A omissão e a intenção na destruição do patrimônio histórico
Edmundo Siqueira 20/06/2023 23:12 - Atualizado em 20/06/2023 23:34
Delegados da Conferência Internacional da Paz pousam nos degraus do palácio Huis ten Bosch, em Haia (Países Baixos), em 18 de maio de 1899.
Delegados da Conferência Internacional da Paz pousam nos degraus do palácio Huis ten Bosch, em Haia (Países Baixos), em 18 de maio de 1899. / Uma resolução histórica para proteger o patrimônio cultural, de Catherine Fiankan-Bokonga
Em tempos de guerra, destruir patrimônio histórico — seja ele um monumento ou uma construção — se configura como uma estratégia de domínio. Ocupar ou reconstruir um símbolo histórico-cultural significa dizer que o inimigo venceu, não apenas a batalha, mas dominou um povo; uma nação. Assim como resistir e proteger esses elementos significa dizer que uma sociedade manteve-se viva, consciente de sua história.

Em 14 de junho de 1940, Paris caía diante do nazismo. A blitzkrieg (ataques relâmpagos) alemã vence o posicionamento francês na Linha Maginot (um conjunto de fortificações interligadas por trilhos subterrâneos construído na fronteira com a Alemanha) e Hitler passou a dominar a França. Uma das fotografias mais utilizadas para ilustrar esse fato histórico é uma onde o líder nazista posa com a Torre Eiffel ao fundo. Exercia ali o domínio através de um monumento, um elemento cultural da nação invadida.
Hitler e a Torre Eiffel
Hitler e a Torre Eiffel / Reprodução
Os franceses fizeram o inverso, 150 anos antes da invasão da Alemanha Nazista. Dessa vez, para lutar contra a dominação, tomaram outra construção histórica: a Bastilha. O prédio, que servia como prisão política no século XVIII, foi invadido pela população parisiense que estava insatisfeita com a crise socioeconômica que a França monarquista atravessava. A invasão se tornou o evento central da Revolução Francesa, evento que alterou o curso da história da humanidade.


Já no terceiro ano do século 21, tropas dos Estados Unidos derrubaram uma estátua de 12 metros de Saddam Hussein, durante a invasão do Iraque. As imagens correram o mundo e se tornaram o maior símbolo da queda de Saddam. O ditador acabou enforcado três anos depois.
Queda da estátua de Saddam Hussein por tropas americanas
Queda da estátua de Saddam Hussein por tropas americanas / OGlobo
Em dezembro de 2008, a Espanha derrubava a última estátua do ditador Francisco Franco montado a cavalo. O país havia aprovado um ordenamento jurídico chamado “Lei de Memória Histórica”, que obrigava a retirada dos símbolos franquistas dos espaços públicos.
Tempos de paz?
Defender o patrimônio histórico é mais que uma questão acadêmica. A forma que lidamos com sua preservação ou com sua ressignificação — como houve na Espanha depois da ditadura franquista — está intimamente ligada com o entendimento dos símbolos e elementos constitutivos da sociedade em que esses patrimônios existem. Sem educação patrimonial não é possível compreender os processos que fizeram a história, e quais deles devem ser combatidos.

A comunidade internacional tem esse entendimento, a princípio tentando proteger os patrimônios culturais em tempos de guerra, tratando-os como territórios neutros e que deveriam ser poupados até pelos invasores, sob pena de serem condenados por crimes de guerra. A Resolução 2347 do Conselho de Segurança da ONU, reconhece formalmente que a defesa do patrimônio cultural é imperativa para a segurança.
De um lado, a cidade mineira de Ouro Preto, reconhecida e preservada como patrimônio cultural da humanidade, pela UNESCO. Do outro, o Solar dos Airizes, em Campos dos Goytacazes, tombado pelo IPHAN em 1940, em ruínas.
De um lado, a cidade mineira de Ouro Preto, reconhecida e preservada como patrimônio cultural da humanidade, pela UNESCO. Do outro, o Solar dos Airizes, em Campos dos Goytacazes, tombado pelo IPHAN em 1940, em ruínas. / Edmundo Siqueira


Em tempos de paz, a defesa do patrimônio histórico-cultural deveria ser entendida como natural pela sociedade — seja ela qual for, de um país ou de uma cidade. Afinal, algo visto e tratado como um elemento de importância vital, mesmo na guerra, deveria ser entendido como valoroso aos povos em qualquer tempo. Isso de fato acontece em várias partes do mundo — cidades são reconhecidas como patrimônios mundiais, monumentos são abraçados por resoluções intercontinentais e sítios arqueológicos são territórios intocáveis.
Quando preservamos um bem, preservamos a história acumulada. O que se constitui, além de ser uma obrigação e uma forma de sobrevivência, como um pacto intergeracional. Ou seja, ao garantirmos que patrimônios históricos sobrevivam e tenham uso cultural, educacional, ou mesmo turístico, estamos tratando de manter a história para as próximas gerações.

Destruir um patrimônio histórico em uma guerra é visto como um crime grave pela ONU. Omitir-se diante da destruição de patrimônios em tempos de paz também configura um ato criminoso quando relacionado ao governante. Mas a omissão da sociedade civil nesse assunto demonstra que a guerra, seja ela qual for, já está perdida.


 

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