Expectativas, hesitações e o realismo extremo de Guerra Civil
01/05/2024 | 13h16
Reprodução


Há expectativas para quem vai ao cinema ver Guerra Civil (direção e roteiro de Alex Garland, produção A24), e a principal, ao menos para o público brasileiro, reside na atuação de Wagner Moura como um dos protagonistas do longa, onde vive Joel, repórter da Reuters. Para quem espera a entrega do ator, a expectativa é atendida. Para quem busca um filme de guerra bem escrito e amarrado, talvez saia da sessão tão hesitante quanto o filme.

A hesitação de Garland, que assina direção e roteiro, pode parecer imparcialidade, mas é conformismo cinematográfico. Não há problema algum em um filme não apresentar respostas; pelo contrário. Cinema, como outras artes, cumprem bem seu papel quando promovem debate e instigam mais perguntas do que respostas fáceis. Mas Guerra Civil acaba respondendo essas perguntas mesmo querendo não fazê-lo — hesitando em deixar o espectador incomodado.

O filme é um road movie, ambientado nas estradas devastadas de um Estados Unidos distópico que vive uma violenta guerra interna contra um governo ditatorial. A viagem que os protagonistas levam o espectador termina em Washington DC, mais especificamente na Casa Branca, onde a experiente jornalista Lee (Kirsten Dunst) e seu colega Joel (Wagner Moura) iriam fazer uma entrevista bombástica (literalmente) com o presidente.

A24/Reprodução
O filme faz um tributo ao jornalismo de guerra, reforçando a importância de ter profissionais cobrindo conflitos in loco, e coragem e do senso de missão que eles assumem. Lee e Joel percebem essa “missão” de formas diferentes. Enquanto Lee está visivelmente esgotada e sofrendo as consequências psicológicas de presenciar por anos todo tipo de violência, Joel está ansioso para a próxima.


Para dar alívio cômico (que são bem poucos) e trazer para quem está na cadeira do cinema uma sensação de cuidado e identificação, dois outros personagens entram no enredo: Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a novata Jessie (Cailee Spaeny), que cumprem muito bem esses papéis.

Sammy é um veterano correspondente do The New York Times (do que restou dele) e mesmo idoso e fora de forma física, mostra que está completamente ativo no fazer jornalístico investigativo, de contato com as fontes e na capacidade de entender o jogo para informar. Jessie — com atuação marcante de Spaeny, que viveu Priscilla Presley no filme homônimo de Sofia Coppola, lançado em 2023 — é a novata com ânsia de aprender com os mestres e pronta para viver as experiências que poderiam deixá-la mais próxima deles.

O conflito geracional entre Lee e Jessie é o pano de fundo que o diretor encontrou para discutir o papel do jornalismo em condições normais de temperatura e pressão e em situações extremas. Em um dos diálogos mais interessantes do filme, ambientado na arquibancada de um estádio utilizado como campo de refugiados, as personagens reconhecem pontos em comum em suas trajetórias, e um deles dizia respeito aos pais delas que estavam morando na área rural dos EUA como se nada estivesse acontecendo no restante do país. Mesmo não respondendo diretamente através dos personagens, o filme não se furta em mostrar que enquanto alguns se omitem, outros se arriscam para resolver o problema.

O filme tenta não criar mocinhos e bandidos, e tenta humanizar todos os personagens, principalmente com Joel, em alguns momentos de imaturidade e bebedeira. Mas hesitou em incomodar, não abriu as feridas das causas de uma guerra civil que sempre tem dois lados, pelo menos.

Mas não se furta de usar a violência. Em tomadas bastantes reais com sons de tiros e explosões mais altas que o normal para o cinema tradicional — com direito a expressões de desespero em tomadas bastante reais de Moura e Spaeny —, o road movie se transforma em um filme de guerra perturbador, principalmente com a aparição de Jesse Plemons (marido de Kirsten Dunst que fez uma ponta rápida e aterrorizante no filme) vivendo um perverso guerrilheiro enterrando uma pilha de mortos.
A24/Reprodução

Apesar das hesitações e perguntas respondidas sem querer, o diretor foi muito feliz quando introduziu um diálogo que escancara a burrice de uma guerra, de qualquer guerra.
Em uma das paradas da estrada até DC, o grupo de jornalistas encontra dois snipers que disparavam contra uma casa abandonada, onde outro atirador atira de volta. Joel pergunta de que lado os atiradores estão e de que lado estaria o inimigo oculto no interior da casa. A óbvia resposta contraria o senso comum em um mundo polarizado: “alguém está tentando nos matar; e estamos tentando matá-los”.

Trata-se de um filme sobre polarização sem querer parecer estar polarizado. A expectativa de romper com isso não foi alcançada, mas se for ao cinema buscando reflexões sobre o momento que o mundo atravessa, atuações inspiradas e um road movie de guerra de realismo extremo, verá as expectativas sendo superadas. Vale o ingresso, sem dúvida.


Leia crítica de Felipe Fernandes, publicada no blog Opiniões, de Aluysio Abreu Barbosa, aqui
Compartilhe
Sem ódio no ar
28/04/2024 | 18h36
Dois personagens da política campista foram ao programa Folha no Ar, da FolhaFM 98.3, neste mês de abril. No último dia 6, Anthony Garotinho concedeu uma entrevista onde falou sobre diversos assuntos, e revelou que se encontraria com um histórico adversário, Arnaldo Vianna, logo após o fim do programa.


Nesta sexta-feira (26), o presidente da Câmara de Vereadores, Marquino Bacellar, também concedeu uma entrevista, onde falou sobre os embates passados com o Executivo, e a futura disputa eleitoral de 6 de outubro, onde seu grupo político enfrentará o favoritismo atestado em pesquisas de Wladimir Garotinho.

Ambos personagens, Anthony e Marquinho, são conhecidos pela veemência nos posicionamentos, muitas vezes com ataques duros aos adversários, usando palavras fortes e apelidos no mínimo jocosos. Porém, nas entrevistas concedidas, eles mantiveram um tom mais sereno e mais ponderado, inclusive ao falar de seus adversários.

Nas entrevistas, o alívio no tom não se confundiu com a ausência de críticas. Elas estavam lá, os dois não se abstiveram de dizer o que pensam sobre o jogo político campistas e os outros personagens que o compõe. Mas elas foram feitas atendo-se a questões políticas, essencialmente, sem ataques pessoais ou familiares.

Como ainda eram ali as personas políticas que fazem questão de cultivar, houve momentos de posições mais malcriadas sobre os adversários, e ironias inevitáveis foram ditas. Mas sempre acima da “linha da cintura”.

