Quando nasce Campos? "Se for para comemorar aniversário, não se pode partir da 'idade adulta'. É um contra senso" - Avelino Ferreira
22/05/2021 20:53 - Atualizado em 22/05/2021 21:04
Primeira de uma série de entrevistas sobre as discussões que continuam na atual legislatura da Câmara de Vereadores de Campos dos Goytacazes sobre a data de nascimento da cidade. 
Quando nasce uma cidade? Como podemos definir o momento exato em que um aglomerado de pessoas e construções passe a se tornar uma urbe, com ruas e gentes, determinações e identidades próprias? A data de fundação de um lugar é determinada por diversos fatores e movimentações. Inclusive dos povos originários que viviam naquele território, que na maioria das vezes são expulsos ou explorados por processos de colonização e urbanização.
O caso da nossa cidade não foi diferente. Além do índio Goytacá, habitavam aqui grupos indígenas como os Puris, Coroados e Guarulhos. Mas, estaria a história de Campos dos Goytacazes, enquanto cidade, iniciada nesse contexto? Havia nos povos originários a organização social, econômica e administrativa para podermos determinar o nascimento de uma cidade como a entendemos na contemporaneidade?
É essencial definirmos uma data que possa comportar a documentação histórica, os testemunhos e a literatura disponível, mas também que possa produzir no campista o reconhecimento de sua história. Inclusive pela obrigatoriedade de valorizarmos nossos primeiros habitantes e contarmos a história de exploração e morticínio que passaram durante a colonização. É preciso apresentar Campos aos campistas. Mostrar o quão profunda é a sua história e quantos antepassados lutaram por essa terra para que hoje possamos chamá-la de nossa, de nosso local de nascimento, de nossa casa. Quando uma cidade completa ciclos de vida, é-lhe concedido o direito de comemorar um marco simbólico a partir do qual se rememoram passados, mas também se projetam futuros.
A Câmara de Vereadores de Campos dá continuidade nesta legislatura às discussões sobre o real — ou consensual, ao menos — nascimento da cidade. Para isso propõe a escuta ativa de historiadores, pesquisadores, jornalistas, e toda sociedade. Quatro correntes são defendidas no legislativo municipal, oriundas de encontros com a Comissão de Educação e Cultura, reuniões no plenário e defesas escritas. A primeira em 1532, com a doação das Capitanias Hereditárias — a segunda em1652 com a celebração da primeira missa em solo campista — a terceira 1º de janeiro de 1653 com a posse da primeira Câmara — e 29 de maio de 1677 com a criação da Vila pelo donatário e a posse de nova Câmara, essa de forma definitiva.
Por ordem de antiguidade das datas propostas, iniciamos uma série de entrevistas. Nesta, o ator, jornalista e escritor Avelino Ferreira conversa sobre a data que defende: 1532 – Doação das Capitanias Hereditárias.
Edmundo Siqueira - Quando Campos nasce, de fato? Qual a importância dessa discussão para a cidade?
Avelino Ferreira
- São Paulo celebrou, este ano, no dia 25 de janeiro, seus 467 anos. Mas o início, a criação da Vila, em 1532, foi em Santos ou São Vicente. Não existia São Paulo. Niterói tem como data de nascimento 22 de novembro de 1573, data em que o governador Estácio de Sá (1520-1567) presenteou às terras à direita (Terras D’Além) da entrada da Baía de Guanabara ao chefe indígena dos temiminós, Arariboia, que havia combatido os franceses que desejavam criar a França Antártica. Portanto, vai comemorar este ano, 448 anos. Não havia Pelourinho, casas de Câmara e Cadeia, nem Matriz.
É absurdo tecer considerações sobre datas, em relação aos povos nativos, porque eles não tinham escrita e as datações são feitas pelos invasores europeus. O argumento de que teríamos que buscar a data em que os “índios” aqui se estabeleceram não têm sentido para o que pretendemos. Repito: a data mais importante é o nascimento. Todas as demais datas são importantes. Assim como os anos de uma pessoa são comemorados ou de casamento, por exemplo. Podem ser, ou são, consideradas importantes, mas qualquer data além da certidão de nascimento é secundária. A justificativa de que a data deve ser da criação oficial da Vila perde sentido, quando a questão proposta é “aniversário”, portanto, “nascimento”. Quando a Vila é criada, ela é adulta. O mesmo com a posse da primeira Câmara, em janeiro de 1653. Se há uma eleição e posse de uma Câmara, é porque o “nascimento” foi muito antes. Se for para comemorar aniversário (quantos anos tem uma pessoa, uma cidade), não se pode partir da “idade adulta”. É um contra senso. O exemplo que dei e reproduzo aqui, e que é aceito por todos, é o do Brasil. Em 22 de abril de 1500 os invasores chegaram a um local que nunca viram e que acreditaram ser uma ilha. Constou como data de “nascimento do Brasil”. Falam em descoberta, o que não é verdade. Descoberta pelos portugueses, vá lá, mas nem aqui fincaram raízes, muito menos pelourinho, Câmara, cadeia e matriz. O que consideram como documento é uma carta de Caminha, sobre o “achamento” da ilha.
