Sensação de refazer
Ronaldo Junior 01/03/2025 15:42 - Atualizado em 03/03/2025 15:44
Imagem gerada por inteligência artificial.
A íngreme encosta de panos estava sempre prestes a cair enquanto eu me via ao centro de um forte reforçado por cores que exalavam sabão em pó. Ao menor movimento, qual um gigante devastador, tudo mexia, ameaçando desfazer o trabalho de um dia inteiro. Era assim que eu acompanhava, ajudava, atrapalhava, o trabalho da minha mãe na véspera de uma viagem.
Olhos atentos em flagrante inquietação enquanto, em cima da cama, as pilhas de roupas dobradas se formavam e logo eram postas na mala. As mãos ágeis da minha mãe ditavam o ritmo de um dos serviços mais detestados por ela: fazer as malas.
Depois de crescido, já no centro dos afazeres, não tenho a mesma agilidade - nem a mesma precisão - que admirava em minha mãe. Eu dobro, desdobro, redobro, e a assimetria da peça mostra o quão vacilante é minha habilidade com os tecidos.
A sensação é de permanecer horas na mesma camisa, na mesma calça, até alcançar uma falsa perfeição inexplicável diante da banalidade de uma mala que logo será chacoalhada e revirada como se centrifugasse as roupas a seco.
Percebo no refazer um retrato do meu perecimento. É a vida que passa na peça de roupa dobrada. É o dente a ser reescovado. A louça novamente suja. O lixo a ser posto para fora. A gasolina que acaba a procurar um posto. A lâmpada que pisca exigindo troca. O cabelo que cresce à espera de uma tesoura. A conta que, sucessivamente, vence no mesmo dia todo mês.
A roupa e sua imperiosa necessidade de ser dobrada - para a mala ou para o armário - faz parte de um ciclo extenuante de busca pela conclusão que cisma em não acontecer. Fica só a sensação temporária do acontecido para, em seguida, reacender em obrigação.
Diante do cansaço, as passagens já sobre a mesa, olho as roupas separadas e me imagino jogado entre os tecidos para reviver a sensação de estar no forte com aroma de sabão em pó sob a proteção de não compreender o significado prático da palavra rotina.
 
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com.
Escreve mensalmente no blog Extravio.

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    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.

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