Fordlândia: "cidade fantasma" no Pará espera há 30 anos por tombamento do Iphan
Edmundo Siqueira 26/09/2023 23:36 - Atualizado em 26/09/2023 23:53
Antigo hospital de Fordlândia, no Pará: um dos melhores do Brasil nos anos 1930.
Antigo hospital de Fordlândia, no Pará: um dos melhores do Brasil nos anos 1930. / Foto: Ford Motor Company

Fordlândia: "cidade fantasma" no Pará espera há 30 anos por tombamento do Iphan

Edmundo Siqueira, com colaboração de Letícia Haertel
As águas esverdeadas do rio Tapajós se recusam a misturar-se com o amarelado do rio Amazonas. Biólogos e gente da terra explicam que o Amazonas nasce em uma região alta, e vem arrastando sedimentos como areia e argila. O Tapajós, mais antigo, se espraia em regiões planas, e tendo pouco a arrastar, mantém as suas águas em tons mais claros.

O encontro dos rios acontece na cidade de Santarém, no Pará. Segundo maior aglomerado urbano do Estado, a “pérola do Tapajós” presencia a separação cromática das águas, quase como uma fronteira criada pela natureza. Descendo o rio Tapajós, sentido oposto ao Amazonas, está o município de Aveiro, com pouco mais de 16 mil habitantes.

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. / Foto: James Martins pelo Wikimedia Commons
Mais 30 quilômetros seguindo o curso do rio e chega-se ao icônico distrito do município de Aveiro, chamado de “Fordlândia”. O adjetivo não é gratuito, Fordlândia é hoje um lugar rodeado de iconicidades, que na verdade reproduzem a aparência de um outro mundo. O distrito é um simulacro de uma sociedade perfeita que foi pensada em delírios megalomaníacos do industrial Henry Ford, fundador da Ford Motor Company, no início do século passado.


Mas, o que Ford veio fazer na mesorregião do Baixo Amazonas? Veio atrás de borracha, mas não apenas isso. O criador do fordismo — forma de produção em massa, baseada em uma linha repetitiva e exaustiva — queria deixar como legado uma cidade que ele considerava ideal, modelo e utópica.

Conforme relata Letícia Haertel, mestre em Direito com ênfase na proteção internacional do patrimônio histórico: “De um lado, a Ford Motor Company precisava encontrar uma forma de obter borracha para suas linhas de produção. O ciclo da borracha no Brasil e em outros países latino-americanos — que havia suprido boa parte da demanda global na Revolução Industrial — havia sido encerrado pelas avassaladoras consequências de um dos casos mais notórios de biopirataria na história, que culminou em mudas da Hevea brasiliensis sendo plantadas no Sudeste Asiático, onde cresciam de forma muito mais eficiente”.

A situação se viu agravada quando Ford viu as margens de lucro de suas empresas diminuírem quando o governo inglês decidiu lançar o “Plano Stevenson”, que na prática restringia a produção de borracha no mundo, e reforçava o monopólio inglês na produção dessa commodity.

Para tentar contornar a crise, o então secretário do Comércio dos Estados Unidos, Herbert Hoover, que viria a ser o 31º presidente americano, conclamou os empresários para que começassem a cultivar as árvores que fornecem o látex de seus caules, tentando impedir a intervenção inglesa.

Hoover precisava de escala, e procurou um dos maiores empresários dos EUA para isso, levando a ideia para um dos maiores capitalistas de sua época: Henry Ford. Para isso, o secretário e o empresário decidiram explorar o norte de um país do sul, o Brasil, para que fossem plantadas nas terras brasileiras uma infinidade de seringueiras. Foi escolhido o estado do Pará, e também a questão do sudeste foi decisiva.
A advogada e especialista na proteção internacional do patrimônio histórico, Letícia Haertel, em frente a um dos galpões abandonados de Fordlândia.
A advogada e especialista na proteção internacional do patrimônio histórico, Letícia Haertel, em frente a um dos galpões abandonados de Fordlândia. / Foto: Alex Rothman

[Haertel continua:] “A decisão de Ford de investir dezenas de milhões de dólares no ideal de construir uma cidade industrial no coração da Amazônia tinha outra motivação, talvez ainda mais profunda. Com cerca de 60 anos, Ford se via extremamente frustrado com os rumos que seu país havia tomado nos últimos anos. Apesar de ferrenho estimulador e agente do capitalismo, Ford condenava os “vícios urbanos” que decorreram da Revolução Industrial e que ele mesmo havia ajudado a criar. Assim, era guiado por um ideal de levar o que entendia como o verdadeiro “sonho americano” para um lugar que não houvesse sido desvirtuado como a sociedade estadunidense”.

O (custoso) sonho americano no Pará

A região do município de Aveiro, no Pará, tem clima equatorial, e está às margens de um importante rio da floresta amazônica. O acesso mais fácil ao seu principal distrito, Fordlândia, se dá pelas águas do Tapajós, mas também é possível chegar pela Transfordlândia, estrada de terra que liga o distrito de Fordlândia à rodovia Santarém-Cuiabá (BR 163).

