Como se pudesse voltar
02/11/2024 | 14h00
Imagem gerada por inteligência artificial.
No fundo da loja, largado pela força do vento que o levara, um envelope jazia no vão entre o armário e a parede.
 
Não fosse um armário daqueles que nunca são tirados do lugar, não fosse uma parede tão pouco requisitada a ponto de nunca ser vasculhada com esmero, talvez o esquecimento não fosse.
 
A pilha de correspondências recebidas era um amontoado de propagandas talões boletos carnês cartas bilhetes, todos em formatos papéis cores selos de diferentes tipos, deixados sobre a mesa, sob o vento que entra pela vidraça esquerda sempre que a árvore da rua range.
 
Papel perdido, informação pretérita. A briga ficou por isso. Um acusou. O outro não respondeu - exceto pelo envelope lançado pelo vento. O dito foi consumado pelo suposto não dito.
 
E a palavra escrita, não lida, esquecida, fez cristalizar as convicções, pois o silêncio, quando não acompanhado, é um intransigente catalisador de fissuras.
 
Suposições para cada lado, cada um tem certeza de que sabe quando tudo se perdeu - na lacuna diante da acusação ou na indiferença diante da resposta.
 
Como um pequeno traço escondido, capaz de resolver todo o enigma, a carta permanece irresoluta a amparar teias de aranha e tufos de poeira pouco a pouco inseridos naquele diminuto espaço, qual peças tétricas que se amontoam para contar a história de uma fase.
 
A carta, por mais fina que fosse, demarcava o afastamento provocado pela alegoria do destino. Para ambos os lados, melhor assim.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente.
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Como identificar os extremos
19/10/2024 | 14h01
Imagem gerada por inteligência artificial.
Na sala de espera de uma clínica, dentre todos os lugares disponíveis para sentar e aguardar, resolvi escolher o assento mais distante, não apenas para evitar interações indesejadas, mas também para conviver com a ansiedade pré-consulta que teima em aparecer nesses momentos.

Meu pai me acompanhava nessa desagradável empreitada, e nós conversávamos para ocupar o tempo falando sobre qualquer assunto que não tivesse relação com exames ou consultas médicas.

Sem que eu me desse conta, sentou ao nosso lado um senhor distinto – camisa verde, maço de cigarro apoiado sobre a pasta de exames cardiológicos -, mas um tanto inconveniente.

Eu comentava com meu pai sobre as eleições municipais na capital paulista, especificamente sobre a notícia que atribuía o segundo lugar do candidato Guilherme Boulos a uma confusão de seus eleitores quanto ao número de seu partido, fazendo com que ele perdesse cerca de cinquenta mil votos.

Foi nesse momento que me dei conta da presença do paciente que poderia, dentre diversos assentos ociosos, não ter escolhido justo aquele ao nosso lado.

Ele resolveu interagir, primeiro questionando o que eu achava sobre o Boulos. Depois, querendo saber o que eu achava sobre o presidente Lula. Terminada a sabatina, ele já tinha uma conclusão. Olhou fixamente para mim e disse algo que, em todos esses anos, eu curiosamente não tinha ouvido – apesar de estar ciente da recorrência do termo:

-Então você é comunista!

Envaidecido diante da ignorância gritante dessa alcunha inédita para mim, resolvi usar meu direito de fazer ao menos uma pergunta:

-E o que é comunismo pra você?

Diante do que ouvi, de pronto, qual resposta decorada:

-É tudo isso que está aí.

Tentei, me esforcei, para considerar essa conceituação tosca, mas não suportei continuar a conversa com a pessoa que, em seguida, disse que a fonte do comunismo era a universidade pública.

Olhando para a memória desse momento, penso que o velhinho de aparência simpática, prestes a levar um esporro do médico pelo uso excessivo de cigarros, poderia ter me poupado de identificá-lo no extremo de sua ideologia cristalizada em meio àquela pequena multidão.
Isso serviu para identificar um extremo. Quanto ao outro, só fui ver quando, já em casa, me olhei no espelho e, pela primeira vez, lembrei que viram em mim um comunista. Logo eu, tão avesso aos extremos. Tudo culpa da universidade pública.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente.
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Ruas Inequívocas
24/07/2024 | 08h01
Ilustração de Ronaldo Araújo.
de uma rua pra outra
     do centro,
     transita
     a sensação de estar
        numa única
                  rota,
                  alinhavada
                  pela trama
                  geográfica
     de uma superfície
     entremeada pela
     interioraneidade
     das relações

