100 dias depois de um mergulho profundo no retrocesso e ainda não chegamos à superfície
Edmundo Siqueira 10/04/2023 22:29 - Atualizado em 10/04/2023 22:37
Um bom mergulhador sabe que não se deve voltar à superfície rápido demais. O egípcio Ahmed Gamal Gabr é dono do recorde de mergulho mais profundo, quando alcançou 332,3 metros de profundidade em alto mar. Para descer foram precisos apenas 15 minutos, e para retornar cerca de 13 horas.

A subida demorada, e em etapas, acontece pela própria condição do ar que é composto em 78% por nitrogênio. Altas pressões fazem parte dele presente no sangue do mergulhador passar ao estado líquido, e em uma subida rápido demais à superfície volta subitamente à sua forma original, o que pode causar embolias e até a morte do mergulhador.

O Brasil de 2023 é um país que tenta voltar de um mergulho muito profundo. De forma inédita na sua história, experimentou quatro anos de um governo de extrema-direita: ultraconservador, nacionalista (saudoso da ditadura militar), armamentista, antiglobalização, antivacina e anticiência, de forte cunho religioso e que tratava adversários políticos como inimigos que deveriam ser eliminados.

A ideia de país formada nesse período era contrária as bases da Constituição de 1988 e da Nova República, que tem como fundamento — e preconiza, portanto — uma sociedade justa e solidária, que deve erradicar a pobreza e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo ou cor — fundamentos explícitos na Carta, que foram afogados em narrativas e retrocessos.

A proposta de Bolsonaro era de ruptura. Qualquer distanciamento das pautas eram taxadas de “comunistas”. Ser liberal, social-democrata ou mesmo de centro era uma afronta, e visto como “coisa de esquerda”.
No início de 2021, durante a pior pandemia de nossa era, Bolsonaro foi flagrado mergulhando e fazendo atos políticos de jet-ski, no litoral de SP.
No início de 2021, durante a pior pandemia de nossa era, Bolsonaro foi flagrado mergulhando e fazendo atos políticos de jet-ski, no litoral de SP. / Reprodução
Cindindo a sociedade, o ataque às instituições ficou mais fácil. Decisões do judiciário eram facilmente distorcidas e fez o STF ser visto como “inimigo da nação” por tentar impor limites civilizatórios. Entregou-se ao Congresso a chave do cofre e o caminho da extrema-direita era uma autocracia com Bolsonaro no poder — ou um clássico autogolpe.

A cada metro submergido, a pressão aumentava.

Foram quatro anos de mergulho. Entre instituições, nas famílias, em grupos de amigos boiavam as ofensas e a discórdia; e o país submergia. Até atingir um marco perigoso, uma profundidade que não poderia suportar.
Em 8 de janeiro milhares de brasileiros, com a sanidade já abalada pelos metros de profundidade descidos, não resistiram à vitória do “inimigo” e promovem atos extremistas na capital do país, invadem os prédios dos poderes e tentam um golpe de Estado.

Há 92 dias o Brasil descia em um mergulho suicida. Caso não fossem parados e certa consciência fosse retomada, não seria possível calcular uma volta segura à superfície.

E há 100 dias o Brasil experimenta um governo sem novidades. O Lula III está com dificuldades em implementar agendas, demora para propor reformas estruturais, basicamente recicla programas antigos e parece preso em bolhas e na polarização. Alas radicais (e de extrema-esquerda) do PT fazem pressão dificultando ainda mais os primeiros meses de governo. E talvez pela pressão forte nos ouvidos, Lula dá sinais de descontrole deixando transparecer rancores e criando fantasias conspiratórias.
O mergulho de Lula em 2009, na praia de Atalaia, em Fernando de Noronha (PE).
O mergulho de Lula em 2009, na praia de Atalaia, em Fernando de Noronha (PE). / (foto: Ricardo Stuckert/Twitter/Reprodução)

Quem apoia cegamente, diz que é apenas um período de arrumação e de volta do oxigênio democrático. E é mesmo inegável que houveram avanços na restauração de instituições e de valores democráticos, antes submergidos pelo bolsonarismo, assim como houve abertura de espaços para as minorias.

O balanço dos 100 dias é positivo. Entre falhas, erros, acertos e resgates prevaleceu um novo clima de mais civilidade que o país passou a viver. Não é pouco. Fomos fundo demais no retrocesso, carregamos ainda as sequelas de um pesadelo. Corremos riscos concretos de erosão de conquistas que custaram caro a gerações de brasileiros” — disse Míriam Leitão, em artigo publicado pelo O Globo ontem, dia 9.

O mergulho foi mesmo profundo. Mas se não cumprirmos as etapas de volta à superfície com certo senso de urgência, talvez não dê tempo. Mergulhadores experientes dizem ser possível, mas em profundidades assim tudo é muito melindrado.
Que os 100 dias sirvam de lição para não termos que recorrer a manobras de emergência, e sermos obrigados a submergir à mesma profundidade e subir respeitando o tempo e as paradas de segurança. Como todo bom mergulhador sabe. 

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