Aquele teatro demolido era de propriedade particular. O usineiro Francisco de Paula Carneiro — o Capitão Carneirinho — construiu não apenas o Trianon, inaugurado em 1921, mas outras casas como o Teatro Orion, inaugurado em 1913, e foi administrador do Colyseo dos Recreios, outro importante estabelecimento de entretenimento de Campos.
Com 156 frisas , 554 cadeiras, 290 balcões, 29 camarotes e 610 galerias, o Trianon nasceu para ser uma das melhores casas de espetáculos do Brasil. Poucas capitais tinham um teatro assim, e o Rio de Janeiro passou a incluir Campos na rota do teatro, dança, cinema, música e outras tantas formas de arte e cultura.
Disse Carneirinho, na inauguração de seu teatro mais importante, o Trianon, como registra o livro “Nos Tempos do Trianon Campos se Diverte!”, escrito por Juliana Carneiro (pesquisadora, professora da UFF e neta de Carneirinho) e Victor Andrade de Melo (pesquisador e professor da UFRJ):
“Não estamos inaugurando o trabalho de um homem, mas sim o trabalho de um povo. É o Trianon que se ergue para as gerações vindouras, mais fortalecidas pelo amor à arte, à música e às letras (...) não esqueceremos da cultura intelectual de nossos filhos, aqueles que vão ter a responsabilidade dos destinos da Campos dos Goytacazes de amanhã”.
O teatro e a livraria
Quando o Trianon foi inaugurado, havia uma livraria próxima chamada Ao Livro Verde que já tinha 77 anos de existência. É preciso compreender que Campos dos Goytacazes era uma cidade estratégica para o Império, e continuou sendo para o país após a proclamação da República. O centro urbano de Campos era frequentado por “gente do povo”, mas também por políticos, jornalistas, artistas, gente do comércio e das usinas que movimentavam a economia da cidade.
Teatros, cinemas, a imprensa, elegantes cafés, livrarias, empórios e o casario de arquitetura eclética conferiam a Campos ares de centro urbano da capital. Ser capital do Estado, aliás, era um sonho cultivado por campistas.
Tudo ia bem, até que o mesmo combustível (o açúcar), que trouxe a pujança econômica e possibilitou todos aqueles estabelecimentos do Centro, começou a faltar. Uma forte crise, causada por fatores externos — mudança no regime dos preços, favorecimento do Nordeste e dificuldades de exportação — e internos — gastança, baixo investimento em tecnologia, mão de obra explorada — levou ao fechamento de diversas usinas, e à falência de muitos estabelecimentos comerciais.
No cenário de bancarrota das usinas e de Campos, o movimento comercial decai e o cenário cultural é abandonado. O Monitor Campista e a Folha do Comércio já não traziam a empresa do senhor Francisco de Paula Carneiro como proprietária do Trianon, em meados dos anos 1930, e alguns anos depois ele foi vendido. Capitão Carneirinho não teve mais como mantê-lo, e o insolvente, mas ainda belíssimo teatro, veio ao chão em 1975 depois de passar por mais alguns proprietários chegando no banco Bradesco.
Luciano D'angelo Carneiro, professor e articulador político, neto de Carneirinho, contou no livro, que sua filha Luciana escreveu sobre o Trianon, um fato que classificou como uma “ironia do destino”: seu pai, Sylla Carneiro, foi um dos principais responsáveis pela vinda do Bradesco para Campos.
Muitas casas dedicadas ao comércio de livros e papéis fecharam, mas a Ao Livro Verde permaneceu, mesmo com um Centro em decadência. Ela não foi o primeiro estabelecimento a vender livros no Brasil, mas se tornou a livraria mais antiga quando se recusou a fechar as portas. Quando o Trianon foi demolido em um ato irracional do Bradesco, a Ao Livro Verde já havia passado para a família Sobral, antes pertencente ao alemão Max Zuchner, sobrevivendo ao fato de que os clientes e o proprietário eram de nações inimigas na segunda grande guerra.