Em tempos de polarização afetiva na política nacional, e discursos de ódio nas redes sociais, Garotinho e Bacellar conseguiram levar ao Folha no Ar um tom surpreendentemente ponderado nas análises que fizeram. Mesmo em ano eleitoral, mantiveram-se em uma postura de negação a forma de fazer política com ataques pessoais. Ponderaram, ou pelo menos demonstraram ponderar, que talvez seja o momento de não esticar a corda, de disputar apenas na arena eleitoral e política, sem agressões, mesmo contra grupos antagônicos.
As surpresas positivas em relação aos dois personagem deram-se pelo histórico de suas atuações, e de seus grupos políticos, mas também aconteceram por vivermos em um momento em Campos, no Brasil e no mundo do contrário. O estímulo ao ódio e as agressões oferecem de volta muitas curtidas e comentários em redes sociais, assim como engajam a claque, tornando a tentação de políticos assim agirem muito grande. E o Folha no Ar poderia ter sido um espaço onde isso fosse aproveitado. Mas não foi.

Talvez o programa da FolhaFM não reflita a realidade vista na atuação política dos mesmos personagens daqui para a frente. Talvez as eleições, quando a campanha começar de fato, impeça que climas elevados e de diálogo respeitoso voltem a acontecer. Mas o Folha no Ar deixou dois exemplos, através das entrevistas de Garotinho e Bacellar, que é preciso promover espaços onde os políticos façam de seus ofícios algo condizente com a convivência democrática e pacífica.
Campos não é, e nem pode ser, uma cidade fria politicamente. Oposição e embates políticos não são apenas naturais, são necessários para que o sistema democrático seja vivenciado em plenitude. Mas não se pode normalizar a agressão, mesmo verbal, no fazer político e no convívio social.

Todos saem ganhando com mais democracia. E o jornalismo cumpre um papel fundamental em mostrar que esse jogo só deve ser jogado com respeito e sem ódio, onde não se perca a capacidade de dialogar, mesmo com os opostos.

A política campista não pode dispensar os adversários, mas não precisa de inimigos. A Folha e a cidade agradecem.
Compartilhe
Os anos 20, a polarização afetiva e as repetições da história
28/04/2024 | 18h21
Imagem gerada por IA
Imagem gerada por IA / Crédito: Edmundo Siqueira
É comum termos a percepção de que a história se repete. Ou que os acontecimentos sociais aconteçam de forma cíclica. Ou seja, se pensarmos em um ponto fixo em linhas históricas concêntricas, em volta de um mesmo eixo e com trajetórias próprias, ele fatalmente voltará a acontecer, ou pelo menos voltará a ser visto pelo observador — se repetirá, de tempos em tempos.

As diversas turbulências globais da atualidade não são tão diferentes, em essência, das que ocorreram nos anos 20 dos dois séculos passados, pelo menos. Embora não seja possível medir o tempo histórico a partir de contagens matemáticas exatas que determinem que a cada 100 anos aconteça algo semelhante, os próprios movimentos cíclicos das vivências sociais nos mostram que há similaridades fáticas e temporais dos acontecimentos historicamente relevantes.

Esses fatos sociais que se repetem, ou mesmo os que carregam um certo grau de ineditismo, são estudados pelas ciências humanas há bastante tempo. O modo que as sociedades se constituem e se destroem — e depois se reinventam —, as formas que modelos de governança são aceitos, que liberdades são suprimidas em nome do coletivo e como sistemas políticos são impostos, dizem muito sobre a humanidade.

Émile Durkheim foi um desses cientistas sociais que se debruçou sobre os fatos sociais e seus movimentos. Considerado por muitos como o “pai da sociologia”, Durkheim nasceu na região de Lorena, na França, em 1858. Atuando como intelectual, seus artigos começaram a fazer relativo sucesso, e suas obras mais elaboradas ganharam destaque principalmente depois que assumiu como professor catedrático da Sorbonne, no início dos anos 1910.

Durkheim lendo um livro digital - Imagem gerada por IA
Durkheim lendo um livro digital - Imagem gerada por IA / Crédito: Edmundo Siqueira
Nessas obras, Durkheim ponderou que as maneiras de agir, de pensar e de sentir — representando os fatos e determinações sociais — são exteriores ao indivíduo. Em outras palavras: a coletividade é determinante para a ação individual. A língua, a cultura, os costumes, a religião, o tipo de ensino e até as condições climáticas influenciam as ações individuais. Nas palavras de Durkheim, exercem um poder coercitivo sobre as pessoas que estão inseridas em um meio social.


Portanto, considerando Durkheim e outros tantos pensadores das ciências humanas, do passado e contemporâneos, são esses consensos lógicos que formam a sociabilidade. É uma espécie de acordo que um povo ou uma nação faz para viver em coletividade, com regras comuns a todos que devem ser respeitadas, sob pena de expulsão ou prisão. Esses fenômenos, esses consensos lógicos, só têm o poder de serem coletivos se forem comuns a todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles. Quando isso acontece — como a língua em comum — esses fenômenos possuem uma existência própria, independente de manifestações individuais.

Polarização afetiva

Henri Tajfel e John Charles Turner, psicólogos sociais (o primeiro polonês e o segundo, inglês), desenvolveram o conceito de identidade social e auto-categorização, em estudos do início dos anos 1980. A psicologia procurou entender como alguns grupos sociais conseguem ser tão fortemente identificados a ponto de seus indivíduos ficarem sujeitos a todas as determinações coletivas, gerando um processo de autoconceito que necessariamente deriva do pertencimento àquele grupo.

Obviamente, essas determinações também afetam os posicionamentos políticos. Quando inseridos nesses grupos de forte identificação social, as pessoas tendem a escolher posições e candidatos que são aceitos pelo grupo. Qualquer escolha eleitoral deve partir dessa premissa.

Esse movimento ganhou um nome no jornalismo e nas pesquisas mais recentes: polarização afetiva. É justamente a ideia que marca a sensível diferença entre uma polarização natural da política — quando dois candidatos ou ideais, geralmente opostos, se fortalecem e passam a ser os mais aceitos —, e uma escolha de lado que define a identidade, a forma de sentir e agir.

Essas identidades políticas cada vez mais fortes não apenas fazem com que pessoas se identifiquem com um posicionamento político, mas passam também a ver os oponentes e sua ideologia como uma ameaça existencial. E aí que reside o risco à democracia e ao convívio social. Quando o oponente passa a ser uma ameaça à própria existência do grupo, e por consequência do próprio indivíduo, o conflito, o ódio, o preconceito e a violência política passam a ser uma saída necessária.

Quando uma pessoa passa a se definir e fazer uma autoavaliação através das identidades comuns de um grupo político, ocorre ainda um processo mimético, onde passam a comparar o seu grupo com outros grupos relevantes. E uma vez definidos como inimigos e ameaças, é preciso que os integrantes desses grupos identitários discriminem e tentem humilhar publicamente seus oponentes. Soma-se a isso o sentimento de favoritismo, aumentando a hostilidade em relação ao outro grupo.

