Terceira entrevista da série sobre as discussões que continuam na atual legislatura da Câmara de Vereadores de Campos dos Goytacazes sobre a data de nascimento da cidade.
Quando nasce uma cidade? Como podemos definir o momento exato em que um aglomerado de pessoas e construções passe a se tornar uma urbe, com ruas e gentes, determinações e identidades próprias? A data de fundação de um lugar é determinada por diversos fatores e movimentações. Inclusive dos povos originários que viviam naquele território, que na maioria das vezes são expulsos ou explorados por processos de colonização e urbanização (confira reportagem da Folha aqui).
O caso da nossa cidade não foi diferente. Além do índio Goytacá, habitavam aqui grupos indígenas como os Puris, Coroados e Guarulhos. Mas, estaria a história de Campos dos Goytacazes, enquanto cidade, iniciada nesse contexto? Havia nos povos originários a organização social, econômica e administrativa para podermos determinar o nascimento de uma cidade como a entendemos na contemporaneidade?
É essencial definirmos uma data que possa comportar a documentação histórica, os testemunhos e a literatura disponível, mas também que possa produzir no campista o reconhecimento de sua história. Inclusive pela obrigatoriedade de valorizarmos nossos primeiros habitantes e contarmos a história de exploração e morticínio que passaram durante a colonização. É preciso apresentar Campos aos campistas. Mostrar o quão profunda é a sua história e quantos antepassados lutaram por essa terra para que hoje possamos chamá-la de nossa, de nosso local de nascimento, de nossa casa. Quando uma cidade completa ciclos de vida, é-lhe concedido o direito de comemorar um marco simbólico a partir do qual se rememoram passados, mas também se projetam futuros.
A Câmara de Vereadores de Campos dá continuidade nesta legislatura às discussões sobre o real — ou consensual, ao menos — nascimento da cidade. (confira aqui, aqui e aqui as repercussões na Câmara) Para isso propõe a escuta ativa de historiadores, pesquisadores, jornalistas, e toda sociedade. Quatro correntes são defendidas no legislativo municipal, oriundas de encontros com a Comissão de Educação e Cultura, reuniões no plenário e defesas escritas. A primeira em 1532, com a doação das Capitanias Hereditárias — a segunda em 1652 com a celebração da primeira missa em solo campista — a terceira 1º de janeiro de 1653 com a posse da primeira Câmara — e 29 de maio de 1677 com a criação da Vila pelo donatário e a posse de nova Câmara, essa de forma definitiva.
Por ordem de antiguidade das datas propostas, iniciamos uma série de entrevistas (veja a primeira aqui e segunda aqui). Nesta terceira, para defender 'uma data para Campos dos Goytacazes', Genilson Soares – Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Campos, Neila Ferraz – Professora e pesquisadora e Rafaela Machado – Coordenadora do Arquivo Público Waldir Pinto de Carvalho, apresentam, de forma conjunta, as justificativas do dia 1º de janeiro de 1653, quando foi empossada a primeira Câmara local.
Edmundo Siqueira - Quando Campos nasce, de fato?
Os fatos históricos e documentais mostram que Campos não nasceu simplesmente de uma canetada do Rei D. João III, quando dividiu o Brasil em capitanias hereditárias e muito menos pela tentativa dos dois donatários, que receberam a Capitania de São Tomé e fracassaram no empreendimento da colonização no século XVI. A iniciativa que começa a dar contornos de povoamento em nossa terra se dá no primeiro quartel do século XVII, quando em 1632 alguns militares portugueses, conhecidos como os “Sete Capitães”, receberam em sesmarias, as terras da planície goitacá que estavam abandonadas e implantaram na baixada campista, três currais para criação de gado. É a partir desse momento histórico que a cobiça pela nossa fértil terra de massapé, insere o General Salvador Correa de Sá e Benevides, que usando do seu prestígio político, convence os “Sete Capitães” a assinarem uma escritura dividindo a terra com ele e as ordens religiosas.
"Os fatos históricos e documentais mostram que Campos não nasceu simplesmente de uma canetada do Rei D. João III, quando dividiu o Brasil em capitanias hereditárias"
Já nesse período existiam famílias que tinham fixado moradia em um núcleo urbano em torno da primeira capela em louvor ao Santíssimo Salvador, no local onde se encontra hoje a Igreja de São Francisco da Penitência. De forma pioneira e com autorização do Ouvidor Geral, em dezembro de 1652, os moradores resolveram dar um ordenamento político administrativo ao povoado, fundando a Vila e escolhendo os seus representantes. Tal iniciativa, classificada pelo historiador Balthazar da Silva Lisboa (1761-1840) como uma “República”, cujo governo em que o povo exerce a soberania, foi concretiza com a posse dos vereadores em 1º de janeiro de 1653, conforme o documento da ata que se encontra no Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho.