       basta olhar a
       es
       trei
       te
       za
       da confluência das ruas
         - que sempre
                  retornam à fonte,
         sendo necessário
                    imenso esforço
              pra se perder por elas -

          mas há algo mais
          que salienta
     as notáveis banalidades
         das ruas do centro:

         um olhar atento
         pelos prédios que
            dão fundamento
            às passagens
            torna possível
                    a criação
               desimpedida
 das mais corriqueiras
      - e, por isso, belas -
                   ficções

    pois as ruas
    despertam,
    com a alma que
    as faz únicas,
    a substância
       indócil
       do ser

    por isso,
    passar pela Rua Carlos de Lacerda
    dobrar na Oliveira Botelho
    e desembocar na Treze de Maio
       com os olhos
               atentos
               ao que se vê
        cria vínculos
        intrincados
        com
     o que as ruas
        dizem
      - despalavradas -
        no próprio chão

             por outro lado,
             deixar-se despretenciosamente
                             pelas ruas
                 permite que os atentos olhos
                              das passagens
                                     absorvam
                        de cada alma
                              algum
                              fluxo

     basta passar pela
rua Governador Teotônio Ferreira de Araújo
              - outrora rua da Quitanda -,
                repleta dos trajetos,
                das histórias,
                dos lampejos
          vividos ao longo dos anos

              para sentir que a rua
                      tem muito para contar

                      ainda mais
              com os livros e cafés e debates
                      da livraria
                    - verde flâmula -
                      mais antiga do país,
                      que se torna ainda mais
                            nostálgica e
                            memoriosa
                            com as histórias
                            do professor
                            Fernando da Silveira
                                e seus entusiásticos
                                   seguidores

                 esse elo
                 entre homem
                          caminho
                       e memória
                 é a mais pura identidade
               - diz a filosofia
                          oculta
                     no asfalto

*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor. Atualmente, é presidente da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
*Este texto foi originalmente publicado no livro “Muros impalpáveis – Recorte poético da cidade de Campos” (edição do autor, 2021), que pode ser lido integralmente no código QR abaixo.
*Texto publicado na edição de hoje (24/07) da Folha da Manhã, na Coluna Folha Letras, no caderno Folha Dois.
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Retrato feito da calçada
19/06/2024 | 10h01
Foto: Ronaldo Junior (2018)

 

     ali,
     na treze de maio,
     a caminho
     do calçadão,
     dia após dia,
ao sair da Faculdade
             de Direito
             de Campos,
       um retrato vivo
       se formava
       em meus olhos
sob os toldos dos comércios
 
     bastava olhar ao longe
          para sentir
          a mescla de
   presente e passado
 
         a Igreja Nossa Senhora
                  do Carmo,
         ainda na treze de maio,
nem sempre notada pelos transeuntes
 
      o prédio
      da antiga
      Joalheria Renne
      de esquina, ao fundo,
      logo depois do pelourinho,
              no centro do boulevard
 
      as fachadas históricas
      ladeadas
                         competindo
                         com letreiros
                                   faixas
                                   cores
                                   fios
                                   carros
 
       e, sobretudo,
  as tantas gentes
que por ali transitam
        diariamente
      - com ou sem rumo -
 
       quase sempre
                  sem erguer os olhos
                           para vislumbrar
                           a poesia histórica
                  se rareando
                  sob(re) as marquises

 
Ilustração: Ronaldo Araújo (2021)

*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor. Atualmente, é presidente da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
*Este texto foi originalmente publicado no livro “Muros impalpáveis – Recorte poético da cidade de Campos” (edição do autor, 2021), que pode ser lido integralmente no código QR abaixo.
*Texto publicado na edição de hoje (19/06) da Folha da Manhã, na Coluna Folha Letras, no caderno Folha Dois.
 
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Depois da curva, o esquecimento
09/03/2024 | 14h00
Fonte: Pixabay.
Virou a esquina justo naquele instante.
 
Pé brusco no freio, impacto contra o volante, olhares desesperados, estrondo no chão.
 
O prédio que caía no meio da rua poderia ter caído sobre seu carro. Poderia, sob os escombros esquecidos, ter virado apenas um pedaço de tijolo ou concreto ou madeira ou janela. Uma coisa que se mistura para erguer uma construção.
 
Mas estava ali, pensando no que poderia ter acontecido no relance instantâneo do que passou, ainda na névoa poeirenta que vendava a rua, com o estrondo que se dispersava, mas que permanecia a ecoar pelos arredores encobertos.
 