Os anos 20 do século atual e a extrema-direita

Não parece ser apenas uma coincidência histórica o fato de um mundo em transição estar ocorrendo nos anos 20 deste século. As democracias liberais estabelecidas, após os absolutismos monárquicos serem vencidos, trouxeram para a humanidade os melhores tempos de prosperidade, desenvolvimento e evolução social já vistos. Porém, o sistema não conseguiu resolver a desigualdade e a democracia não entregou tudo que prometeu.

Foto: Moacyr Lopes Junior
O rompimento das promessas democráticas, a manutenção de processos escravistas e a formação de enormes áreas periféricas de extrema fragilidade social, levaram o mundo a conflitos constantes, com duas grandes guerras com causas comuns, que tiveram seu início próximo aos anos 20 do século passado.

Cíclica ou não, a história nos mostra o risco de rompimento que as instabilidades transitórias (industrial no século XX, tecnológica no século XXI) trazem, e como elas afetam as realidades postas até então.

Nova extrema-direita e o comunismo

A polarização afetiva atual se mostra como um sintoma desse estado de coisas, porém vem sendo uma das principais armas de uma nova onda de extrema-direita que, não raro, traz à tona ideias aparentemente já superadas do fascismo e do nazismo. A definição categórica desses movimentos atuais como fascismo parece não ser capaz de explicá-los na totalidade e dentro das complexidades que o mundo atual impõe, mas apresentam muitas semelhanças.

Os fascismos possuíram seu tempo histórico próprio, mas mantendo a ideia de ciclicidade da história, trazem características em comum com movimentos atuais, principalmente no culto ao líder máximo do movimento. Para além das semelhanças ideológicas, físicas e de discurso que líderes como Mussolini, Hitler, Stálin e Pinochet, guardam com Bolsonaro, Trump, Putin e Maduro, por exemplo, está incutida na veneração desses personagens a ideia de que eles colocam acima de seus interesses o ideal, o grupo, a pátria e a missão que eles se mostram escolhidos para cumprir.
Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, e Donald Trump, ex-presidente dos EUA durante evento naquele país. Representantes da nova onda de extrema-direita.
Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, e Donald Trump, ex-presidente dos EUA durante evento naquele país. Representantes da nova onda de extrema-direita. / Getty Images


A estratégia alicerçada na polarização afetiva cria grupos tão homogêneos, que a crença de que o líder é o escolhido (muitas vezes por Deus) e que ele irá honrar todos as ideias, modos e costumes estabelecidos por eles, é irrefutável. E quem diverge desses grupos sabotam esses ideais vistos como sagrados. E podem ser grupos identificados por religiões e costumes diferentes, como foram os judeus, ou por cor de pele, ideologia e mesmo por região geográfica.

No caso da designação comunista, ela não é necessariamente colocada sobre alguém com o ideário socialista ou pertencente a grupos partidários comunistas. Nos movimentos de extrema-direita atuais, “comunista” pode ser qualquer pessoa que diverge da ideologia.

Mesmo com o fim da guerra fria e a eliminação quase total de grupos comunistas organizados, o Brasil justificou a ditadura militar pelo combate a eles em 1964, e usou como inimigos imaginários — mas reais nas construções feitas nos grupos homogêneos identitários — nas eleições de 2018.

Universalizar os direitos humanos e democratizar a democracia

Mesmo Durkheim, que acreditava que a coletividade cria forças coercitivas sobre os indivíduos, entendia que os direitos humanos devem ser individualizados e universalizados na mesma intensidade. Ou seja, ele deve valer para todos ao mesmo tempo que se atente às condições particulares do indivíduo. Explico com um exemplo: o direito de não sofrer tortura deve ser garantido de forma diferente para um adolescente na Zona Sul do Rio de Janeiro em comparação a um que more nos morros da mesma região.

Embora o direito seja o mesmo, a democracia deve encontrar formas de garantia distintas, uma vez que ela é vivenciada de formas diferentes pelos indivíduos no exemplo citado. E aí enfrenta a mesma dificuldade de cumprir as promessas e provoca conflitos.

A Constituição do Brasil de 1988 conseguiu impor ao país uma melhoria significativa no acesso à educação, saúde, cultura, moradia e facilidades urbanas. Mas não conseguiu cumprir a promessa de universalizar esses direitos, e ainda teve resultados diferentes a depender da região. Porém, conseguiu a declaração desses direitos e a mantém de pé por mais de três décadas. E isso não é pouco.

A continuidade e a busca de melhorias na democracia brasileira esbarra agora em polarização afetiva e turbulências mundiais. Mas o caminho para salvar a declaração é a busca da universalização, pois democracia para poucos não é direito, é privilégio.











Compartilhe
Ex-prefeito Sérgio Mendes desiste de pré-candidatura
16/04/2024 | 11h00
O ex-prefeito Sérgio Mendes desisitiu da condição de pré-candidato para as próximas eleições de 6 de outubro. Confirmado pelo próprio, hoje (16), Mendes informou que retira seu nome da disputa, e irá trabalhar na formação da nominata do seu partido, Cidadania. 
"Em conversa com os companheiros de partido, eles pediram, dado minha experiência na montagem de nominatas, que eu ficasse na coordenação dos pré-candidatos a vereador do Cidadania e do PSDB. E eu aceitei o convite e estou fazendo esse trabalho", disse o ex-prefeito. 
Sérgio Mendes é jornalista e foi prefeito de Campos entre 1993 e 1996. Durante a pré-camapanha, o agora ex-prefeitável dizia que estava na disputa para que a população relembrasse o seu governo e seus feitos, e oferecia uma proposta para os próximos anos da cidade. Fora da disputa à prefeitura, Mendes continuará no jogo político, mas estará ligado as candidaturas à vereador. 
 
Compartilhe
Cravos e músicas como armas: a Revolução de Abril
14/04/2024 | 16h51
Reprodução
Quando ouviram a música “Grândola, Vila Morena” tocar no rádio, os revolucionários portugueses entenderam como uma senha. Era isso que estava acordado entre os conspiradores: às 22h55, o poema musicado de Zeca Afonso deveria ser reproduzido em ondas curtas e a revolução teria início. E teve.

O que iniciou-se em Portugal naquele 25 de abril de 1974, após ser reproduzida a música que viria a se tornar o hino da revolução — “Grândola, Vila Morena” —, mudaria não apenas o país, mas principalmente romperia com a lógica colonialista que imperava há alguns séculos por lá.
Portugal ainda mantinha colônias na África e na Ásia quando o século XX iniciou, e assim como o Brasil fez em 1822, até então sua maior colônia, os países africanos e asiáticos tentavam suas independências, principalmente em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique. Esses conflitos ficaram conhecidos como “Guerra Colonial”.

As guerras coloniais custavam caro a Portugal. As baixas eram constantes, os campos de batalha levavam os jovens portugueses (estima-se que cerca de 90% da população masculina jovem do país havia morrido, ou estava inválida) e a guerra corroía a economia. O reino estava ameaçado, e a coroa que havia fugido de Napoleão e se instalado no Brasil, estava novamente com medo.