"É absurdo tecer considerações sobre datas, em relação aos povos nativos, porque eles não tinham escrita e as datações são feitas pelos invasores europeus. O argumento de que teríamos que buscar a data em que os “índios” aqui se estabeleceram não têm sentido para o que pretendemos. Repito: a data mais importante é o nascimento." (Avelino Ferreira)
No caso de São Paulo, em 1532, o caso é tão absurdo (enquanto argumento para relacionar o caso de Campos), porque nem existia a cidade, mas sim, uma “ilha”, na beira do mar, na região que conhecemos como Santos. 
No caso de Niterói, foi a doação das terras a uma tribo chefiada por Arariboia. Nem Câmara, nem cadeia, nem matriz, nem pelourinho.
Ou seja, no nosso caso, houve uma certidão em 1532. O contra argumento de que foi a criação das capitanias, e por isso não vale, porque todas teriam a mesma data de nascimento, eu refuto com uma analogia, presente agora nas redes sociais, dos nônuplos (número nove) que uma mulher deu luz. Não terão os nove irmãos a mesma data de nascimento? Se um ou dois ou mais morrerem (nosso humanismo religioso não nos permite pensar nisso), eles não nasceram. Serão apagados da história a ser contada pelos pais?
Cito esse fato para discordar de quem diz que a Vila da Rainha, de Pero de Góis, não pode servir como datação, porque anos depois ela foi destruída. Nova tentativa com o filho, Gil de Góis, com a Vila de Santa Catarina das Mós, também não vale, porque anos depois ela também foi destruída. Nem mesmo está sendo cogitada a data de doação da sesmaria aos Sete Capitães, em 1627. Sequer o ano de reconhecimento dessas terras, em 1632 e o início da colonização, em 1633. Por que colocaram um curral (ou dois) para a criação de gado e foram buscar mais pessoas para ocuparem as terras e, por isso, não vale?
Mas vale o avistamento da “ilha” em 22 de abril de 1500? Vale a doação de um pedaço de terra aos nativos em 1573 (caso de Niterói)? Ou a criação da Vila (primeira do Brasil) em 1532 na praia de Santos e que vale para São Paulo, que sequer foi imaginada à época?
Ou... bem, vou concluir dizendo algo inaceitável para quem não consegue re-fletir, fletir para dentro (ou para trás): não existe fato. Existe versão. Se algo não é narrado, não existiu e não existe. É como um meteoro que neste exato momento chocou-se com outro em Saturno. Não é fato, porque não sabemos, não há versão sobre o fenômeno. Portanto, o que existe são narrativas. Bilhões de pessoas acreditam que uma cobra falou. Porque há uma narrativa mítica que uma cobra falou. Mais imbecilidade que isso, eu não conheço. É interessante uma cobra falante (ou qualquer outro animal), nos contos infantis, nas lendas (também narrativas). Mas os fiéis religiosos têm a narrativa mítica como verdade histórica.
Então, nascimento pode ser quando um sujeito completa 20 anos. Tudo é uma questão de narrativa. E os historiadores “sérios” se atém a documentos “originais”, quando estes já são secundários. Não existe documento primário, pois é algo inscrito ou escrito, pintado etc., por algo ou alguém. E sendo alguém, obviamente, a “verdade” é a dele, a partir de sua cultura, suas crenças, sua autoridade etc. Mas insistimos (principalmente jornalistas e historiadores) em que “fato é fato”. Advogados também, acusando ou defendendo um criminoso, insistem em: “vamos nos ater aos fatos”. Todos sabemos que são narrativas.
Digo que a discussão é importante porque temos uma festa que data de 1652, uma Câmara que data de 1652, as quatro jornadas de Benta Pereira, feita heroína posteriormente, que são do século XVIII e comemoramos o aniversário de Campos como 28 de março de 1835. Pior: até jornalistas se referem como "emancipação". Isso gera confusão mental (que não prejudica porque as pessoas não ligam) porque como explicar que há uma festa de 369 anos, com uma cidade que tem 169 anos? Como falar dos Sete Capitães em 1632 e uma cidade que é de 1835? Como explicar um Solar (o prédio mais antigo de Campos ainda "vivo") é do século XVII e a cidade, do século XIX? Como discorrer sobre a capitania de Pero de Góis, criada em 1532 e doada em 1536, numa cidade que é de 1835? Falta lógica. E qualquer data anterior a 1532 não pode ser considerada como nascimento. É isso.
Edmundo Siqueira - As discussões até aqui originaram quatro teses. Além da sua, existe outra corrente que você perceba mais coerência histórica ou social?
Avelino Ferreira - Ante tudo isso, minha tendência é concordar com o professor doutor Aristides Arthur Soffiati Netto: qualquer que seja a data, não importa, pois trata-se apenas de narrativas. Sejam elas coerentes ou não. Derrotado, concordo com Sylvia Paes, de que, para que todos possam comemorar, o 29 de maio é a melhor data. Isso porque 1º de janeiro é uma data quase mundial e não haverá a mínima condição de se comemorar “a altura”, o aniversário da cidade. O mesmo para a data religiosa, 06 de agosto. E, no meu caso, 08 de dezembro, mês de festas e fim das aulas. Vai passar despercebido. Já o 29 de maio todos poderemos comemorar. Que beleza!
 
 
 
 

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