Quarta - e última - entrevista da série sobre as discussões que continuam na atual legislatura da Câmara de Vereadores de Campos dos Goytacazes sobre a data de nascimento da cidade.
Quando nasce uma cidade? Como podemos definir o momento exato em que um aglomerado de pessoas e construções passe a se tornar uma urbe, com ruas e gentes, determinações e identidades próprias? A data de fundação de um lugar é determinada por diversos fatores e movimentações. Inclusive dos povos originários que viviam naquele território, que na maioria das vezes são expulsos ou explorados por processos de colonização e urbanização (confira reportagem da Folha aqui).
O caso da nossa cidade não foi diferente. Além do índio Goytacá, habitavam aqui grupos indígenas como os Puris, Coroados e Guarulhos. Mas, estaria a história de Campos dos Goytacazes, enquanto cidade, iniciada nesse contexto? Havia nos povos originários a organização social, econômica e administrativa para podermos determinar o nascimento de uma cidade como a entendemos na contemporaneidade?
É essencial definirmos uma data que possa comportar a documentação histórica, os testemunhos e a literatura disponível, mas também que possa produzir no campista o reconhecimento de sua história. Inclusive pela obrigatoriedade de valorizarmos nossos primeiros habitantes e contarmos a história de exploração e morticínio que passaram durante a colonização. É preciso apresentar Campos aos campistas. Mostrar o quão profunda é a sua história e quantos antepassados lutaram por essa terra para que hoje possamos chamá-la de nossa, de nosso local de nascimento, de nossa casa. Quando uma cidade completa ciclos de vida, é-lhe concedido o direito de comemorar um marco simbólico a partir do qual se rememoram passados, mas também se projetam futuros.
A Câmara de Vereadores de Campos dá continuidade nesta legislatura às discussões sobre o real — ou consensual, ao menos — nascimento da cidade. (confira aqui, aqui e aqui as repercussões na Câmara) Para isso propõe a escuta ativa de historiadores, pesquisadores, jornalistas, e toda sociedade. Quatro correntes são defendidas no legislativo municipal, oriundas de encontros com a Comissão de Educação e Cultura, reuniões no plenário e defesas escritas. A primeira em 1532, com a doação das Capitanias Hereditárias — a segunda em 1652 com a celebração da primeira missa em solo campista — a terceira 1º de janeiro de 1653 com a posse da primeira Câmara — e 29 de maio de 1677 com a criação da Vila pelo donatário e a posse de nova Câmara, essa de forma definitiva.
Por ordem de antiguidade das datas propostas, iniciamos uma série de entrevistas (veja a primeira aqui, a segunda aqui e a terceira aqui). Nesta quarta (e última) entrevista, para defender 'uma data para Campos dos Goytacazes', a historiadora Sylvia Paes traz as justificativas do dia 29 de maio 1677 com a criação da Vila pelo donatário e a posse de nova Câmara, essa de forma definitiva.
Edmundo Siqueira - Quando Campos nasce, de fato?
Sylvia Paes - O século XVII foi um tempo vivido em Portugal e suas colônias, sob as Ordenações Filipinas, uma compilação jurídica que ordenou todas as ações do reino. Foi também um tempo que contabilizou perdas consideráveis para o império português. Os portugueses foram expulsos do Japão e da Etiópia, perdem o Ceilão, a feitoria portuguesa em Arguim, perderam Malaca para os holandeses e também Conchim, além de São Tomé e Príncipe (mais tarde reconquistada).
No Brasil, os holandeses também não dão trégua aos portugueses, primeiro conquistando a Bahia e depois Pernambuco onde se instalaram por um longo e próspero período. No Rio de Janeiro, os franceses faziam pressão para dominar a região na tentativa da fundação da França Antártica. Tudo isso vivenciado além-mar, não se compara as duras guerras de restauração do trono em seu próprio território.
Em meio às guerras de conquistas e reconquistas se destacou Salvador Correa de Sá e Benevides no comando de tropas de restauração de Angola, São Tomé e Príncipe. Por seus serviços o trono português o coloca como governador do Rio de Janeiro e lhe confere depois a Capitania de São Tomé, até então não totalmente ocupada por seus antigos donatários os Sete Capitães.