As ambições coloniais portuguesas não apenas saqueavam o próprio país como atrapalhava os interesses, também coloniais, dos britânicos. Até que em 1890 o Reino Unido deu um ultimato: ou Portugal retirava as tropas de algumas colônias e paravam os avanços, ou entraria em guerra com a superpotência inglesa. Com a crise crescente no reinado português, sem representatividade e sem dinheiro, o pior aconteceu, e em 1º de fevereiro de 1908, D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe são assassinados.

A monarquia ainda tentou ficar de pé por mais dois anos, mas era evidentemente insustentável. A República era o caminho óbvio naqueles tempos, e em 5 de outubro de 1910 ela foi implantada em Portugal. Mas democracia e republicanismo não são soluções mágicas, e as questões financeiras continuavam difíceis, além das negociações políticas seguirem extremamente desgastadas. Para piorar — e muito —, em julho de 1914 eclode a Primeira Guerra Mundial e não era possível deixar Portugal de fora.

Em guerra, socialmente destruído, sem juventude, sem recursos e com um governo não representativo, só restou um caminho para Portugal: o autoritarismo ditatorial. O exército tomou o poder em 1926, nomeando o ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar, então professor da Universidade de Coimbra, a Presidente do Conselho de Ministros, e deu-se início a uma ditadura militar. Em um regime autoritário de corporativismo de Estado, com partido único e sindicatos estatais, com afinidades diretas com o fascismo, Portugal tentava, pelo menos, colocar as finanças em dia.

A Revolução dos Cravos
Cenas da Revolução de 25 de Abril  em Portugal.
Cenas da Revolução de 25 de Abril em Portugal. / Reprodução

Ao contrário do Brasil, o fim da ditadura em Portugal não foi negociado. Revolucionários armados e militares dissidentes do governo derrubaram o regime ditatorial do Estado Novo (mesmo nome dado a Era Vargas no Brasil, também uma ditadura), e implantaram uma democracia.

Comemorações do 25 de Abril - A Revolução dos Cravos
Comemorações do 25 de Abril - A Revolução dos Cravos / Reprodução
A Revolução dos Cravos (em ato simbólico, cravos eram colocados nas bocas dos fuzis), também chamada de Revolução de Abril, teve seu início em 25 de abril de 1974, e exatos dois anos depois, uma nova Constituição, de forte orientação socialista, foi promulgada. Grândola, Vila Morena virou hino, e a população deu amplo apoio ao movimento.


Entre os líderes da Revolução estavam também os militares, principalmente o Movimento das Forças Armadas (MFA), composto na sua maior parte por capitães que tinham participado na Guerra Colonial. Com apoio de oficiais milicianos, e da maioria da população (apenas quatro civis mortos e quarenta e cinco feridos em Lisboa), o regime ditatorial estava deposto. O resto é história.

O povo, os cravos, a música e as armas

O que aconteceu em Portugal não se repetiu no Brasil. Embora houvesse movimentos armados revolucionários por aqui, todos foram violentamente sufocados e um regime de censura, torturas, mortes e desaparecimentos foi a tônica de uma ditadura que durou mais de 20 anos.

A escolha pelo conflito armado e pelas revoluções são sempre as últimas alternativas para enfrentar um regime autoritário e violento. Não podem ser consideradas como parte do processo civilizatório, assim como não podem as ditaduras. Ambas são deturpações civilizacionais que devem ser evitadas a qualquer custo.

A Revolução dos Cravos foi repleta de simbolismos, e o 25 de abril é comemorado ainda hoje no país. Conta-se que uma mulher, Celeste Caeiro, que trabalhava num restaurante na Rua Braamcamp, em Lisboa, andava pelas ruas da capital com um ramo de cravos brancos e vermelhos nas mãos. Ao ser avistada por um soldado, este lhe pediu um cigarro. Como ela não tinha, decidiu colocar no cano de sua arma um cravo. Depois, outros floristas repetiram o gesto.

Não é possível romantizar revoluções armadas, muita gente morreu durante o processo e as consequências de regimes ditatoriais e lutas armadas são sempre sangrentas. Ademais, Portugal, Europa e o mundo continuam instáveis e guerras continuam a acontecer; e o povo ainda não é o que "mais ordena". Mas Portugal mostrou que música e cravos são armas poderosas.

Zeca Afonso, autor da música Grândola, Vila Morena.
Zeca Afonso, autor da música Grândola, Vila Morena. / Reprodução
“Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, Vila Morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade”

Esse é um trecho de “Grândola, Vila Morena”, de autoria de Zeca Afonso. A música, ainda hoje considerada perigosa, embalou e deu alma à Revolução.
Compartilhe
Os 98 anos de histórias de Mário Barreto Menezes
14/04/2024 | 16h20
Mário Barreto Menezes
Mário Barreto Menezes / Arquivo Pessoal
Marcamos de tomar um café na última vez que nos encontramos, na fila de banco, em São Francisco de Itabapoana. Pouco depois, infelizmente, soube que o encontro não seria mais possível. Confesso que “vamos tomar aquele café” saiu mais na força do hábito naquele dia; não marcamos, nem definimos nada com dia e lugar. E também não seria aquela a primeira promessa automática que faria a ele.


Em minha defesa, queria que o café fosse tomado à três: eu, ele e meu pai. E era mais difícil conciliar as agendas. Era uma desculpa esfarrapada, eu sei, principalmente aos olhos de hoje, depois de sua morte aos 98 anos, na última terça-feira.

Conheci Mário Barreto Menezes por intermédio de meu pai (por isso queria que estivesse presente no café não-marcado), durante o lançamento de seu livro intitulado “São Francisco de Itabapoana”. O livro era uma homenagem à terra que Seu Mário era devoto, e que conhecia como poucos. Enquanto aquele senhor simpático autografava a obra, meu pai me soprou no ouvido que estávamos diante de um profundo conhecedor da história, não apenas de São Francisco, mas de toda a região; o que não demorei para confirmar.

Apresentações curtas, livro debaixo do braço, alguns apertos de mão, e fomos embora. A partir daquele dia, Seu Mário se tornou um amigo e uma fonte de conhecimento — empírico e historiográfico. Mário Menezes foi servidor do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e por dever de ofício e por amor tinha uma enormidade de informações, que iam desde a topografia do Norte Fluminense até os dados sociais e econômicos.

Mas era o amor pela história o que tínhamos em comum, mais que tudo. E eu gostava de fazer com que ele me contasse qualquer passagem de sua vida, nos encontros que tivemos depois daquele lançamento de livro. Seu Mário escreveu mais algumas obras e era colaborador de jornais de São João da Barra, Campos e São Francisco. Foi citado em algumas teses acadêmicas, como fonte, personagem e divulgador da história oral de uma gente que se adaptou a viver em uma planície alagadiça.

