A vez e a voz de Lagoa de Cima
- Atualizado em 23/05/2021 08:19
POR GRAÇA D´ÂNGELO, NO BLOG DIJAOJINHA EM 2011: 
Vou mudar um pouco o rumo da prosa porque na minha infância não existiu Atafona nem Grussaí, que só fui conhecer com mais de 15 anos.
As lembranças que tenho (e são muitas!) estão ligadas à "roça", assim chamávamos a fazenda dos meus avós, onde invariavelmente passávamos as férias de julho e as daqueles quase 3 meses do início do ano.
Era bom demais, não? Digo passávamos porque éramos 18 primos, às vezes mais, e alguns primos "postiços" (Luis Augusto, Cacá, Chichica - filhos de Maria Alice Faria, muito amiga da nossa família, além de outros...).
Feita essa ressalva, a história que me vem com toda nitidez é a nossa ida para a roça.
USO DE CAMINHÃO
A estrada era de terra. Não havia nenhum meio de transporte além de um ônibus furreca que levava muitas horas para chegar ao destino porque ia parando... não dava para ir nele!
Diante de tanta dificuldade, como éramos muitos, um tio que tinha um armazém (tio Tavinho) disponibilizava um caminhão para nos levar.
O motorista era Seu Paulino. Se soubesse desenhar, faria um retrato dele, ainda hoje, tamanha a nitidez com que me lembro de sua fisionomia!
A VIAGEM
A viagem era hilária! Entre sacos de farinha, arroz, feijão, pão, etc... (lá não tinha onde comprar), nos acomodávamos, felizes, comandados por Babá, que, na verdade, era a babá de Claudio, Luciano e Gilberto - meus primos.
A figura de Babá era um caso à parte. Sempre com um lenço amarrado à cabeça, ia cumprimentando a todos que encontrava pelo caminho:
- Ô seu Zeca, como vai?
- Olá Dona Maria!
- Tudo bem, Neneco?
E nós morríamos de vergonha!
Na verdade parecia um pau-de-arara.
A poeira comia solta... mas quando chegávamos nos sentíamos no paraíso!
Eram muitos dias de contato com a natureza, passeios a cavalo, banhos de rio e de lagoa, muitas brincadeiras e algumas brigas, mas isso é assunto para outras histórias.
A VIDA NA ROÇA
Contar as viagens para a roça (Lagoa de Cima) foi para mim mexer num vespeiro.
A todo momento me deparo lembrando de coisas que estavam escondidas num daqueles esconderijos que depois esquecemos onde guardamos!
Uma das lembranças que me veio foi a noite na fazenda. Vi todas aquelas crianças (mais ou menos 18 ou 19) de cabelos molhados depois de tomarem um refrescante banho de rio (rio Ururaí) aguardando a hora do jantar.
Era interessante porque, como éramos muitos, os adultos (Babá, tia Cyrene ou quem estivesse responsável por nós), iam fazendo os pratos e íamos nos acomodando numa grande mesa que está lá até hoje.
GOIABADA COM QUEIJO
Tínhamos que comer tudo e não tínhamos muito o direito de escolha. Naquele tempo era tão democrático!
Na hora da sobremesa, o melhor momento, fazíamos uma fila e cada um pegava sua ração: invariavelmente um sanduíche de goiabada com queijo.
Às vezes saía briga pela disputa do sanduíche maior. Mesmo que tivesse outro doce, nós, crianças, sempre preferíamos essa sobremesa.
Deve ser por isso que até hoje adoro goiabada com queijo, para mim, uma das grandes invenções da humanidade!
JOGO DE BARALHO
Depois do jantar, era a hora do jogo de baralho dos adultos que, liderados pelo meu avô, jogavam canastra ou trunfo, e das brincadeiras das crianças.
As principais eram: pera (cumprimento de mão), uva (abraço), maçã (beijo) e quando ficamos maiores foi introduzida a banana (sem analogia - que era um beijo na boca); e o famoso teatrinho que, por conta dele, tenho que abrir um espaço especial para falar da minha prima Eleonora (D'Angelo) que era realmente uma artista!
LISBOA ANTIGA 
Ela organizava o espaço da apresentação, os números a serem apresentados, cantava (ninguém cantava "Lisboa Antiga" como ela), dançava e às vezes dava broncas nos convidados por não respeitarem o recinto e não se comportarem bem, como foi o caso do administrador da fazenda que, assistindo a apresentação, colocou o pé sobre a cadeira e começou a coçar os dedos:
- Seu Manel, o senhor não tem educação, não? Aqui não é lugar de ficar coçando o pé. É um teatro. Por favor, abaixe esse pé e sente-se direito!
Naquele tempo também se usava tamanco na fazenda, mas ela proibia que se entrasse na sala de tamanco...
HORA DE DORMIR 
Depois de tantas brincadeiras e risos, chegava a hora de "ir para a cama", como diziam os adultos.
Aí era outra farra! Porque na fazenda, naquela época, não havia luz elétrica. Então as salas eram iluminadas com um lampião a querosene e os quartos com velas.
Na hora de dormir cada um pegava sua vela para trocar de roupa, ir ao banheiro escovar os dentes, etc. ... e estava pronto para dormir, só que isso ainda ia levar um tempo para acontecer pois na escuridão dos quartos (um dos meninos e outro das meninas), as conversas e brincadeiras continuavam com as famosas guerras de travesseiros e tantas outras!
Por fim, íamos, tal como as velas, apagando um a um até cairmos no mais profundo sono. O sono dos anjos.
FORTALECIMENTO
Que saudades tenho daquela época!
Hoje, revivendo aqueles momentos, para mim mágicos, a sensação é de que aquelas vivências me fortaleceram emocionalmente para, na vida adulta, lidar com as perdas, decepções, dificuldades...
Sobre o autor

Saulo Pessanha

saulopessanha@fmanha.com.br

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