Preservar é um ato de cultura. A palavra possui como significado uma “série de ações cujo objetivo é garantir a integridade e a perenidade de algo; é defesa, salvaguarda, conservação”. Ou seja: a conservação de um patrimônio histórico é uma ação cultural. Certamente, é o poder público que possui as ferramentas necessárias para criar políticas culturais de valorização de monumentos ou cidades históricas, seja através da criação de leis específicas para tal — como o tombamento —, seja ainda através da disponibilização de verbas públicas ou captação de recursos financeiros da iniciativa privada.
A questão se apresenta: em Campos dos Goytacazes, o tombamento — única prática de preservação utilizada pelos órgãos competentes—, tem preservado o patrimônio campista?
A reposta para essa indagação não pode ser diferente de um sonoro NÃO! Como exemplo mais atual e simbólico, temos o Solar dos Airizes, primeiro patrimônio material tombado na cidade a nível federal (IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em destaque desde a semana passada quando ocorreu a queda de uma de suas esquadrias devido à sua evidente falta de manutenção. Campos não está salvaguardando seu patrimônio e, consequentemente, a memória e identidade campista.
Em recente artigo, intitulado “Políticas públicas de preservação do patrimônio histórico no Brasil. Três estudos de caso (1973-2016)” a historiadora Fania Fridman, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) destacou três programas brasileiros que visaram à preservação do patrimônio histórico — o Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas, o PCH (1973-1979), o Monumenta Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Urbano (1999-2010) e o Programa de Aceleração do Crescimento – Cidades Históricas (2009-2016) — e cita que desde o início de suas concepções já era entendido que “a importância dada ao patrimônio decorria do entendimento, já consolidado, de seu valor como mercadoria de consumo com enorme potencial e como recurso ideológico. De acordo com esse juízo, os bens culturais como âncoras para a oferta turística das cidades produziriam renda para a região e para o país”.
No Brasil de hoje, cultura e educação foram impelidas ao posto de “inimigas” da nação. Consideradas como “coisa de esquerdista” e, assim como o Meio Ambiente, são tratadas com descaso e com frequentes tentativas de flexibilização de leis de proteção e fomento.
No IPHAN, a chefia do órgão, cargo que deve ser ocupado por profissionais com formação em História, Arqueologia ou áreas relacionadas ao tombamento e conservação do patrimônio histórico e artístico, foi entregue à Larissa Dutra, graduada em Turismo e Hotelaria. A nomeação foi impedida pela Justiça Federal do Rio, porém teve decisão derrubada no último dia 16 pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Para a coordenação do órgão no Rio, foi escolhida a blogueira de inclinações bolsonaristas, Monique Aguiar, essa suspensa depois, pelo próprio Ministério do Turismo, por não possuir as qualificações exigidas por lei.
Ainda citando o artigo de Fridman: “atualmente presenciamos o desmonte de ministérios e de instituições (e não somente daquelas ligadas ao patrimônio), enfraquecendo iniciativas locais genuínas e a política de preservação da memória no país”. As questões nacionais se mostram como mais um entrave para Campos proteger seu patrimônio. Mas não justifica anos de descaso e falta de ações que buscassem a preservação do rico patrimônio histórico campista.
O Coppam
O Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos dos Goytacazes (Coppam) foi reformulado pela lei 8.487 de 2013. Sofreu alterações em sua composição e hoje conta com a participação da sociedade civil, do legislativo municipal e de secretarias, como Postura e Obras.
O Coppam tem caráter consultivo, deliberativo e executivo e ainda “poder de polícia” definido no mesmo ordenamento, em seu art. 34, para atuar na “preservação, controle e repressão de atividades que ponham em risco ou causem dano aos bens culturais, sejam eles materiais ou imateriais, público ou privados”.
Em seu artigo primeiro, parágrafo único, a lei já define a obrigação primeira do Município e do Conselho, em relação ao patrimônio: “o Poder Público Municipal dispensará especial proteção ao patrimônio histórico, cultural e natural do Município de Campos dos Goytacazes”. Estariam, os dois, conselho e municipalidade, exercendo sua obrigação de ofício? O patrimônio histórico, a identidade da cidade, os equipamentos públicos de cultura (como o Arquivo e Museu que estão instalados em prédios históricos tombados) estão recebendo “especial atenção” do poder Público Municipal? As leis municipais devem ser cumpridas, ou são meras letras frias sem sentido?