Mário nos deixou numa terça-feira modorrenta, enquanto dormia. Até o último suspiro era dono de uma lucidez invejável e praticante de um humor ácido e veloz; e carismático que só. Estava sempre disposto a contar sobre a segunda grande guerra, as mudanças do mundo, o começo da urbanização de Campos, a vida na roça, os elementos culturais materiais e imateriais da região, ou qualquer outro assunto relacionado com história, cultura, arte, literatura e geografia. Até os mais chatos, das ciências exatas, ele sabia conversar e ensinar, como poucos.

Se tivesse chance de completar um centenário, Seu Mário ia gostar. A esposa, filhos, netos e amigos que deixou certamente gostariam de soprar as 100 velas acima de seu bolo. Mas, nos 98 anos que esteve neste plano, ele nos ensinou muitas coisas, e a principal delas foi que o conhecimento compartilhado não morre jamais.
Compartilhe
O X da questão: heroísmo fake, homens de capa preta e o autoritarismo
10/04/2024 | 21h13
Imagem gerada por IA - criação própria


Na definição de herói está alguém que executa ações excepcionais com bravura e coragem, e resolve situações extremas com ética e moral inabaláveis. É uma figura idealizada, sempre. O heroísmo real não se manifesta de forma concentrada, tampouco é possível que um indivíduo, ou mesmo um grupo, seja capaz de ser a reserva moral do mundo.

O Brasil costuma idealizar heróis e salvadores da pátria. O “pai dos pobres” serve ao ideário do progressista ingênuo, assim como o “capitão” cai como uma luva ao conservador moralista com memória afetiva do tempo dos militares.

Na história recente, homens de capa preta fizeram boa parte do país acreditar que os heróis estavam no judiciário, e ainda ontem um bilionário foi alçado ao panteão dos defensores da liberdade.

A lógica que idolatra esses personagens é a mesma, em ambas as ideologias polarizantes. Alguém com poder assume uma posição e defende uma ideia que confirma que aquele lado está certo, e que as convicções pessoais e coletivas podem ser reafirmadas sem medo, pois há um herói que as sustente.

Reprodução
Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo, foi um desses heróis do país que vestia capa preta (a toga de magistrado). Aliando imagem, símbolo e discurso — necessários a qualquer construção mitológica —, Barbosa foi visto como um redentor, alguém que iria vingar o país contra os corruptos. Em uma foto, durante o julgamento do Mensalão, o ex-ministro aparecia andando de costas, com a toga acompanhando seu movimento, formando uma capa preta de super-herói. Era algo como o Batman limpando as ruas de Gotham City.


Depois de Barbosa, um juiz federal nascido em Maringá, no Paraná, liderava uma operação batizada de Lava Jato, onde era o responsável pelo julgamento em primeira instância dos crimes de colarinho branco envolvendo um grande número de políticos, empreiteiros e empresas, como a Petrobras e a Odebrecht.

Mas Sérgio Moro não precisou de uma capa preta. Em 2016, em Brasília, um boneco inflável de 12 metros trazia o rosto do juiz no corpo do Super-Homem, com o peito estufado e os punhos cerrados sobre a cintura. Na base, também inflável, que sustentava o boneco, estava escrito: “Herói do Brasil”.

Reprodução
Hoje senador, Sérgio Moro aceitou ser ministro do ex-presidente Bolsonaro, após agir com comprovada parcialidade no julgamento que levou à prisão o seu principal opositor. Além de abandonar a imparcialidade, necessária a qualquer julgador, o caminho jurídico que levou Lula à prisão foi semeado por nulidades processuais e extrapolação das prerrogativas de um juiz que foi elevado ao posto de herói nacional do dia para a noite.


No último domingo (7), o empresário Elon Musk, dono da rede social X (antigo Twitter), protagonizou um embate direto com o ministro Alexandre de Moraes, do STF. Em publicação no seu perfil, afirmou que Moraes deveria renunciar ou sofrer impeachment. Moraes, horas depois, incluiu o empresário no inquérito do Supremo que investiga a existência de milícias digitais antidemocráticas.

A partir daí, dois novos heróis foram criados: de um lado o empresário bilionário, dono de Big Tech, colocado em um patamar de salvador da liberdade, estaria lutando contra a “ditadura do judiciário” brasileiro. Do outro, o ministro destemido, que impediu um golpe e garantiu a democracia brasileira, aparece com a toga preta esvoaçante, debaixo do Brasão da República, sendo visto como o vilão que se converteu à herói, alguém que tem legitimidade para agir extrapolando alguns limites em nome da democracia.

Os contornos desses “heróis” brasileiros invariavelmente são autoritários. Debaixo de capas e poder econômico, agem em interesses corporativos, incompatíveis com o heroísmo real.

Embora o caso do duelo de titãs entre Elon Musk e Alexandre de Moraes evidencie que há (ou deveria haver) o ordenamento jurídico e a Constituição acima dos caprichos virtuais de um bilionário excêntrico, e a certeza que a toga precise, de fato, se fazer prevalecer, não se trata de uma disputa de heróis para saber quem é mais virtuoso. E novamente, se reduz aos individualismos algo que deve ser nacional.

Os egos feridos parecem ser o X da questão, e a confirmação de verdades ideológicas polarizantes parecem fabricar os “heróis” atuais. Em um mundo cada vez mais autoritário, o vilão é sempre o outro.
Compartilhe
Conclusão do caso Marielle: as sombras coletivas, os bodes expiatórios e o ódio à vítima
07/04/2024 | 23h09


Há um conceito nas ciências sociais que procura explicar o que acontece quando um povo — que pode ser de uma mesma nação ou etnia, ou mesmo representado em configurações mais específicas — cria pontos de convergência de sentimentos reprimidos, e concentram o ódio e o preconceito nesses pontos focais. São as chamadas “sombras coletivas”.

O surgimento das sombras coletivas normalmente é precedido por momentos de fragilidade social extrema: uma grave crise financeira ou conflitos de massa. E essas sombras ganham contornos reais quando são direcionadas para os culpados dessa fragilidade. Ou, pelo menos, de quem se pretende culpar, uma vez que essas ondas de ódio coletivo não precisam de racionalidade ou mesmo do entendimento real das responsabilidades; basta que algo ou alguém consiga canalizar as energias negativas.

É quando esse grupo projeta seus próprios aspectos sombrios nesse elemento criado ou identificado como a origem do mal. E assim, evita-se que o grupo encare internamente essas sombras, não confronte suas negatividades. Esse movimento de negação e expiação do mal, conseguem muitas vezes unificar o grupo, e refletir as frustrações individuais de seus componentes.
A psicologia nos ensina que essas projeções são individualizadas através de arquétipos — elementos da psique pré-racional que criam representações que passam a existir no inconsciente coletivo — como o herói, o salvador, o tolo, o governante, o rebelde e tantos outros. Todos facilmente identificados quando a história de um povo é contada. Os movimentos sociais mais importantes estão sempre ligados a algumas dessas figuras e forças arquetípicas.