Mediante aos fatos narrados, entendemos que a data de 1653, que tem o reconhecimento dos memorialistas e historiadores, possui o registro documental e reflete a resiliência do povo campista de ser protagonista do seu destino é o marco de nascimento de Campos. Pensamos que a constituição de nosso município se deu quando foi empossada a primeira Câmara local, portanto, de criação da vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes em 1 de janeiro de 1653. É bom lembrar que nestes tempos coloniais e também durante o Império, a vila constituía o centro de um município que hoje chamamos de cidade. Quando era criada a vila esta era dotada de uma câmara de vereadores cujas funções eram bastante extensas e administravam o município. Criada a vila constituía-se o município. Com a criação da vila nossa cidade tomou corpo, independência e poder e esta seria a data ideal para representar nossa cidade.
"Mediante aos fatos narrados, entendemos que a data de 1653, que tem o reconhecimento dos memorialistas e historiadores, possui o registro documental e reflete a resiliência do povo campista de ser protagonista do seu destino é o marco de nascimento de Campos"
Além disso, fato crucial a ser destacado é que apesar do pioneirismo da mesma, uma vez que é um dos raros casos ocorridos durante o período colonial em que a vila fora estabelecida a partir do povo – e não pelos donatários -, aquela Câmara havia sido legitimamente empossada, contando com carta de usança expedida pelo Ouvidor Geral do Rio de Janeiro, autoridade competente para tal. A criação da vila nos Campos dos Goytacazes não foi uma tarefa fácil. O movimento sofreu pressão dos poderosos proprietários desta planície que moravam no Rio de Janeiro e por isto foi considerado revolucionário. No Brasil apenas três lugares tiveram a criação de suas vilas de forma revolucionária: Campos dos Goytacazes, Parati e Pindamonhangaba. Por isso mesmo, diversas interrupções caracterizaram este rico processo de instalação municipal num processo marcado por perdas e ganhos, avanços e recuos. Criava-se a vila vinha uma interrupção. Instalava-se outra e seguia-se nova interrupção e assim por diante Esta realidade explica porque temos várias datas significativas da instalação da vila em Campos dos Goytacazes como: 1673, 1676, 1677 e assim por diante durante o século XVIII.
Edmundo Siqueira - Qual a importância dessa discussão para a cidade?
Quando Genilson Soares assumiu a presidência do Instituto Histórico e Geográfico de Campos em novembro de 2018, um dos assuntos recorrentes na Instituição sempre foi sobre a origem do povoamento da Cidade. Existe uma unanimidade entre os sócios do IHGCG, que a data comemorativa de 28 de março de 1835, quando da elevação da Vila a condição de Cidade, não reflete a nossa tradição histórica. Em sintonia com essa demanda, foi realizada em 26 de abril de 2019 no Museu Histórico a mesa redonda intitulada “Quanto anos tem nossa Cidade?” Na ocasião foram nossos convidados o major Oswaldo Almeida, o jornalista Avelino Ferreira e o museólogo Carlos Freitas. Em agosto do mesmo ano e de acordo com o Termo de Cooperação Técnica que o IHGCG tinha com a Câmara Municipal, recebemos a solicitação do então presidente Fred Machado, para que déssemos um parecer sobre o assunto. Nosso entendimento foi que mediante as diversas datas históricas, a forma mais democrática seria uma votação entre os confrades. E assim, realizamos a eleição em 28 de novembro do mesmo ano nas dependências da Emugle. A data escolhida pela maioria foi a de 1º de janeiro de 1653, tendo como justificativa o documento da Ata da Instalação da 1ª Câmara que se encontra sobre a guarda do Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho. O resultado da consulta foi comunicado a Câmara por meio do ofício nº 15 de 17 de dezembro de 2019.
A relevância desse democrático debate que hoje se realiza em nossa Casa de Leis, se dá primeiro pela possibilidade de elegermos uma data que seja mais expressiva que 28 de março de 1835 e que reflita a grande da trajetória do povo campista. Depois vem o reavivamento da nossa história, com a proposta de se levar de forma pedagógica, esse material para as escolas. É preciso que destaquemos aqui também que a defesa da data de 01 de janeiro de 1653, além de respeitar o que foi votado no próprio Instituto Histórico e Geográfico, confere grande destaque à iniciativa demonstrativa do caráter decidido e forte do povo campista que apesar da pressão sofrida não esmoreceu e levou a frente seus objetivos.
