O avanço pedagógico do mar de Atafona e da decadência campista
Edmundo Siqueira 14/09/2024 20:05 - Atualizado em 14/09/2024 20:07
Crianças de Atafona brincam nas ruínas da cidade, que perdeu 14 quarteirões devido ao aumento do nível mar e à erosão costeira. Na maré baixa, surgem da areia construções que foram tragadas pelo mar há décadas.
Crianças de Atafona brincam nas ruínas da cidade, que perdeu 14 quarteirões devido ao aumento do nível mar e à erosão costeira. Na maré baixa, surgem da areia construções que foram tragadas pelo mar há décadas. / Felipe Fittipaldi - National Geographic
 
No início do século passado, ali pelos anos 1920, Campos experimentava um apogeu sucroalcooleiro. Quase três dezenas de usinas operavam no município. Abadia, Barcelos, Caconda, Cambahyba, Outeiro, Sapucaia…eram nomes do cotidiano de Campos, tanto nas áreas rurais como no centro urbano. O açúcar movia a cidade.

Havia diversas cadeias produtivas que as usinas movimentavam: comércio, mercado imobiliário, agronegócio, serviços e até arte e cultura. Elegantes cafés — como o emblemático Café High Life, na 7 de setembro —, teatros — sendo o Trianon como o mais importante —, restaurantes, hotéis, livrarias e o novo prédio de inspiração francesa do Mercado Municipal são pontos de convivência nesse período.

Campos se modernizava, e tentava construir uma elite culta, que se espelhava no Rio de Janeiro, que por sua vez ansiava o modo de vida europeu. Não por acaso, essa elite campista dava vida ao centro da cidade e estruturava a convivência urbana. Mas também, com consequências até hoje, sem se preocupar muito com a desigualdade que vinha a reboque.

Existe uma praia campista: Farol de São Thomé. Contudo, a distância do centro desmotivou a maioria das famílias que buscavam uma casa de veraneio que proporcionasse a ida e vinda para a cidade de modo constante. Isso era possível nas praias do município vizinho, São João da Barra, o que levou a até então bucólica e mágica praia de Atafona, onde o rio encontra o mar, ser um dos principais destinos dos campistas mais abastados, que primeiro alugavam casas de pescadores e depois passaram a construir palacetes à beira mar.
 
Reprodução gráfica do Café High Life, no centro de Campos, apresentada no podcast "Elas tem História", das historiadoras Rafaela Machado e Larissa Manhães.
Reprodução gráfica do Café High Life, no centro de Campos, apresentada no podcast "Elas tem História", das historiadoras Rafaela Machado e Larissa Manhães. / Podcast Elas tem História


Esse movimento de ocupação das praias sanjoanenses se intensificou na segunda metade do século XX, quando houve uma ascensão econômica de profissionais liberais, comerciantes e comerciários e os proprietários e trabalhadores das usinas de cana-de-açúcar de Campos. E foi preciso criar núcleos com características urbanas ao redor, com a oferta de serviços públicos como saneamento e asfalto. E também problemas de toda ordem.

Ações, omissões e o inevitável

Não é impossível fazer uma correlação do avanço do mar nesses locais com a ocupação territorial. O aumento da urbanização e da exploração dos recursos naturais — não só em Atafona mas em toda região, ao longo da bacia do Rio Paraíba do Sul — contribuíram para a diminuição da vazão do Paraíba, o aumento do assoreamento e a redução do aporte de sedimentos na foz em delta que tem Atafona como seu estuário.