Embora pareça algo técnico e distante, esses conceitos explicam como algumas figuras são alçadas ao poder, e carregam uma massa fiel de seguidores que não precisam de justificativas reais ou racionais para aceitar o líder e seus desígnios. Há certamente uma forte carga religiosa em muitos casos, mas elas sempre trazem em sua base esses conceitos sociais, que permitem, inclusive, que o líder seja visto como alguém ungido ou escolhido por Deus para liderar esse grupo de pessoas.

A história é repleta de líderes assim, há exemplos em matizes ideológicas distintas, e até antagônicas. Napoleão, Hitler, Stalin, Saddam, Mao Tsé-tung, Imperatriz Cixi, e tantos outros exemplos, nos mostram que esses líderes conseguiram personificar as projeções reprimidas na cultura, ou no coletivo das sociedades que viveram. Eles não apenas falam e fazem o que os liderados esperam, como tem a liberdade e a representatividade para falar e fazer o que se queria falar e fazer, coletivamente. Mesmo que inconscientemente.
A imagem do aperto de mão entre o presidente americano, Richard Nixon, e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Mao Tsé-Tung, torna pública, após uma viagem planejada em absoluto segredo no auge da Guerra Fria, a aproximação entre os dois países. O objetivo dos EUA era frear a influência soviética sobre a China (O Globo).
A imagem do aperto de mão entre o presidente americano, Richard Nixon, e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Mao Tsé-Tung, torna pública, após uma viagem planejada em absoluto segredo no auge da Guerra Fria, a aproximação entre os dois países. O objetivo dos EUA era frear a influência soviética sobre a China (O Globo). / Foto: AP/21-2-1972


É difícil conceber, por exemplo, que a sociedade alemã apoiou o extermínio de judeus, muitos deles antes seus vizinhos e conhecidos, até serem desumanizados pelo movimento nazista. Hitler concentrava e personificava a sombra coletiva da Alemanha arruinada no pós primeira guerra, e estava legitimado para agir em nome do povo. Embora alguns negassem a existência dos campos de concentração, ou fechassem os olhos para outras atrocidades, parte significativa da sociedade alemã — há pouco mais de 80 anos, portando extremamente recente no tempo histórico — dava ao líder sombrio o poder necessário para cometer assassinato em massa de um grupo étnico transformado em alvo das projeções de ódio da sociedade, transmutados em bodes expiatórios.
Em 1938, pelo Acordo de Munique, as potências europeias davam à Alemanha nazista o direito de anexar partes da Checoslováquia — que não assinou o documento final. Na foto, o premier britânico, Neville Chamerlain, cumprimenta Adolf Hitler (O Globo)
Em 1938, pelo Acordo de Munique, as potências europeias davam à Alemanha nazista o direito de anexar partes da Checoslováquia — que não assinou o documento final. Na foto, o premier britânico, Neville Chamerlain, cumprimenta Adolf Hitler (O Globo) / Foto: 30-9-1938


Quanto mais primitivo o nível de consciência da sociedade, mais se acredita em salvadores da pátria, ou em líderes ungidos. Esse nível de consciência pode diminuir ou aumentar pelos níveis de educação e cultura de uma sociedade, mas também é afetado pelas crises, e os líderes carismáticos que conseguem perceber esses momentos e personificar as sombras coletivas, transformam-se, invariavelmente, em ditadores.

O bode expiatório

A figura do “bode expiatório” existe tanto na Torá, livro sagrado do judaísmo, como na Bíblia, livro máximo do cristianismo, em Levítico. A ideia central é a mesma: um animal, no caso um bode, é sacrificado em uma cerimônia de expiação — de purificação dos pecados. Segundo a tradição judaica, durante as cerimônias hebraicas do Yom Kippur dois bodes eram separados para sacrifício.

O primeiro era queimado em holocausto (oferta queimada, sacrifício pelo fogo) em um altar, junto de um touro. O segundo bode era deixado ao relento no deserto, depois do sacerdote colocar a mão sobre sua cabeça, como forma de transmitir todos os pecados de seu povo para o animal; abandonado, e lavando todos os pecados consigo, o bode era ofertado no deserto ao anjo caído Azazel.

O bode expiatório, de William Holman Hunt.
O bode expiatório, de William Holman Hunt. / Reprodução
O ritual que envolve os bodes no judaísmo e no cristianismo, duas das maiores religiões monoteístas do mundo, mostram que a expiação é necessária socialmente. É preciso que se crie um elemento que concentre os sentimentos que não queremos ver em nós mesmos, e quando coletivamente esses sentimentos ficam insustentáveis, “bodes” são eleitos e apedrejados pelo ódio reprimido.

As redes sociais criam bodes expiatórios todos os dias, e não é incomum ver comentários repletos de ódio e preconceito em publicações dos mais variados assuntos. Linchamentos virtuais são cometidos sem que se tenha conhecimento significativo da situação apresentada, em um claro movimento de manada.

O bode, representado aqui como a figura que concentra as sombras coletivas, permite que um grupo social concentre seu ódio, e não apenas permite que se camufle as imperfeições internas, como oferece a esse grupo uma maior unidade.

O historiador, antropólogo e filósofo francês, René Girard, falecido em 2015 nos EUA, chama os indivíduos que elegem bodes expiatórios para concentrar ódio e violência de “selvagens grosseiros”. Segundo o antropólogo, essas pessoas precisam constantemente “apropriar-se de quaisquer vítimas para poderem se livrar de seus fardos violentos”. Nas obras de Girard, o “mecanismo do bode expiatório” muitas vezes se aplica quando “a vítima pertence a uma minoria étnica ou racial”, sendo ela, a vítima, o sujeito destinado a um mecanismo de exterminação da violência social.

Os desejos miméticos

Outro conceito utilizado nas ciências sociais trata da imitação e do desejo que as pessoas carregam, invariavelmente, em copiar comportamentos ou ideias de outras. Um objeto não é desejável se outra pessoa não desejá-lo anteriormente, ou não utilizar esse objeto como forma de destaque social.

Em outras palavras: um carro de luxo só se torna devidamente cobiçado coletivamente quando se transforma em um objeto de desejo coletivo, e passa a ser utilizado por figuras proeminentes da sociedade. Esses desejos miméticos, ou de imitação, são potencializados pela propaganda, pelo cinema, pela televisão e, mais recentemente, pelas redes sociais.