O poder
Uma das funções dos governos em uma democracia é equilibrar o jogo. Empresas nascem e sobrevivem tendo o lucro como objetivo final — é da natureza da atividade empresarial, mesmo “fortalecida pelo amor à arte” como o Trianon. Mas cabe ao poder garantir direitos fundamentais, exercendo funções estabilizadoras, alocativas e distributivas.
Não se trata de intervir na economia de forma a ser o Estado o único indutor, mas é preciso que alguns bens e direitos sejam amplos e não excludentes. É o caso da saúde e da educação, e também o caso da cultura. Nessa ótica, é essencial reduzir o que é chamado pelas ciências sociais de externalidades negativas: efeitos negativos causados por ações de um grupo ou indivíduo.
Demolições de prédios antigos, quando estes possuem relevância histórica, se enquadram nesses efeitos negativos, e cabe ao poder público a preservação, seja pelo instrumento do tombamento ou pela desapropriação.
Em 1919, a prefeitura de Campos desapropriou o Teatro São Salvador para o alargamento da rua Formosa. O interesse público prevaleceu sobre o patrimônio particular que estava em processo de falência. Embora tenha sido destruída, a casa de espetáculos foi declarada como utilidade pública e desapropriada em nome da coletividade. Alguns anos depois, o Trianon foi demolido sem que a municipalidade interviesse, sem que o direito difuso da cultura e da educação patrimonial fosse considerado.
O novo Trianon e o novo poder
Após o período de falência das usinas, conjugado com a ditadura militar no país, Campos entra numa letargia social e econômica. Como um território vocacionado para recomeços, um novo ciclo se inicia com o petróleo, mas as consequências já eram sentidas.
O Centro Histórico e os Solares foram abandonados, e a continuidade da urbanização não levou em consideração os elementos que a cidade tinha construído até então, além de criar territórios periféricos desordenados.
Mas a efervescência cultural também deixou frutos. Grupos teatrais de Campos construíram novas lideranças — processo político também visto em outros lugares do Brasil. Uma delas, um jovem chamado Anthony Garotinho, que viera a ser prefeito de Campos e governador do Estado do Rio.
A plataforma de campanha de Garotinho que o levou ao primeiro mandato no executivo campista foi muito baseada em propostas culturais, e no sentimento de culpa que a demolição do Trianon deixava ainda presente naqueles anos, e que parte da cidade atribuía aos usineiros. Com essa plataforma, Garotinho desbancou Zezé Barbosa, um dos últimos representantes do período iniciado com o crescimento das usinas. Sagrou-se vitorioso em 1989, elegeu seu sucessor, Sérgio Mendes, para o período posterior, e foi eleito novamente em 1996.
Dois anos depois, Garotinho entregava o “Novo Trianon”. Em 1991 as obras do novo teatro começaram, e os recursos vieram do mesmo banco que havia destruído o antigo. A construção de uma nova casa de espetáculos não simbolizava a volta da Campos vigorosa dos tempos dos cafés e livrarias movimentadas, mas sim marcava um novo tempo, onde o “moderno” deveria substituir o “velho”, e teria no petróleo um novo combustível econômico.
Ao Livro Verde e Trianon: mesmo destino?
Esses novos tempos e novos poderes não produziram no poder público a sensibilidade com o patrimônio. Sem ações de educação patrimonial efetiva, a população pouco conhece da história da cidade, e o que poderia ser um Centro Histórico de uma capital se transformou em abandono.
Poucos patrimônios restaram de pé, e destes, poucos estão em boas condições. Os exemplos de prédios minimamente preservados possuem em comum a tutela do poder público, são administrados pelo ente municipal ou estadual. O Museu Olavo Cardoso é o exemplo oposto, está em ruínas mesmo pertencendo a municipalidade, e segue sem uso.
A situação da livraria mais antiga do Brasil segue sem uma solução, apesar do movimento de sociedade civil “SOS Ao Livro Verde” ter angariado mais de 1800 assinaturas e diversas entidades apoiadoras. Falta agora o que faltou ao Trianon, ao Hotel Flávio, ao Solar dos Airizes e da Baronesa, a cabeça do monumento a Tiradentes, e a tantos outros patrimônios: política pública cultural eficiente.