Claro, não foi apenas isso que levou Atafona a uma situação de dramaticidade apontada pela mídia mundial. Começa a partir da década de 1950, quando o Rio Paraíba do Sul passou por grandes intervenções, como a transposição de suas águas para o Rio Guandu e, mais tarde, para o Sistema Cantareira (maior produtor de água da região metropolitana de São Paulo), com o objetivo de abastecer as metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo.
Ruínas em Atafona, praia de São João da Barra.
Ruínas em Atafona, praia de São João da Barra. / Rafael Duarte - site Mongabay

O equilíbrio da foz do Rio Paraíba foi rompido por diversos fatores. Não apenas ambientais, diga-se de passagem. Ações ou omissões políticas foram também determinantes. Talvez a ocupação de Atafona pelos campistas fosse inevitável, assim como desviar uma quantidade abissal de água do Paraíba para abastecer grandes e populosos centros urbanos. Porém, mesmo o inevitável pode ser feito mantendo-se um sistema equilibrado, em medidas mais justas, mantendo-se direitos e ordenando quais áreas poderiam ser construídas, tendo os impactos compensados, ao menos.

Muito poderia ter sido feito: controle do assoreamento, recuperação da vegetação ciliar, estruturas de contenção, recuperação da vegetação de dunas, implementação de zonas de recuo, entre outras providências que reduzissem os impactos e contivessem o avanço do mar. Mas pouco decidiu ser colocado em prática.

O avanço de um mar de decadência

É preciso buscar compreender os porquês dos abandonos e qual contexto histórico se impôs à Campos no último século. O açúcar que movia a cidade foi ganhando contornos de amargura administrativa. As usinas, uma a uma, foram desligando suas máquinas e interrompendo um ciclo econômico virtuoso.

A derrocada sucroalcooleira, assim como o avanço do mar em Atafona, não pode ser explicada por um único fator, ou mesmo fatores isolados. A mudança na política nacional de produção de álcool, a falta de matéria prima em Campos, problemas na administração das usinas que configuravam-se essencialmente como empresas familiares de pouca sofisticação organizacional, falta de diálogo entre os industriais, e outros tantos problemas que começaram a se acumular.

Usina São João, na margem esquerda do Rio Paraíba, nos anos 1970.
Usina São João, na margem esquerda do Rio Paraíba, nos anos 1970. / Instituto Federal Fluminense (IFF) - portal2015.iff.edu.br
A decadência das usinas avançou como um mar furioso sobre a região. O fato de se ter descoberto uma bacia de petróleo gigantesca em Campos, durante o mesmo período, poderia ter sido a redenção, mas o dinheiro “fácil” dos royalties e de participação especial acelerou a deterioração do parque industrial campista — como sintoma evidente da chamada de “doença holandesa”, ou “maldição dos recursos naturais”.

O avanço do mar de decadência também não foi contido e deixou ruínas na paisagem urbana de Campos e na praiana, em Atafona. São marcas de um passado recente, visíveis após o recuo de um oceano de desmandos.

Estátua em homenagem a Tiradentes, no centro de Campos. Ao fundo, as ruínas do Hotel Flávio, que não faz mais parte da paisagem desde o carnaval de 2023.
Estátua em homenagem a Tiradentes, no centro de Campos. Ao fundo, as ruínas do Hotel Flávio, que não faz mais parte da paisagem desde o carnaval de 2023. / Folha1
O período áureo produziu lideranças políticas, a derrocada também. Com espaços de poder esvaziados pela falta de dinheiro dos prefeitos ligados às usinas, novos grupos políticos surgiram, e não por acaso evidenciando essas mesmas ruínas. Palanques foram erguidos com os tijolos das usinas desativadas e dos teatros e cafés do Centro Histórico.


O mar, o rio, a cana, o açúcar, o álcool e o petróleo são implacáveis. Não coadunam com omissões e pecados políticos. Podem ser elementos de desenvolvimento ou de destruição, a depender do uso dado. As ruínas deixadas podem servir de exemplo, como um aviso do que acontece quando há desleixo e mudanças no equilíbrio entre os recursos.

Mas, o que se vê até agora em Campos, é que nos habituamos com a paisagem, chutando os destroços que ainda estão pelo caminho, sem aprender com eles. E apagando definitivamente o Café High Life e do Trianon. E os desastres, pouco a pouco, vão perdendo o valor pedagógico.
 

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