Embora os desejos miméticos produzam consumo e desenvolvimento, em certa medida, quando o que se deseja se torna impossível aos indivíduos médios, ou certos comportamentos apenas são aceitos por determinadas pessoas, os membros da comunidade têm seus desejos miméticos reprimidos, e quando somados às regras e normas sociais, produzem um sistema que castra as vontades e produz ódio e violência.
James Dean, ator americano nascido nos anos 1930, ainda é considerado um ícone cultural da moda, e representa o arquétipo do rebelde. Sua imagem vende ainda hoje, e é copiada pelo desejo mimético.
James Dean, ator americano nascido nos anos 1930, ainda é considerado um ícone cultural da moda, e representa o arquétipo do rebelde. Sua imagem vende ainda hoje, e é copiada pelo desejo mimético. / Reprodução


Os indivíduos, ao controlarem suas vontades, produzem internamente violência, e esse estado violento pode resultar em conflitos constantes e com potencial para fugir do controle. Então, para que essa violência canalizada e estimulada não produza confrontos entre os próprios sujeitos, entre determinados grupos, surge o mecanismo do bode expiatório.

Os bodes da TV aberta no Brasil

No início dos anos 1990, programas policialescos tinham altos níveis de audiência, e apresentadores como Gil Gomes e Luiz Alborghetti, utilizavam-se da violência como apelo. Concentrados na idéia de que “bandido bom é bandido morto”, esse programas traziam os detalhes de operações policiais e evidenciavam as violências cometidas pelos agentes da lei.

Os telespectadores, muitos submetidos a um estado de violência constante nas cidades e abandonados pelo sistema de proteção estatal, conseguiam ter aliviados seus sentimentos reprimidos pela violência presenciada na TV. Sentiam-se vingados, e com a sensação que “alguém está fazendo alguma coisa” ou mostrando para eles algo que eles queriam fazer e não podiam.

Sem se preocupar com preceitos constitucionais estabelecidos no Brasil desde 1988, como a presunção de inocência, o direito de imagem, a ampla defesa e o contraditório, esses programas promoviam o julgamento público de indivíduos que apresentavam, sistematicamente, as mesmas características físicas e sociais.

Em 2015 aconteceu o ápice de proliferação desse tipo de programa, e muitos apresentadores foram alçados a cargos públicos eletivos. Foi o caso de Wagner Montes, falecido em 2019, apresentador do programa “Balanço Geral”, da Rede Record, e “Cidade Alerta”, que elegeu-se como deputado estadual pelo Rio de Janeiro. Com o bordão “escracha!”, Montes criou um quadro em seus programas chamado de “esquenta a caldeira”, onde os mortos em operações policiais eram colocados para serem encaminhados ao que ele denominava de “inferno”.

Nesse mesmo período, o apresentador Sikêra Júnior, do programa da Rede TV!, “Alerta Nacional”, popularizou o termo comumente usado pelas milícias do Rio: “CPF cancelado”. Sikêra apresentava um quadro semelhante ao antes exibido por Wagner Montes, chamado de “pote do demo”, onde bonecos simbolizando os corpos mortos pela polícia eram colocados para serem queimados, em claro processo de expiação.
Quadro "pote do demo", com o apresentador Sikêra Júnior.
Quadro "pote do demo", com o apresentador Sikêra Júnior. / Reprodução


Sikêra e Montes usavam o culto à morte, um tipo peculiar de humor macabro e principalmente, traziam à exibição pública de massa um leque de bodes expiatórios, que regularmente pertenciam ao mesmo grupo social e racial, e invariavelmente vindos de um mesmo local periférico.

Marielle Franco, assassinada no Rio, com seu motorista Anderson Torres.
Marielle Franco, assassinada no Rio, com seu motorista Anderson Torres. / Instituto Marielle Franco
Marielle e o bode na sala


Em 14 de março de 2018, aproximadamente às 21:10h, no cruzamento da Rua
Joaquim Palhares com a João Paulo I, no bairro Estácio, no Rio de Janeiro, o ex-policial militar Ronnie Lessa, acompanhado do também ex-policial Élcio Queiroz e mais dois comparsas, dispararam tiros contra o carro onde estavam a ex-vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. Ambos morreram no local.

A morte de Marielle, pelas circunstâncias e perfil da vítima — que além de preta e periférica, tinha uma atuação contra as milícias do Rio de Janeiro —, ganhou destaque nacional e se transformou em uma das apurações policiais mais acompanhadas do país.

Em um extenso relatório de 479 páginas, finalizado no último 24 de março, a Polícia Federal deu como concluída a apuração do crime, e apontou os executores e os mandantes. Como uma das principais motivações, o relatório apontou uma disputa de terras, onde um grupo da Câmara Municipal do Rio, liderado por Chiquinho e Domingos Brazão, buscava uma área para fins comerciais, enquanto Marielle tentava a utilização das mesmas terras para fins sociais, de moradia popular.

Se a ideia dos mandantes era que Marielle deixasse de ser um obstáculo após sua morte, o tiro saiu pela culatra. Além de terem sido presos, a investigação da morte da vereadora se transformou em um problema para os negócios da milícia carioca. Marielle representou ali dois tipos de bode: o expiatório e o que permanece na sala, como algo que atrapalha as negociações.

Embora vítima e atuante contra um grupo criminoso, Marielle foi considerada culpada. De perfil social, racial e de gênero prontos para serem odiados por integrantes de grupos de extrema-direita, a morte da vereadora canalizou ódios coletivos e foi constantemente alvo de ridicularização e de movimentos que buscavam culpar a vítima pelo crime, onde, na posição de bode expiatório, mereceu ser sacrificada por ser detentora de “pecados” não aceitos por determinado grupo.

No ápice desses movimentos, durante as eleições de 2018, uma placa de rua, nomeada em homenagem a Marielle, foi rasgada ao meio pelas mãos de Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, então candidatos a deputado federal pelo PSL. Apesar do ato violento e de ódio à vítima, ambos foram eleitos.
Daniel Silveira e Rodrigo Amorim posam novamente com placa quebrada de Marielle Franco.
Daniel Silveira e Rodrigo Amorim posam novamente com placa quebrada de Marielle Franco. / Reprodução/rede social


Em 2022, em 8 de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a mesma dupla reeditou a foto, dessa vez no gabinete de Amorim, onde exibiram com orgulho a placa destruída, com uma das metades emoldurada. Na imagem era possível ver, ao fundo, um fuzil e um quadro com o senador Flávio Bolsonaro, filho do ex-presidente Bolsonaro, acusado de envolvimento com as milícias.

Mal em todos

A trajetória do caso Marielle Franco reflete vividamente a complexidade das sombras coletivas e do mecanismo do bode expiatório em nossa sociedade. Marielle, uma voz incômoda para muitos interesses poderosos, foi transformada em alvo de ódio e violência, e mesmo imperfeita como qualquer pessoa, foi vítima.

Ao ser assassinada de forma brutal, Marielle se tornou um bode expiatório para aqueles que preferem desviar o olhar de suas próprias sombras e responsabilidades. Sua morte não apenas evidenciou a face sombria de nossa sociedade, mas também revelou a necessidade urgente de confrontarmos essas realidades obscuras que permitem a perpetuação do ódio e da injustiça.