"A relevância desse democrático debate que hoje se realiza em nossa Casa de Leis, se dá primeiro pela possibilidade de elegermos uma data que seja mais expressiva que 28 de março de 1835 e que reflita a grande da trajetória do povo campista. Depois vem o reavivamento da nossa história, com a proposta de se levar de forma pedagógica, esse material para as escolas".
Além disso, fato crucial a ser destacado é que apesar do pioneirismo da mesma, uma vez que é um dos raros casos ocorridos durante o período colonial em que a vila fora estabelecida a partir do povo – e não pelos donatários -, aquela Câmara havia sido legitimamente empossada, contando com carta de usança expedida pelo Ouvidor Geral do Rio de Janeiro, autoridade competente para tal. A criação da vila nos Campos dos Goytacazes não foi uma tarefa fácil. O movimento sofreu pressão dos poderosos proprietários desta planície que moravam no Rio de Janeiro e por isto foi considerado revolucionário. No Brasil apenas três lugares tiveram a criação de suas vilas de forma revolucionária: Campos dos Goytacazes, Parati e Pindamonhangaba.
Por isso mesmo, diversas interrupções caracterizaram este rico processo de instalação municipal num processo marcado por perdas e ganhos, avanços e recuos. Criava-se a vila vinha uma interrupção. Instalava-se outra e seguia-se nova interrupção e assim por diante Esta realidade explica porque temos várias datas significativas da instalação da vila em Campos dos Goytacazes como: 1673, 1676, 1677 e assim por diante durante o século XVIII.
Assim, considerando o pioneirismo e a legitimidade da primeira vila criada em 1º de janeiro de 1653, reconhecemos aqui a importância dos primeiros vereadores, homens que buscaram fugir à tirania e usurpação de poderosos como Salvador Correia de Sá. A eles - Manoel Ribeiro Caldeira, Alvaro Lopes Vidal, João Gonçalvez Romeiro, Joan Davide Dalvarenga, Miguel Gonçalvez, Diogo Martinz, Manoel Soares da Costa e Adriano Daguiar Tavares, devemos a resiliência do povo campista de ser protagonista do seu destino.
Edmundo Siqueira - As discussões até aqui originaram quatro teses. Além da sua, existe outra corrente que você perceba mais coerência histórica ou social?
Se não tivéssemos a instalação da 1ª Câmara, ocorrido 24 anos antes, entendemos que a data do Auto da Posse da “Villa de Sam Salvador de Campos” em 29 de maio de 1677, seria a mais coerente, apesar de não termos conhecimento de nenhum documento que registre tal fato. É importante destacar também a fixação dos primeiros currais a partir da Baixada Campista a partir dos anos 30 do século XVII, bem como atentar para o pioneirismo da ocupação da capitania de São Tomé, por parte do fidalgo Pero de Góes, datas que ainda não foram mencionadas e que igualmente guardam grande importância.
É importante destacar também que vivenciando um movimento muito especial, no qual pretendemos a partir de uma análise da nossa História eleger uma data comemorativa cujo significado maior seja a origem de nosso município. O objetivo é determinar qual fato com sua respectiva data seria o mais significativo para marcar a fundação do município de Campos dos Goytacazes e, para isso, devemos pensar o que realmente queremos comemorar, pois são vários os aspectos que poderíamos abordar: queremos valorizar o início da colonização? Pretendemos focalizar os movimentos de povoamento? Temos interesse em analisar o papel da Igreja Católica na região através da criação de capelas e/ou freguesias? Ou o objetivo é detectar como se deu a construção deste município, sua autonomia política e organização administrativa?
"Se não tivéssemos a instalação da 1ª Câmara, ocorrido 24 anos antes, entendemos que a data do Auto da Posse da “Villa de Sam Salvador de Campos” em 29 de maio de 1677, seria a mais coerente, apesar de não termos conhecimento de nenhum documento que registre tal fato"
Nesse sentido, este grupo aqui representado pelo presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Campos, Genilson Soares, pela professora e pesquisadora Neila Ferraz e pela coordenadora do Arquivo Público Waldir Pinto de Carvalho, defende que a data de 1 de janeiro de 1653 - a criação da primeira vila de São Salvador de Campos dos Goytacazes com a instalação da Câmara Municipal, é a que melhor representa as origens da nossa organização político-administrativa.