Para atracar no pequeno porto de Fordlândia, as lanchas e embarcações que fazem o transporte de passageiros pelo Tapajós se livram de igarapés e outras vegetações nativas. Uma vez em terra, pode ser visto um grande convento do lado direito, e uma praça em forma de triângulo, chamada Frei Miguel Lange, em frente. Seguindo por mais 250 metros, dois grandes galpões se apresentam, ambos construídos no início dos anos 1930, que até hoje são chamados de “galpões dos americanos”.

Mas para possibilitar que Henry Ford criasse uma cidade na Amazônia, era preciso infraestrutura. José Custódio de Lima, então diplomata brasileiro, visitou o empresário americano, com o aval do governador do Pará, e lhe ofereceu diversas concessões, doações de terras e isenção de impostos.

Além da diplomacia, o empresário Jorge Dumont Villares — sobrinho do aviador Santos Dumont — tentou lucrar com os interesses de Ford na região e conseguiu. ViIllares acabou por vender ao empresário as terras já garantidas junto ao governo do Pará, uma área de 2,5 milhões de acres no vale do Tapajós. A “intermediação” rendeu ao brasileiro 125 mil dólares.

Além das benesses públicas, a futura Fordlândia precisaria de liberdade total para existir. A única exigência do governo brasileiro foi o plantio de 0,12% da área. Cumprindo, Ford poderia explorar todos os recursos naturais, construir estradas de ferro e rodagem, aeroportos, explorar a navegação fluvial, ter segurança própria e construir, como quisesse, sem aprovação de qualquer projeto ou plantas de construções.

Assim foi feito: em 1928 os navios Lake Farge e Lake Ormoc levaram os materiais e alguns funcionários para a construção do barracão central. Depois vieram o porto, o hospital, o almoxarifado, a usina elétrica, a serraria e as casas da oficialidade. Havia nas terras ainda inexploradas do Tapajós cerca de sessenta tratores de esteira, um guindaste para 30 toneladas, uma usina central e duas caldeiras à lenha para gerar energia.

Haertel destaca que “os homens de Ford haviam ignorado o ciclo da floresta e, ao desmatar a área, iniciaram o processo das queimadas em época úmida, o que o fez derramar uma quantidade de querosene muito maior do que seria necessário em época de seca, culminando na maior queimada já vista na região do Tapajós – um verdadeiro desastre ecológico”.
Das icônicas casas de estilo americano ao abandono: Fordlândia espera o tombamento pelo Iphan há mais de 30 anos.
Das icônicas casas de estilo americano ao abandono: Fordlândia espera o tombamento pelo Iphan há mais de 30 anos. / BRYAN DENTON/NYT
As águas do Tapajós e do Amazonas foram fundamentais para o empreendimento, e os homens de Ford as retiravam por moto-bombas, sem qualquer controle. A nova cidade ainda teria fábrica de gelo, frigorífico, estação de rádio, sistema de esgoto e uma estrutura própria de correio. Ford mandou construir uma estrada e uma ferrovia, com cinco quilômetros de extensão.

Ao final de 1930, Fordlândia já era exatamente como — ou um simulacro da realidade — uma pequena cidade norte-americana, em plena Amazônia. Casas de madeira e alvenaria, sem muros, com jardins frontais, e hidrantes vermelhos nas calçadas. Os filhos dos americanos, que foram morar em Fordlândia, estudavam em uma escola bilíngue e o hospital local era melhor que a maioria das cidades próximas e até de muitas capitais brasileiras.

O desastre americano na Amazônia
Ruínas do que antes era um dos melhores hospitais do Brasil, no meio da Amazônia, na cidade idealizada por Henry Ford
Ruínas do que antes era um dos melhores hospitais do Brasil, no meio da Amazônia, na cidade idealizada por Henry Ford / Foto: Letícia Haertel

Os americanos que foram viver em Fordlândia ocupavam casas confortáveis, com varandas amplas, e telas para proteger dos mosquitos amazonenses. Formou-se uma Vila, iluminada e ornamentada com jardins e mangueiras. Os homens se divertiam caçando e as esposas se dedicavam à educação dos filhos, e tinham à disposição um time de babás, faxineiras e cozinheiras, todas brasileiras.

A sociedade pensada por Ford era regrada e deveria impor o “american way of life” (o estilo de vida americano) tanto aos próprios como aos nativos. Havia horário rígido, refeitórios coletivos que serviam apenas receitas americanas, bebidas alcóolicas e fumo eram proibidos e os relacionamentos eram controlados.

Brasileiros e americanos não se adaptaram àquela realidade. Enquanto as crianças já se comunicavam com os colegas, os adultos se negaram a aprender o português. As relações de trabalho foram ficando agressivas, inclusive no ambiente doméstico. As imposições americanas resultaram em revoltas dos paraenses, amazonenses e nordestinos que trabalhavam em Fordlândia, e eles passaram a ser vistos como preguiçosos e baderneiros.