É fundamental reconhecer que todos nós carregamos em nós a capacidade para o mal e que, ao invés de procurarmos bodes expiatórios para nossas frustrações e sombras coletivas, devemos nos enxergar como iguais, buscando compreender e confrontar nossas próprias imperfeições.

Do contrário, nunca conseguiremos tirar os bodes da sala.
Compartilhe
Com que Caio eu vou?
01/04/2024 | 21h44
Noel Rosa
Noel Rosa / Reprodução
No samba “Com que roupa?”, de Noel Rosa, o compositor está às turras com seu guarda-roupa depois de receber um convite. Se achando maltrapilho, o eu lírico do samba disse estar “pulando como sapo” para conseguir um novo terno, uma roupa nova para vestir.


Em Campos, quase uma década depois do samba de Noel, os políticos estão decidindo com que roupa se apresentarão nas eleições que se avizinham. Alguns tentam as vestes do bolsonarismo, outros buscam vestimentas petistas.

Entre esses personagens políticos está Caio Vianna — que assumiu o mandato de deputado federal por ocupar a terceira suplência do PSD —, principal herdeiro político de seu pai, Arnaldo Vianna, que foi prefeito de Campos no final dos anos 1990 e ainda carrega boa avaliação de parte do eleitorado campista.

Em 2020, Caio foi candidato à prefeitura, e no segundo turno teve mais de 110 mil votos, ficando com 47,60% da preferência do eleitorado. Nesta segunda-feira (1), o prefeito do Rio, Eduardo Paes, cumpre um acordo que fez com o presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar, e disse que Caio “volta definitivamente para Campos”, uma vez que seu secretário de Cultura, Marcelo Calero, primeiro suplente do PSD, volta à Câmara Federal.

Apesar de ter sido um ferrenho opositor de Wladimir Garotinho em 2020, Caio Vianna está apoiando a pré-candidatura do atual prefeito de Campos para a reeleição. À Folha, Caio disse que Eduardo Paes irá se “arrepender, e muito, da forma como conduziu” o rearranjo na Câmara.

A questão é saber com que roupa Caio virá nessas eleições.

No mesmo dia que perdeu o mandato, acompanhou Wladimir em inaugurações na praia de Farol de São Tomé, e degustou um prato de costela com aipim, aderindo a uma das estratégias de marketing do prefeito, que constantemente publica suas refeições em eventos políticos.

Os 110 mil votos conseguidos para o executivo, e os mais de 36 mil recebidos para deputado, mostram que Caio, inegavelmente, tem voto em Campos. Caso decida vestir a roupa de apoiador de Wladimir, certamente conseguirá atrair eleitores, embora também carregue rejeição.

Se optar pelo bermudão e havaianas das praias cariocas, ou pela camisa de linho em Búzios, e se distanciar da eleição em Campos, deixa, pelo menos, de ser um adversário relevante para o prefeito.

Wladimir parece ganhar votos com qualquer roupa que Caio venha, desde que tenha seu rosto e seu futuro número de campanha estampados nela. E a fatura certamente será cobrada se a vestimenta der certo.

Após o samba com Eduardo Paes ter dado “praga de urubu”, como cantou Noel, Wladimir reforça o convite para compor o enredo campista. Resta saber com que roupa Caio irá.
Compartilhe
A 'Natália da direita' resolverá?
31/03/2024 | 10h00
Pesquisas apontam tendências. Mesmo se a oposição em Campos tomar para si uma atitude negacionista, e não acreditar no favoritismo de Wladimir apontado em todas até aqui, a presença do prefeito no mundo virtual deixa os opositores em uma situação desconfortável.

Porém, na eleição, quando o jogo é colocado em campo para valer, o resultado pode sempre surpreender.

No meio político, ir ao segundo turno contra o candidato da máquina, ou o favorito, é a vitória que se busca alcançar, porque é sempre uma “eleição nova”, uma chance de virar o jogo quando apenas duas alternativas se apresentam.

Para acontecer o segundo turno, é preciso que se tenha candidatos com resultados que se aproximem, com percentuais próximos de votos. Isso vale tanto para uma eleição polarizada como pulverizada. Se apenas um dos nomes se sobressair a um percentual alto, que o distancie muito dos outros, inviabiliza o segundo turno. É matemática.

O cenário de Campos, a preço de hoje, é confortável para a reeleição do atual prefeito. O papel da oposição é fazer com que o jogo jogado mude os placares na casa de apostas. E para isso, coloca em campo novos nomes com potencial para jogar duro.

No último pleito, o campo progressista de Campos deu à Professora Natália o papel de revelação. Em sua primeira disputa, seus 11.622 votos conferiram a ela um papel de destaque em uma cidade de perfil conservador. Ela teve menos de 1 ponto percentual de diferença para o prefeito da ocasião que tentava a reeleição, Rafael Diniz.

O segundo turno aconteceu pela soma dos votos deles (10,13%) com os resultados de mais de dois dígitos vindos de outros dois candidatos: Dr. Bruno Calil (13,17%) e Caio Vianna (27,71%).

No pleito que se avizinha, a delegada licenciada da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), Madeleine Dykeman, é a aposta de Rodrigo Bacellar, principal nome da oposição e presidente da Alerj. Com uma carreira brilhante na Polícia Civil, Madeleine tem perfil conservador, alinhado ao bolsonarismo.

Se a ideia é fazer uma “Natália da direita”, vai ser preciso apostar que outros nomes tenham ao menos dois dígitos, ou que o nome da delegada alcance um percentual de ao menos 30%.

Reprodução
Rejeição em 2020, aprovação em 2024


Em 2020, o principal elemento em disputa era a rejeição. Rafael Diniz amargava altos índices de reprovação de seu governo, confirmado com o resultado nas urnas. Era preciso dar uma resposta e apresentar propostas para resolver a crise. A abstenção em torno de 25% foi influenciada pela pandemia, mas mostrou também que havia descrédito de ¼ da população, que não tinha opções que a representasse.
O resultado apertado do segundo turno veio a reforçar a ideia de que o campista não tinha favoritos.

Hoje, o principal elemento em disputa é a aprovação. Com um governo bem avaliado, e com forte presença nas redes sociais, o prefeito Wladimir tem situação oposta à de Rafael. Com a pandemia controlada, a tendência é que a abstenção diminua, o que deve ser reforçado se a imagem de independência de Wladimir do grupo político de seu pai tenha sido efetiva entre o eleitorado mais reativo ao garotismo.

A Virtú e a Fortuna, que Maquiavel conceitua em sua obra prima “O Príncipe”, tratam-se das qualidades do governante e da ocasião oportuna, respectivamente. Embora não se deve depender das vontades da deusa da Fortuna, fazer dela sua aliada, e tentar controlá-la, é fundamental para qualquer candidato, até para que a Fortuna não se transforme em derrocada.
Compartilhe
Sobre o autor

Edmundo Siqueira

[email protected]