Nas últimas semanas, é possível que um outro marco de Campos esteja no imaginário de boa parte dos munícipes: a livraria mais antiga do Brasil, a Ao Livro Verde. Na última terça-feira (18), um abaixo-assinado pedindo a manutenção desse patrimônio vivo passou de 1.000 assinaturas, e conta com o apoio de mais de 25 entidades.
O motivo do movimento, batizado de “SOS Ao Livro Verde”, foi o pedido de autofalência da livraria, que tramita na 5º Vara Cível de Campos, desde maio. Com dívidas acumuladas que somam quase dois milhões de reais, o primeiro estabelecimento que vendeu livros no Brasil corre sério risco de deixar de existir.
Há 179 anos na rua Governador Teotônio Ferreira Araújo, número 68, o prédio verde se destaca entre as magazines vizinhas, mesmo com os emaranhados de fios que cobrem parte de sua fachada. A cidade e o centro se transformaram, até a rua mudou de nome — já sendo rua Bananal e Barão de Cotegipe —, mas a livraria Ao Livro Verde permaneceu.
Campos pioneira
O público da Ao Livro Verde não se constitui apenas após a abertura de suas portas. Já havia demanda na cidade para que um comércio se dedicasse exclusivamente ao mercado de livros; de cultura, essencialmente. Naquela época, com a prosperidade vinda da cana-de-açúcar, a cidade experimentava as benesses e os dissabores da urbanização.
Até 1769 havia em Campos mais de 56 usinas de açúcar. Pouco mais de 10 anos depois, esse número subiu para 168. Nos primeiros anos do novo século, cresceu para 360, chegando a ter 400 engenhos e 12 destilarias em 1820.
O dinheiro e a realidade fabril de Campos trouxeram alterações significativas na realidade social, cultural, política e econômica da região, embora ainda limitada a uma elite agrária como núcleo central, mas que movimentava algumas centenas de contos de réis (unidade monetária da época).
E com os imigrantes europeus, vieram outros tipos de investimentos e principalmente comércios, já que em sua maioria, eles se estabeleceram como comerciantes. Uma dessas casas viria a ser o primeiro comércio livreiro do Brasil, estabelecido em Campos com o nome de Ao Livro Verde, em 1844.
A influência francesa foi uma das mais visíveis, tanto na produção de açúcar, tendo nesses imigrantes alguns especialistas nesse cultivo. Influenciou também no modo europeu de hábitos e cultura, inclusive com algumas famílias adotando o idioma francês. A livraria Ao Livro Verde aproveitava essa diversidade, e vendia livros e periódicos em várias línguas, para públicos diversos, abrangendo o feminino e juvenil.
Além dos livros, a alta costura da França tinha lançamentos simultâneos na capital, Rio de Janeiro, e em Campos, além de joalherias e chapelarias que vendiam suas peças no centro campista. A energia elétrica, que foi pioneira nas terras goitacá (quando falamos em iluminação pública, em postes de rua), teve relações com o comércio e a imprensa campista (também uma das primeiras no Brasil).
Campos atrasada
A Ao Livro Verde se instalou em Campos por todo cenário e importância que a cidade apresentava, e por evidentes interesses comerciais, porém desde o início cumpriu papéis relacionados à cultura e a movimentos sociais. A livraria chegou a ser palco de reuniões abolicionistas em uma cidade de ampla utilização de mão de obra escrava.
Campos é, ainda hoje, uma cidade de contradições. Apesar de apresentar ciclos econômicos relevantes — gado, cana e petróleo — manteve altos índices de desigualdade social. A escravidão foi abolida com criminoso atraso em uma terra onde o luxo e o poder não souberam abrir mão da exploração humana. Princípios básicos, que se tornaram universais quase 100 anos antes (Convenção Francesa de 1789), mas não tiveram o apelo necessário na sociedade campista, com debates restritos a alguns segmentos.
Contraditoriamente, vozes que lutavam contra a escravidão tiveram projeção em Campos e para além da cidade, como a do campista José do Patrocínio, por exemplo. Em Campos constituiu-se um importante núcleo abolicionista, e ambientes como a Ao Livro Verde foram fundamentais, servindo de zonas seguras para ideias de progresso, transformação social e intelectual.
Apesar dessas movimentações, e voltando às contradições de Campos, não havia um projeto educacional condizente com uma cidade que se propunha cosmopolita e celeiro de personagens, construções e histórias fundamentais para o Brasil. A cidade só veio a ter um colégio secundário gratuito nos anos 1880: o Liceu de Humanidades de Campos, que nascia de um decreto provincial, com início das suas atividades em 1884.
Salvar a livraria, para que?
Porém, é dever do Estado (aqui representado no ente municipal) preservar a cultura de seu povo, e resguardar os patrimônios históricos; por lei e por um pacto geracional não escrito, fundamental para que a população de um local entenda de onde surgiu e para onde quer ir.
Há diversas formas de ajudar a manutenção da livraria mais antiga do Brasil, muitas dessas propostas estão no movimento da sociedade civil “SOS Ao Livro Verde". Ao poder público, cabe no mínimo, a desapropriação de um prédio (já tombado) que há 179 anos é um dos principais personagens de Campos. Existem instrumentos legais para isso, perfeitamente possíveis. Imóveis de relevância infinitamente menor já foram desapropriados na cidade.
As respostas e motivações para salvar a Ao Livro Verde não estão em indivíduos, ou mesmo no governo. Devem ser construídas coletivamente. Ou estaremos, mais uma vez, enterrando parte de nossa história, e nos restará apenas ser a primeira cidade a ter luz elétrica.