Adriano Moura: Resquícios da casa grande
Adriano Moura 22/03/2025 08:43 - Atualizado em 22/03/2025 08:47
Adriano Moura
Adriano Moura / Folha da Manhã
Campos dos Goytacazes foi notícia em diversos veículos de imprensa e redes sociais nesta semana pelo fato de uma juíza da 3ª Vara Cível da cidade, após indeferir pedido de advogado em processo, ter sido alvo de ofensas e comentários racistas proferidos por ele, que se referiu à magistrada como “afrodescendente com resquícios de senzala e recalque ou memória celular de açoite”. Não faz muito tempo, uma socialite campista teria dito ou escrito em redes sociais que os negros deveriam “voltar para as senzalas”. Tais episódios denotam o quanto ainda é preciso que o racismo seja um debate público, abrangendo toda a sociedade, não somente a população negra.
Não é possível, no entanto, pensar soluções para um problema desconhecendo suas origens que podem ser históricas, econômicas, étnicas, políticas, territoriais, religiosas e geográficas. A complexidade do racismo se dá justamente pelo fato de ser um encadeamento de todos esses fatores originados do processo de colonização no Brasil. A colonização portuguesa em Campos teve início no século XVII, momento em que Martim de Sá e Benevides, fidalgo português, doou terras aos Sete Capitães, aos quais foram cedidas partes de terra no Norte Fluminense e que iniciaram na região a produção de gado, atividade que, assim como a cana-de-açúcar, representou o enriquecimento de seus exploradores.
Entretanto, não somente em Campos, mas em todo território brasileiro, o projeto colonialista se construiu à custa de mão de obra escravizada traficada do continente africano. Todo solar do período colonial deveria trazer em sua entrada a inscrição: aqui habitou uma família que enriqueceu traficando, escravizando, assassinando negros.
“Negro” não é uma etnia, tampouco a cor de pele de alguém, mas um conceito, pois se trata de uma ideia elaborada sobre pessoas de pele preta de um continente com histórias, religiões, políticas, línguas, conflitos, artes, culturas próprias, completamente desumanizadas. O processo de desumanização é uma estratégia comum quando se visa a destruição do outro. Dos africanos foi retirada a humanidade, atribuindo-lhes certa animalidade, ausência de alma, demonização de suas religiões e depreciação de seus modos de existir no mundo. Essa desumanização se aprimorou e se aprofundou ao longo dos três séculos de escravidão, erguendo o projeto (ou arremedo) de nação a que chamamos Brasil.
O fim da escravidão em 1888 teve status jurídico apenas, visto que os ex-escravizados se viram livres, porém, sem moradia, escola, saúde, trabalho. A mão de obra negra servia quando escravizada, para assalariar, preferiu-se a branca imigrante, para que se embranquecesse o país. Não podia matar, pelo menos oficialmente, mas podia deixar morrer.
A discriminação sofrida pela população negra e seus descendentes é consequência desse processo que se inicia com o tráfico de humanos africanos e trezentos anos de colonização e trabalho escravo. Caberia então a pergunta: se já não somos mais colônia e se não há mais escravidão, por que o racismo ainda existe e tem exposto cada vez mais suas diferentes formas de opressão? Não se extingue uma mentalidade somente com leis e decretos, mas com a construção de um outro projeto de nação. Fala-se muito em reconstrução. Mas o Brasil, em termos de igualdade, é uma nação ainda a ser construída.
Durante anos, a maioria da população negra ocupou lugares subalternos nos setores da sociedade brasileira. O negro quando faxineiro, segurança, lixeiro, catador não incomoda, desde que se ponha “em seu lugar”, o da obediência, do silenciamento, da mordaça, dos baixos salários, da escolaridade mínima, permanecendo somente nos espaços definidos por novos senhores, sob o teto de outras senzalas disfarçadas de casas, sem saneamento, lazer, infraestrutura. No entanto há, mesmo que lenta, uma mudança que vem possibilitando a ascensão de pessoas negras a lugares até então negados, mudança essa que decorre de décadas de lutas de movimentos negros e antirracistas, mas que incomoda os que se habituaram à condição de senhores.
Um dos entraves ao combate ao racismo no Brasil é o negacionismo de pessoas e setores que, se esquecendo do anacronismo de teses como a de Gilberto Freyre, insistem que vivemos numa democracia racial. É comum escutarmos absurdos do tipo “Agora tudo é racismo”. No caso brasileiro, o racismo sempre se escondeu sob a capa do mito da convivência harmoniosa de todas as “raças” ou sob as ironias e eufemismos do humor. Não é que agora “tudo é racismo”, sempre foi racismo desde o aportar do primeiro navio negreiro, desde a primeira mulher negra a ter de alisar o cabelo para conseguir emprego, desde o primeiro trabalhador negro morto pela polícia porque foi “confundido” com bandido. A diferença é que a população negra não só tem ocupado os espaços pelos quais luta, como não está (nunca esteve, mas era forçada) disposta a simplesmente baixar a cabeça, dar um sorriso sem graça, fingir que nada aconteceu quando alvo de discriminação, comentário, ofensa ou piada racista.
Não somos mais uma colônia e oficialmente não há mais escravos por aqui, porém a mentalidade colonial e escravocrata persiste e emerge toda vez que uma pessoa negra contraria as expectativas ou vontades dos herdeiros de uma casa grande que, embora falida, não admite ser contrariada. O único resquício de senzala presente na população negra é o que motivou as rebeliões e criação dos quilombos. A “memória do açoite” mantém viva a urgência de denúncia, reação, punição sempre que o passado escravocrata deste país for utilizado mais com o intuito de discriminar, violentar, apagar ou silenciar as vozes de pessoas negras do que fazer com que toda a sociedade compreenda que assim como a suposta inferioridade negra foi uma invenção colonial, a suposta “superioridade” branca também foi. Antes de evocar a memória de açoitados, não se pode esquecer que o criminoso era quem ordenava e executava o açoite. Disso os herdeiros da casa grande também não podem esquecer.
*Escritor, professor de Letras do IFF e membro da ACL

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