Se não bastasse o fracasso no convívio, e sendo também uma de suas causas, a principal atividade econômica planejada para Fordlândia não deu certo. Sem buscar qualquer orientação de especialistas em botânica ou agronomia, Ford determinou que milhares de seringueiras fossem plantadas em fila, como nas esteiras de suas fábricas. Mas a natureza se negou a obedecer à arrogância fordista.

As seringueiras não tiveram o espaçamento necessário e as folhagens se encontravam nas copas, produzindo sombra onde não deveria existir e possibilitando uma praga chamada de “Mal das Folhas”, causada por fungos. A plantação entrou em colapso. Com isso, Belterra, município próximo a Santarém, foi para onde todos os esforços foram direcionados, em novas plantações. No início de 1937, havia mais de 700 mil seringueiras plantadas em Belterra, com um viveiro com mais de 5 milhões de mudas. O mal das folhas reapareceu por lá, mas foi controlado.

Mas naquela altura, final dos anos 1930, o governo norte-americano passou a se dedicar às plantações de seringueiras no próprio continente, onde tinha mais influência política e capacidade logística. As plantações da Ford Motor Company ainda seriam alternativas interessantes, mas também despontavam novas áreas no Panamá e na Costa Rica.

Na visão imperialista dos EUA, uma alternativa ao desastre de Fordlândia seria também incentivar o Brasil a produzir borracha por contra própria e exportar, e conjunturalmente teve relação com o que ficou conhecido como o Segundo Ciclo da Borracha.

Nos anos seguintes, a Ford se dedicou a produzir veículos militares e aviões para a Segunda Guerra Mundial, e houve significativa diminuição de recursos humanos e materiais enviados para Fordlândia.

Como última tentativa, os americanos tentaram a propaganda. Enviaram o empresário do cinema, Walt Disney, para a icônica Fordlândia, e o documentário “The Amazon Awakens” foi produzido (link). Com quase 40 minutos de duração, a peça cinematográfica mostrava como os EUA haviam “civilizado” os brasileiros.

O Iphan e o patrimônio abandonado
Interior de um dos "galpões dos americanos" em Fordlândia.
Interior de um dos "galpões dos americanos" em Fordlândia. / Foto: Letícia Haertel

A Ford encerrou suas atividades em Fordlândia depois que o filho de Henry Ford assumiu a companhia. Com o abandono total da gigante americana e do governo barisleiro, hoje restam poucos moradores, e são os que tentam manter o que sobrou do patrimônio ainda de pé.

Não há mais o hospital, as escolas, o frigorífico ou a estação de rádio. Entre memórias e ruínas, os que ainda vivem em Fordlândia sofrem com a destruição de uma cidade quase fantasma. Sem comércio ou fábricas de borracha, a comunidade vive da pesca, da e da agricultura e, mais recentemente, da mineração.

Mas ainda existe em Fordlândia um potencial inexplorado. Com uma história de cinema, que envolve personagens conhecidos mundialmente, a cidade no interior do Pará pode servir de destino turístico de grande atrativo.

Haertel, que conheceu Fordlândia, lamenta a perda de patrimônio histórico ao longo dos anos e a oportunidade de reverter lucros de iniciativas turísticas em benefício das comunidades locais – que batalham há décadas para proteger sua história. A advogada se referiu especificamente à situação do hospital como exemplo do que poderia ter sido salvo:

“O Hospital de Fordlândia, de importância histórica inegável, foi dilapidado, saqueado e destruído muito recentemente – é revoltante. No documentário Fordlândia, de 2008, é possível ver que, apesar do abandono e alguma depredação, o Hospital estava de pé. Quando visitei Fordlandia em junho deste ano, mal era possível identificar onde o Hospital um dia esteve, pois a pouca estrutura sobrevivente — colunas e algumas paredes com espaços onde estiveram as janelas — se encontra completamente cercada por mato”.

Considerado um patrimônio material por sua história, Fordlândia espera que esse reconhecimento seja feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) há mais de 30 anos. O órgão chegou a iniciar as tratativas em 2010, celebrando um Acordo de Preservação Cultural com o Ministério da Cultura, o Estado do Pará e o Município de Aveiro. O pacto previa a recuperação, restauração e revitalização dos prédios públicos e das antigas casas, mas o projeto foi descontinuado.

Em 2015, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública para cobrar medidas de recuperação e conservação do complexo arquitetônico de Fordlândia. No final de 2021, a Justiça Federal de Itaituba determinou que o caso fosse pautado e analisado pelo Conselho Consultivo do Iphan.

No último dia 20 de setembro, a Procuradoria da República no Município de Altamira/PA, emitiu a Recomendação n° 03/2023, que foi expedida ao presidente do Iphan, ao Ministério da Cultura, e à Superintendência do Iphan no Pará. Nela, a justiça dá um prazo de 40 dias para que “sejam adotadas as medidas necessárias para viabilizar a regular incorporação do distrito de Fordlândia ao patrimônio da União, o que viabilizará a conclusão do processo administrativo de tombamento no Iphan”.

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