Caiu a história de uma família. Caiu um pedaço do centro da cidade que era também centro de negócios e memórias e interesses e atenções e trajetos. Caiu um pedaço - caco sobre caco - dos tantos prédios que formam a cidade. Caiu mais que um tijolo, uma viga, uma janela carcomida. Caiu uma história inteira que só o Google Maps vai contar, congelado no tempo passado, borrando rostos e placas, como se aquele prédio fosse uma espécie de realidade virtual, dessas efêmeras que passam quando rolamos o feed.
 
Pessoas se amontoavam para fotografar. Sensacionalistas filmavam para compartilhar nas redes sociais. O prédio caído era, antes de memória, um clique passado. Desses que esquecemos depois de clicar.
 
Atrás, o trânsito começava a ficar tumultuado. Carros se enfileiravam enquanto pessoas saíam para ver o que estava acontecendo imediatamente após a curva. Mas aquele primeiro carro permanecia na perplexidade, imóvel, como se tivesse sido atingido pela memória de quem colocou suor e força para construir a obra decadente.
 
Dois guardas surgiram para tentar organizar o que se passava. Começavam a afastar os curiosos, com medo de um novo desabamento. Tudo dependia de laudos, inspeções, palavras da defesa civil, fechamento da rua para retirada dos escombros, interdição da área para avaliação dos prédios laterais.
 
Passada a perplexidade do solavanco, um pensamento prático. Não perdi nada com isso, não era meu. Deu de ombros enquanto subia com o carro na calçada indicada pelo guarda e ia seguir sua vida. Deixava ali, porém, um importante capítulo da casa que não perdera só porque não habitava.
 
Mas o esquecimento, talvez ignorasse, também é uma forma de perda.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve mensalmente no blog Extravio.
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Arredores
27/01/2024 | 14h00
Fonte: Pixabay.
Aqui, detrás desses painéis que não te permitem me enxergar, dou as últimas pinceladas nas imagens para as quais pretendo olhar pelo resto dos meus dias - não que sejam muitos, mas são tudo que tenho.
 
Aproveitei para, numa pausa entre a observação e a mistura de tons, relatar o que faço como forma de explicar para mim mesmo os anseios por trás dessa que já considero minha principal obra.
 
VanGogh pode ter retratado a si mesmo, Michelangelo pode ter expressado a divindade, Picasso pode ter dado forma ao indizível, mas eu pinto para compor o que desejo vivenciar.
 
Não me refiro à imaturidade de pintar meus desejos ou paixões juvenis. Já passei disso há anos. Na verdade, falo de pintar minhas ficções pessoais, com as quais convivo e nas quais acredito a cada amanhecer.
 
A ideia de me dedicar a isso surgiu quando passei um tempo na casa do meu irmão, podendo olhar de perto a rotina da família e, em especial, do meu sobrinho mais novo. Parei para ter uma conversa com ele, saber de suas questões particulares e de sua formação, ter um contato com a juventude, mas fui surpreendido com uma realidade paralela.
 
Ele, assim como o restante da família, tinha uma perspectiva distorcida de acontecimentos históricos, descobertas científicas e até mesmo de fenômenos da natureza. Suas convicções chegavam a níveis de creditar fatos singelos ao divino ou mesmo explicar coincidências com teorias conspiratórias.
 
Faz alguns meses, saí de lá para procurar um canto e viver sozinho. E fiz isso convicto de que algo faltava em minha vida. Passar quatro décadas me dedicando a ilustrar, pintar e projetar murais fez com que eu nunca olhasse para o que havia de cor dentro de mim.
 
Se bem que, devo dizer, eu me encontrava simbolizado em cada pincelada que dedicava durante os meses de execução de um trabalho. Mas nunca tive algo meu, voltado para mim. Então resolvi fabricar meu próprio ópio, modelar a ficção absurda com a qual convivo em meus pensamentos e dar, enfim, uma explicação para tudo que fiz até hoje.
 
Aluguei este cubículo que me leva quase toda a aposentadoria e dediquei os últimos meses a idealizar o meu lugar nos painéis que agora me cercam. Penso, olhando agora, que pintei uma espécie de deserto, no qual sou eu mesmo o escaldar do sol e o refletir da lua, sou o centro.
 
Estou cercado de uma imensidão que pode ser infinito vazio ou abastado preenchimento, depende do dia em que observo. Nunca pisei num deserto nem nunca me detive a pensar em um, mas não havia outro motivo para esses painéis que não fossem tornar acessíveis os grãos de areia - ora cortantes como vidro, ora macios como flocos de espuma - que eu trazia em mim.
 