Entre os deveres de um donatário de capitania para com a coroa portuguesa estava primordialmente o de fundar vila, eleger a câmara, erguer igreja e o pelourinho (símbolo de poder usado desde a Idade Média na Península Ibérica). Também deveriam proteger o território de invasores estrangeiros, promover o povoamento, combater tribos indígenas que dificultassem a colonização e explorar economicamente as terras recebidas. O 2º Visconde de Asseca Salvador Correa de Sá e Benevides, em 15 de setembro de 1674 tomou posse da Capitania da Paraíba do Sul, antes São Tomé, que pertencera a Pero e Gil de Gois. Em 29 de maio de 1677, fundou em nome de El Rey, a Villa de São Salvador dos Campos dos Goytacazes, ergueu pelourinho e nomeou os representantes para compor a Câmara Municipal. Quanto a igreja ele não precisou erguer, uma vez que já havia uma capela junto a uma pequena povoação, que ele apenas deslocou para local mais seguro junto ao Rio Paraíba do Sul, constatando que o rio era a única “estrada” que nos ligava ao mundo exterior, era a porta de entrada da nova Villa.
Edmundo Siqueira - As discussões até aqui originaram quatro teses. Além da sua, existe outra corrente que você perceba mais coerência histórica ou social?
Sylvia Paes - Todas as datas que precedem esse fato fizeram parte de um processo histórico culminando com a fundação da Vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes. Podemos considerar tantos momentos históricos relevantes que listamos aqui datas possíveis de ocupação do nosso território que remontam ao século XVII e não ao século XIX, ou seja, não é possível que a data mais importante de nossa cidade seja a de sua elevação a categoria de cidade e não a de seu nascimento como Vila.
"Outrossim, não seria aconselhável consideramos a data de aniversário da cidade, mas sim a data de aniversário de Campos dos Goytacazes, uma vez que temos sim uma data de aniversário da cidade 28 de março de 1835, mas que não corresponde ao seu nascimento como núcleo político, econômico e social"
Em 8 de dezembro de 1633 teriam os Sete Capitães, donatários da Capitania de São Tomé, erguido um curral e uma choupana de palha, em Campo Limpo, que deixaram aos cuidados do índio Valério, com uma vaca e um touro. Em 10 de dezembro um novo curral foi levantado na ponta do Cabo de São Tomé, deixado sob os cuidados do escravo Antônio Dias com mais um touro e uma vaca e um terceiro curral, a pouca distancia deste, foi deixado aos cuidados do índio Miguel. Contudo os capitães donatários não cumpriram os ritos de donataria para com a Coroa Portuguesa, ou seja: erguer capela, pelourinho, eleger a Câmara e fundar uma Vila.
Em 1652 já a igreja católica havia instituído a freguesia de São Salvador dos Campos dos Goytacazes, tendo nomeado um pároco.
Em 1653 a primeira Câmara de Campos foi “criada em 1652, devido a discórdias no campo religioso”. Os sete camaristas tomaram posse em janeiro de 1653. Contudo esta além de não ter sido reconhecida pela corte portuguesa também não cumpriu os ritos da donataria, uma vez que não esteve presente a autoridade máxima em nome de El Rey.
Enfim, em 29 de maio de 1677 é finalmente criada a Villa de São Salvador dos Campos dos Goytacazes, capitania recebida pelo Visconde de Asseca, como prêmio pelos seus serviços a coroa portuguesa, que então em nome de El Rey, funda a Villa e cumpre os ritos de capitão donatário junto a corte conforme podemos observar no relato do memorialista Teixeira de Mello registrado acima. Mas como a história é processo, esse ato final de Salvador Correa não teria acontecido sem que os locais o tivessem provocado.
Nossa Constituição nos garante nos Art. nº 215 o pleno exercício dos direitos culturais e acesso a cultura e no Art. 216 protege o patrimônio cultural brasileiro. Para a turismóloga Claudiana Y Castro “A educação Patrimonial é uma ferramenta importante na construção da cidadania”, quando o educando realiza a construção do conhecimento de forma ativa e “comprometida com a transformação social”.
Sendo assim devemos pensar onde estarão nossos educandos na data de primeiro de janeiro? Não estarão nas escolas, mas em período de recesso escolar. Como poderemos dessa forma praticar educação patrimonial para uma formação cidadã? Outrossim, não seria aconselhável consideramos a data de aniversário da cidade, mas sim a data de aniversário de Campos dos Goytacazes, uma vez que temos sim uma data de aniversário da cidade 28 de março de 1835, mas que não corresponde ao seu nascimento como núcleo político, econômico e social.