A situação deplorável do Solar dos Airizes, o corte de energia elétrica (que persiste) do Museu Histórico e do Teatro Municipal Trianon, o esvaziamento de pessoal especializado no Arquivo Waldir Pinto de Carvalho e também no Museu e outros tantos exemplos recentes, respondem as perguntas. Exemplos passados, corroboram. A “modernização” da Praça do Santíssimo Salvador, a demolição do antigo Trianon para se transformar em uma agência bancária e outras construções derrubadas na “calada da noite”, tornam as respostas, e as omissões decorrentes delas, criminosas.
Possíveis soluções
Sabendo que o tombamento faz parte deste conceito mais amplo que é o de preservação - que inclui o inventário, registros, vigilância e outras formas de acautelamento -, entendo que o tombamento não pode ser utilizado como única ferramenta de proteção. Devem ser criados mecanismos para preservação e leis para fundamentar a prática da preservação. Esta prática poderia estar inserida num plano de gestão urbana envolvendo a população, levando em conta os interesses econômicos com contrapartidas aos proprietários, o que poderá resultar num esforço coletivo para garantir a preservação. É inútil garantir a integridade física dos bens se a sociedade não se refletir nestes imóveis.
Além de identificar, registrar e documentar o patrimônio ainda existente, pesquisas municipais poderiam ser utilizadas como instrumento de análise dos principais conflitos e agentes sociais envolvidos na questão da preservação. Através desse entendimento, supostamente estariam aptas a indicar parcerias para viabilizar o desenvolvimento de projetos de conservação dos imóveis inventariados, servindo aos objetivos da construção de políticas de preservação.
Ainda discorrendo sobre parcerias, a desejável capacitação técnica do Coppam poderia ser viabilizada através de acordos firmados com o corpo técnico das academias a fim de garantir a habilitação para elaboração de projetos para viabilizar obras de conservação. A cidade de Campos dos Goytacazes possui três cursos de graduação de Arquitetura e Urbanismo, um de âmbito federal, no Instituto Federal Fluminense (IFF), e dois particulares. Segundo informação obtida junto ao instituto, no IFF já existem grupos e projetos de pesquisas de extensão e iniciativa científica que objetivam o estudo da cidade como um todo, não apenas focando a questão da preservação patrimonial, mas distinguindo também a mobilidade urbana, acessibilidade, educação patrimonial, entre outros.
Identidade, cidade e patrimônio, associadas à permanência dos lugares, são uma forma de preservação da memória coletiva. Numa cidade, o patrimônio, definido como a herança que recebemos do passado e que transmitimos às gerações futuras, é constituído pelos bens materiais e imateriais referentes à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade. A memória do que fomos, aprendemos e vivemos nos confere identidade, orientação, estimula a nossa cidadania e o viver em comunidade.
O Solar dos Airizes é detentor de valor documental, de identidade e memória, representando uma referência local, infelizmente escondida por sua decrepitude, como a maioria dos solares da cidade, demonstrando o distanciamento de seus proprietários com os bens culturais que possuem. É urgente, portanto, que o poder público municipal repasse todas as explicações necessárias sobre o tombamento e suas implicações, além do fornecimento de dados históricos sobre a importância do conjunto urbano ainda existente na cidade para o esclarecimento da população.
A preservação do patrimônio histórico deve estar em função de expô-lo aos indivíduos que, ao reconhecê-lo como parte de sua memória, se beneficiam da conservação, realizando uma ancoragem de suas referências de memória e identidade. A Educação Patrimonial é o caminho, portanto, a ser percorrido por possuir uma íntima relação com a cidadania, permitindo compreender a pluralidade de formação da sociedade de forma enriquecedora.
Assim, dependerá da atribuição de valor pela população ou pelos órgãos oficiais a decisão final sobre a conservação de determinado bem ou conjunto urbano. Mas afirmo: se não houver identificação da sociedade, mesmo que esta preservação seja apontada pelos órgãos de proteção do patrimônio, fatalmente se tornará um ato vazio.
E os tombamentos, continuarão sem garantir nada em Campos.