E assim, a partir dessa mensagem que escrevo antes mesmo de concluir as pinceladas, explico por que me isolei de todos e resolvi viver na misantropia da reclusão: tenho um deserto inteiro a percorrer todos os dias, às vezes em jejum, às vezes em um oásis. Foi essa a realidade em que escolhi acreditar e, nela, você me encontra enquanto lê estas palavras.
 
Você já encontrou a sua?
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
A partir de 2024, escreve mensalmente no blog Extravio.
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Metas de ano novo
30/12/2023 | 15h10
Fonte: iStock
É muito possível que você só tenha voltado a me ver neste mês de dezembro, em meio às festas, confraternizações, pausas nas atividades. Essa já vencida lista não esperava visita sua em outro momento do ano, nem mesmo para marcar os feitos de março, agosto ou outubro, meses em que as promessas estão diluídas nos compromissos cotidianos.
 
Eu seria ingênua se esperasse que você abriria o bloco de notas – ou estou em um grupo privado no seu Whatsapp? – para anotar que fez aquela tatuagem ou que apenas se matriculou na academia da esquina sem estímulo algum para ir.
 
Isso já vem de muito tempo. Minhas antepassadas, feitas à mão, algumas em papel de pão, outras em guardanapo de barzinho, eram deixadas no fundo da gaveta, passando por todo esse esquecimento e muito mais. Por isso eu consigo até me ver como privilegiada por existir nesses dias tecnológicos.
 
Talvez até guarde uma ponta de inveja das listas que ficam expostas o ano inteiro, afixadas num quadro do escritório ou na porta de uma geladeira, adornadas com um ímã decorativo. Mas me satisfaço com o celular onde estou quando olho para minhas primas, listas de compras, que têm uma função única e são jogadas fora ou excluídas no mercado mesmo. Eu, pelo menos, ainda sou renovada a cada fim de ano.
 
Esse sentimento mesquinho que acabei de expor diz muito sobre a minha razão de existir. Sinto que sou feita, muitas vezes, por ambição, cobiça ou inveja. Os itens que escrevem em mim são metas motivadas por uma constante insatisfação de ter, de poder ou de conquistar, raramente estão pautados no sentir.
 
Se eu pudesse, numa lista minha – que eu chamaria de filha -, escreveria que tenho como meta apagar essas promessas pragmáticas para deixar livre o tempo da contemplação e do nada. Nunca vi uma lista assim, o que me colocaria na vanguarda de mim mesma.
 
Enquanto nada disso é possível, fico aqui aguardando ver o item “ganhar na Mega” ser riscado. Essa meta é renovada anualmente, longe de sair de mim.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Com atraso
02/12/2023 | 14h00
Como se dia fosse, desligou o motor – faróis apagados, lua alta no escuro denso -, abriu a porta sem olhar se vinha um carro repentino e foi até a calçada como se dependesse daquilo.
 
Não ligava para a madrugada alta nem para as poucas horas até o início do expediente de entregas entre bairros. Levava, naquele turno extra, um envelope que não passara pelo centro de distribuição. Era uma carta pendente há muito.
 
Mas quem manda uma carta nestes tempos em que envelopes no correio trazem apenas dívidas, negativações, avisos de corte, notificações judiciais?
 
Depositou lentamente o envelope como se esperasse uma reação imediata, ouvindo o solene ruído do papel ao dar com o fundo metálico da caixa de correio. Estava feito, sem volta e talvez até sem o que esperar.
 
Dia seguinte, a cidade acordava com os baques das engrenagens a atritar os dentes em pleno asfalto, e o envelope foi tocado. Com alguma curiosidade, o lacre sutil foi rompido com a passagem das pontas dos dedos.
 
Dentro, uma folha em branco, mas não por completo: ao rodapé, constava uma assinatura, feita às pressas, com letra de forma, revelando um nome próprio, uma identidade até então resguardada em tantos anos. Agora, sabia quem era.
 
Olhando o papel em branco, chorou.
 
Afinal, antes mesmo de uma palavra lançada, pode ser o silêncio o grande responsável por dizer.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Intermitências
11/11/2023 | 14h00
Foto: acervo pessoal
 
Inerte, ainda deste lado, vejo as andanças de restrita forma, de fora dos carros, de fora dos movimentos – atravessamentos – que passam pela ponte. No aspecto do sentir, nada se repete. Há até paralelos, mas nada que toque duas pessoas com a mesma intensidade.
 
Digo o mesmo das águas. Lá embaixo, movediças, elas vivenciam forças e sensações que eu talvez nunca venha a experimentar, água que não sou, porém enquanto pessoa que se organiza no caos dos fluxos que formam um rio.
 
