Os interesses mórbidos, as dicotomias ilusórias e a arte a serviço do mal
Edmundo Siqueira 25/06/2023 19:00 - Atualizado em 25/06/2023 19:38
Destroços do Titanic e o submersível: turismo perigoso no fundo do Atlântico. Soberba e dualismos morais.
Destroços do Titanic e o submersível: turismo perigoso no fundo do Atlântico. Soberba e dualismos morais. / Divulgação/OceanGate
Foi uma semana marcada pela disputa mórbida (ou fúnebre) do interesse das pessoas em desgraças: a implosão de um submersível com cinco ricaços no fundo do Atlântico era acompanhada em contagem regressiva pelo mundo, enquanto o naufrágio de uma embarcação que partia da Líbia com 700 pessoas, a maioria paquistaneses, era lembrado para mostrar incoerências éticas e contradições morais.

Embora ache que tragédias não sejam medidas em quaisquer graus que as tentem enquadrar — tragédia é tragédia —, e que não seja possível categorizar vidas humanas, é muito perceptível que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, como cantou Elza Soares. Carne refugiada e paquistanesa boiando no mar entra na mesma lógica vil e perversa. Quando não é pontual — como o resgate de mineiros no Chile e de crianças de um time de futebol presas numa caverna na Tailândia — dramas humanitários são comumente vistos com distanciamento. Basta lembrar do auge da pandemia: a contagem de mortos já era acompanhada no noticiário como se fosse o tempo, algo do cotidiano.
O que não se relaciona, obrigatoriamente, como a cobertura midiática ou da imprensa profissional. No caso do Titan, do submersível, havia uma narrativa (palavra mágica para a política, traduzida do storytelling das redes sociais) com enredo, drama, personagens, heróis e vilões, suspense e morte. E ela foi potencializada justamente pelos julgamentos ideológicos de alguns: “milionários tem que morrer mesmo”, diziam alguns comentários  nas notícias, mesmo em outras roupagens linguísticas.
O empresário paquistanês Shahzada Dawood e seu filho Suleman Dawood; o fundador da OceanGate Stockton Rush; o empresário britânico Hamish Harding; e o ex-comandante da Marinha Francesa Paul-Henry Nargeolet.
O empresário paquistanês Shahzada Dawood e seu filho Suleman Dawood; o fundador da OceanGate Stockton Rush; o empresário britânico Hamish Harding; e o ex-comandante da Marinha Francesa Paul-Henry Nargeolet. / Reprodução

O assunto foi “engajado” (outro termo mágico) por essa disputa de moralismos, da justificativa de se odiar alguém pela exploração humana que a concentração de renda provoca, ou pela necessidade de olhar para os cinco que, mesmo se submetendo a pressão brutal do fundo mar por um capricho, gastando milhões, não deixaram a categoria de humanos por isso. E ainda tinha o tic-tac de horas restantes de oxigênio disponível, antes de se confirmar a implosão do submersível. Se não bastasse, a história envolvia o naufrágio que gera curiosidade e espanto desde 1912: o Titanic.

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Não era tão espantoso que a narrativa do submersível ter sido mais acompanhada que o naufrágio de refugiados no Mediterrâneo. Tragédias com barcos de imigrantes são tão comuns que se normalizam, assim como se naturaliza a morte de milhares de civis sem rostos em zonas de guerra. Não se pode culpar a imprensa por narrar, acompanhar e divulgar o que gera curiosidade nas pessoas. É como culpar o mensageiro por uma notícia ruim, ou bater no carteiro por entregar uma fatura. Isso sem citar os algoritmos que entendem algo como relevante apenas pela quantidade de curtidas e comentários.


Guerras e narrativas

Outro assunto despertou interesse na semana. Uma possível reviravolta em uma longa guerra provocada pela invasão Russa à Ucrânia, que se arrasta desde 24 de fevereiro de 2022, quando bombas russas começaram a cair sobre Kiev e tropas de infantaria marcharam sobre cidades do leste da Ucrânia. Ievguêni Prigojin, líder do Grupo Wagner, disse em alto e (quase) bom som, que as justificativas dadas pela Rússia para invadir o país vizinho são falsas.

O Wagner, criado em 2014, é um grupo formado por mercenários que o Kremlin usa para travar suas guerras. Apoiado por oligarcas russos, o presidente Vladimir Putin comanda um país que precisa da violência e de braços armados estatais e privados — mercenários. Putin e esse grupo enfrentaram uma disputa interna nesta semana que colocou tanques nas ruas a caminho do Kremlin.
Grupo paramilitar Wagner.
Grupo paramilitar Wagner. / Reprodução

Mais um episódio do conflito interno do Wagner e o alto escalão do Exército russo, mas que dessa vez a corda foi esticada a níveis perigosos para Putin. A coisa toda terminou em um acordo nebuloso que perdoou os amotinados e o comandante rebelde foi exilado na Bielorrússia.

O nome Wagner não é sem razão, tampouco para homenagear algum guerreiro russo. O grupo assim se denomina em alusão ao compositor alemão Richard Wagner (1813-1883), cuja música Adolf Hitler adorava. Com forte ideologia neonazista e nacionalista, o grupo de mercenários russos cultua o regime que provocou o holocausto — morte, genocídio, preconceito, guerra, horror e sadismo resumidos em um compositor de música clássica.

Richard Wagner era conhecido pelo seu antissemitismo, e escrevia livros e panfletos de ódio aos judeus e a suas capacidades artísticas. Wagner entendia que a música e o intelecto alemão eram superiores, e que manifestações artísticas de judeus ou qualquer outra gente estrangeira, eram menores e deviam ser banidas. Não sem razão, era o compositor favorito de Hitler, que usava suas músicas em comícios e eventos do regime nazista. A arte influenciou um regime genocida e quase dominou o mundo na Segunda Guerra Mundial.

O Titanic e o submersível dos milionários têm muito em comum, para além do fato que suas narrativas se encontram. Nos dois casos, a luta do homem em desafiar a natureza, confiando cegamente em seus engenhos técnicos, foi punida pela soberba. O Titanic foi feito para ser insubmersível, e muitos acreditavam que nada poderia afundar aquele barco. Já nasceu acreditando na imortalidade. Os milionários acondicionados em um minúsculo veículo subaquático talvez também tenham acreditado.

Hitler e Putin também têm muito em comum, para além das influências artísticas. Dois ditadores que tiveram (ou ainda tem, no caso russo) poder suficiente para destruir o mundo como o conhecemos. O primeiro foi punido por soberba e megalomania genocida. O segundo, ainda está sendo tratado (julgado?) pela história.

Arte é do bem, e ditadores são do mal. A vida de cinco milionários vale menos que a de 700 refugiados. A história sempre prova que o mundo real não é binário assim; a realidade é pouco afeita à dicotomias.

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