Sana Gimenes: Precisamos falar sobre o racismo
Sana Gimenes 05/04/2025 08:29 - Atualizado em 06/04/2025 10:19
Sana Gimenes
Sana Gimenes
Recentemente, a cidade de Campos dos Goytacazes foi destaque nacional, infelizmente, de caráter negativo, em razão das ofensas racistas proferidas por um advogado a uma magistrada da Comarca. Algumas pessoas logo apontaram para o possível transtorno mental do causídico diante de injúrias tão ostensivas e reiteradas (o que, obviamente, não está descartado), mas o que importa aqui ressaltar é o seguinte: o racismo no Brasil ainda é ostensivo e recorrente, mesmo que também existam muitas formas de seu mascaramento. E precisamos falar sobre isso.
Uma pesquisa recente do Instituto Datafolha mostrou que a maior parte dos brasileiros considera que a população do país é racista e que 73% dos pretos e pardos já se sentiram discriminados em razão da cor de sua pele. Se, por lado, tais dados revelam que o racismo ainda persiste no país mesmo 137 anos após a abolição da escravatura, por outro, eles mostram que o mito da democracia racial já se desfez aos olhos da maior parte dos brasileiros, o que é muito saudável, já que não se pode combater aquilo que não existe.
Durante muito tempo disseminou-se a ideia de que o Brasil seria um território de convivência harmônica e igualitária entre os indivíduos, posto que marcado pela miscigenação, diferentemente de países como os Estados Unidos, que tiveram um sistema legal de segregação racial. É fato que desde a proclamação da República em 1889, um ano após a Lei Áurea, nunca houve uma lei expressamente discriminatória em relação às pessoas negras, porém, também não ocorreram políticas de inclusão efetiva dos outrora escravizados, que foram deixados à própria sorte em condições de pobreza e analfabetismo. Consequentemente, também se deu sua exclusão da cidadania política, uma vez que a Constituição de 1891 negava o sufrágio a analfabetos e mendigos, dentre outros grupos. Ademais, é notório que o próprio governo brasileiro se baseou em uma ideologia racista ao promover a imigração de brancos europeus por meio da concessão de terras e de auxílios financeiros, ou então aprovando leis, como a que proibia a capoeira, que criminalizavam a cultura negra. Tudo isso dentro de um projeto de embranquecimento do Brasil.
Se é lenda que a cidade de Campos foi a última do país a abolir a escravidão, é realidade que esta foi a cidade com o maior número de pessoas escravizadas no Rio de Janeiro e que a atividade econômica da região foi pautada na exploração brutal de seres humanos durante muito tempo. Infelizmente, o evidente caso de racismo contra a magistrada não é um algo isolado no município. No ano passado, justamente no dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra, a página da Prefeitura Municipal em uma rede social recebeu uma série de ataques racistas como réplicas por uma postagem feita para explicar a importância da data e comemorar o fato de que, pela primeira vez, a mesma se tornara um feriado nacional.
Ainda que a cidade de Campos dos Goytacazes seja majoritariamente negra, não se vê esse reflexo numérico na ocupação das instâncias de poder. Por conseguinte, quando uma mulher negra se torna Juíza de Direito, ela está rompendo uma enorme barreira dentro do racismo (e do sexismo) estrutural, mas, ainda assim, ela está vulnerável. Nesse sentido, cabe destacar que as mulheres negras sofrem mais violência do que mulheres brancas e que a naturalização dos padrões de violência contra a população afrodescendente em geral dificulta que as medidas de punição sejam efetivamente adotadas.
De todo modo, alguns avanços importantes foram feitos em sede legislativa. Em 2023, mudanças na Lei do Racismo, a Lei nº 7.716/89, equipararam a injúria racial ao crime de racismo, aumentando sua pena e tornando-a imprescritível e inafiançável. Além disso, a injúria racial não mais depende da representação do ofendido para ser investigada e processada, tratando-se, portanto, de crime de ação penal pública incondicionada. Isso é relevante porque muitas vezes as vítimas desses crimes não possuem os recursos materiais ou mesmo emocionais para darem prosseguimento a uma queixa-crime por conta própria. Outro ponto que merece destaque foi que o chamado racismo recreativo passou a ser considerado uma causa especial de aumento de pena. O racismo recreativo se configura pela prática de atos racistas em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. O que, na verdade, significa usar o humor para inferiorizar pessoas e manter os códigos de privilégio branco. Sua punição mais majorada é importante porque, até então, essa era uma prática relativizada em nossa sociedade, inclusive banalizada por inúmeras pessoas, muito embora ela exerça uma especial influência deletéria sobre a formação de crianças e adolescentes, por exemplo.
Como Professora de Direito, mulher branca, e filha da classe média, busco fazer o meu papel na efetivação de uma sociedade verdadeiramente democrática e pluralista, reconhecendo meus privilégios e dando voz às minorias. Por esse motivo, certa vez fui questionada por um aluno sobre o motivo de minhas aulas abordarem muito frequentemente a questão do racismo no Brasil. Respondi que era meu compromisso legal e moral como jurista falar sobre essa temática até que, de fato, viesse a existir igualdade racial como determina a Constituição Federal. Aprendi com Angela Davis que em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista. Creio que o primeiro passo para essa grande empreitada é falar sobre isso.
*Professora de Direito e Doutora em Sociologia Política

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    BLOGS - MAIS LIDAS

    Mais lidas
    Suspeito de estuprar uma mulher é preso em flagrante em Itaperuna

    De acordo com a PM, a vítima foi encontrada nua e pedindo socorro em uma rua da cidade

    Nova gestão do Americano demite técnico Marcelinho Paraíba e dispensa 10 jogadores

    Técnico foi apresentado na semana passada, no dia 25 e não chegou nem a estrear

    Luto no samba com falecimento de Dadá do Parque Aurora

    Joceli da Silva Martins foi uma das figuras do Folclore e do Carnaval campista, atuando como presidente do Boi Nova Aurora

    Caio: '"Wladimir com Eduardo Paes seria a chapa dos sonhos"

    Deputado afirma que disputará pelo grupo a federal ou estadual; diz que não há condições do presidente falar que não é para comprar ovo; e afirma que Bacellar preside a Alerj e governa o Estado ao mesmo tempo

    Inauguração do novo campus da UFF Campos é adiada pela segunda vez

    Prevista para acontecer na próxima quinta, inauguração precisou ser adiada em função de compromissos inadiáveis do presidente Lula e do Ministro de Estado da Educação, Camilo Santana, que eram esperados na cerimônia