Não posso, com isso, escrever aqui o que vê e sente alguém que passa e me observa de dentro do carro – não sem inventar, é claro -, então me assombro com as minhas intempestuosidades, não com as dos outros, já que não me encontro no lugar de nenhum deles.
 
Talvez você diga que, ao assumir um lugar antes ocupado, conseguirei experimentar a mesma sensação, o mesmo vento no rosto, o mesmo panorama à frente. Mas como poderia, se a sensação já seria minha, se o vento que sopra já traria ares outros e se o panorama, vivo, já teria criado outra cena?
 
Me proponho, portanto, o exercício do diferente, uma vez que não há igualdade no que se sente – iguais perante a lei, discrepantes no existir, assim somos -, despido da pretensa imprecisão que julga o outro como se fosse eu. Paralelismos de lado, somos imitação imprecisa, capaz de ler estas palavras como quem as escreve, mas dificilmente saberemos o ruído liberado pela página ao ser coberta pela tinta do texto.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Quinze anos depois
04/11/2023 | 14h01
FOTO DE MARCELO GONÇALVES / FLUMINENSE FC
Se, assim como eu, você torce pelo Fluminense ou tem alguma simpatia pelo clube, este não é um sábado qualquer. Quatro de novembro guarda uma conexão direta com o dia dois de julho de 2008, pouco mais de quinze anos atrás.
 
Naquele ano, quando o time tricolor jogou sua primeira final da Copa Libertadores da América, eu tinha doze anos de idade, e o futebol era mais uma emoção inconsciente do que uma compreensão racional – não que hoje tenha mudado muito, mas o tempo me permite olhar o atual momento de forma diferente, sem dúvidas.
 
Na época, o fator social tinha um peso para mim: o que os onze jogadores do Fluminense faziam em campo impactava diretamente no meu dia seguinte, na escola, quando os assuntos eram focados na rodada do campeonato, e eu era zoado – ou me colocava na posição de zoar os rivais – de acordo com a atuação do time. Tudo acontecia como se eu e meus amigos fôssemos os responsáveis por vestir a camisa, entrar em campo, acertar passes e fazer gols.
 
Hoje, sem fatores sociais que me lembrem da adolescência – e isso não é um convite para virem me zoar depois de qualquer jogo -, sinto que muito permaneceu em mim nesses anos: o frio na barriga pelo início da partida, o sonho do título e a intuição de que é chegada a hora de ver meu time levantar essa taça.
 
Há quinze anos, durante a segunda partida da final, na fatídica noite de julho de 2008, eu acompanhava o jogo enquanto minha temperatura era monitorada de perto pelos meus pais, uma vez que eu estava febril – sem qualquer sintoma infeccioso aparente, com exceção da partida contra a LDU.
 
O Fluminense ganhava o jogo, numa noite iluminada de Thiago Neves, e minha temperatura seguia alta. Bastou que, já nos pênaltis, o atacante Washington perdesse a cobrança para que eu começasse a suar, restabelecendo minha temperatura corporal. O antitérmico, pasme, foi o apito final, apesar do resultado. Ainda agora é muito viva a imagem do goleiro adversário agarrado na rede do Maracanã, entre uma e outra cobrança de pênalti, como se lançasse sobre ela algum poder sobrenatural.
 
Neste sábado, apesar da lembrança, a sensação é outra, mas certamente é difícil ver prazer na partida de hoje. É jogo brigado, tenso do primeiro ao último apito. O exaurimento só virá quando tudo passar. Por enquanto, ficam as comparações, superstições, provocações e as tantas justificativas que tentamos encontrar para explicar a magia do futebol.
 
Quem vai ganhar, não sei. Só penso que o Flu tem mais time e joga em casa, mas vai precisar quebrar a retranca e a catimba dos argentinos, que jogam pelos pênaltis desde as oitavas de final. Se a história se repetirá ou se o dinizismo encontrará a glória, só saberemos depois das 19h.
 
Agora com a serenidade que esses quinze anos me permitiram ter, posso dizer que, feliz ou frustrado pelo placar do jogo, o resultado não vai alterar a história escrita pelo Fluminense na competição. O título é sonhado, mas ver tudo que o time construiu diz muito sobre o seu futuro e resgata muito de seu passado glorioso.
 
Para mim, fica a convicção de que, mais tarde, esses jogadores – do mais experiente ao mais novato - vão honrar os outros tantos que já vestiram a camisa tricolor, tendo a chance de lavar a alma dos que estiveram em campo naquela noite de 2008.
 
*Ronaldo Junior tem 27 anos, é carioca, é praticamente licenciado em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Sobre o autor

Ronaldo Junior

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Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.