) o transporte público oficial é insuficiente (quando não inteiramente ausente) para atender as demandas e as necessidades da população; (b) os condutores das lotadas estão trabalhando, e a repressão a sua atividade é percebida como a perseguição ao livre exercício do trabalho que põe o pão na mesa da família.
Como participante da sociabilidade local, eu mesma algumas vezes lancei mão desses meios para o desenvolvimento da minha pesquisa, dada a sua agilidade e também a possibilidade de obter informações sobre o bairro, pois o contato e o diálogo com motoristas e outros passageiros eram muito mais facilitados. Como se sabe, certos ambientes de interação são ótimos para a gente ter um termômetro da realidade ou do que as pessoas pensam a respeito dela.
Digo em termos concretos: um dos sinais de quebra da rotina na vida ordinária do bairro era a interferência no transporte, especialmente na circulação dos carrinhos. A ausência na circulação indicava que algo não ia bem. Para ilustrar, transcrevo um trecho do caderno de campo, registrado em 14 de março de 2016, em que pude observar essa questão:
Hoje, ao chegar ao Centro, percebi algo diferente: observei que não havia carrinhos e que o fluxo de van estava diminuído. De fato, o Centro pareceu mais ordenado, com um menor fluxo de pessoas em relação aos outros dias, especialmente para uma segunda-feira. Observei que havia dois guardas municipais na praça com seus blocos de multas. Deduzi que a ausência dos carrinhos se devia a este fato; no entanto, no fim do dia fui informada por Marilda (nome fictício) (...) que o motivo foi outro, a saber; ordem do tráfico para somente circular ônibus e vans. E ainda, estas últimas deveriam ir somente até o Ciep. No fim do dia, o fluxo já estava normalizado.
Embora eu não tenha conseguido confirmar a informação por outras fontes, conforme registrei no caderno de campo, ela também não se mostrou improcedente. Em muitas viagens houve relatos dos motoristas acerca das restrições no itinerário ou no horário de circulação dos carros, impostas por outrem ou pela própria recusa do motorista em ir a determinados lugares. Em regra, o ordenamento imposto à circulação desses transportes é obedecido, pois, conforme pude presenciar algumas vezes, por meio de discussões e/ou telefonemas acalorados, as quebras dos acordos não são toleradas. E, como ouvi de um motorista em uma das viagens em um carrinho, em maio de 2017, a proteção é “primeiro Deus, depois o revólver”.
Pensando de um ponto de vista puramente jurídico ou formal, por que os carrinhos seriam ilegais e deveriam ser combatidos enquanto as grandes plataformas de transporte por aplicativo agem de forma soberana? Alguém poderia dizer que as condições objetivas dos veículos seriam muito diferentes nos dois casos, uma vez que na prática grande parte das lotadas é praticada em carros velhos e de manutenção duvidosa. Mas esse não seria um argumento de verdade; se o fosse, um carrinho totalmente regularizado deveria ter reconhecido o direito à livre passagem em qualquer época, sob qualquer gestão municipal.
Também se pode dizer que o maior problema de certos ilegalismos não é a prática irregular propriamente dita, mas os esquemas de violência que se montam por de trás, como era o caso do Jogo do Bicho. Bem lembraram os autores do  artigo anterior dessa seção, os professores Wania Mesquita e David Maciel, que os conflitos surgidos em esquemas ilegais de atuação não podem ser processados via apelo à Justiça ou a algum órgão do gênero, mas acabam resolvidos na base de ameaças, espancamentos e até homicídios.
Não é exagero pronunciar uma má-fé institucional, em termos bourdieusianos, quando se verifica que o município como ente regulador não mobiliza os recursos necessários para prover aquele território, habitado por trabalhadores, dos meios necessários para sua mobilidade e acesso à cidade, e também não organize a circulação dos carrinhos, deixando esse ordenamento aos controles internos. Pois, considerando o número de indivíduos lá residentes, uma rápida observação dá conta da insuficiência do serviço, vista no tempo de espera nos pontos, na lotação dos ônibus e na condição de viagem dos passageiros. O fato é que, diante das precariedades produzidas pelas desigualdades sociais, vê-se no dia a dia as pessoas construindo estratégias para tornar viável o fluxo da vida ordinária e nesta tentativa vão operando (e negociando com) as estruturas sociais que lhes condicionam os comportamentos.

Ana Carla de Oliveira Pinheiro é doutora em Sociologia Política pela Uenf, pós-doutoranda em Sociologia e Direito pela UFF e professora de Sociologia da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro

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