Arthur Soffiati - Culturas africanas (III)
Civilização meroítica
Na última revisão de sua lista de civilizações, Arnold Toynbee escreveu: “A área da civilização meroítica se estendia desde a primeira catarata do Nilo, rio acima, até pelo menos a sexta catarata, e talvez incluísse Jezirah (ilha) entre o Nilo Branco e o Nilo Azul, assim como a região entre o Nilo Azul e Atbara. Esta área coincide aproximadamente com o trecho egípcio da Núbia e com a região norte do atual Sudão. A área como um todo era chamada Etiópia pelos gregos e romanos. A atual Etiópia (aliás Abissínia) fica fora dela. O império faraônico egípcio avançou até a quarta catarata, no período da XVIII dinastia. O reino da Etiópia nunca se uniu politicamente ao Egito após 654 a. C. A civilização meroítica desenvolveu gradualmente características próprias, e também expandiu seu domínio em direção ao sul.” (“Um estudo da história”. Brasília: Editora Universidade de Brasília/São Paulo: Martins Fontes, 1986).
Hoje, sabe-se que a população que construiu a civilização egípcia da Antiguidade era camita (negra). À medida em que se sobe o rio Nilo, as pessoas enegrecem mais ainda. Heródoto escreveu que o Egito é um presente do rio Nilo. De fato, o Nilo e o deserto podem ser considerados como desafio natural cuja resposta foi a pujante civilização que se desenvolveu em seu vale. Para fertilizar as areias desérticas, a população abriu canais de irrigação partindo do grande rio, o que permitiu o desenvolvimento de um oásis vertical e alongado. Pode-se dizer o mesmo para a civilização meroítica, também florescendo junto aos três principais afluentes do Nilo: Nilo Branco, Nilo Azul e Atbara. Não raro, entende-se que esses últimos rios formam a ilha de Meroé. Eles quase se tocam no lago de Tana, mas existe uma passagem seca que não permite a configuração de uma autêntica ilha.
Sobre Meroé, seguimos o arqueólogo e historiador P. L. Shinnie em “Méroe: uma civilização do Sudão” (Editorial Verbo: Lisboa/Cacém, 1974), livro já antigo, mas contendo informações básicas sobre essa civilização. Se o povo que construiu o Egito foi negro, essa dúvida desaparece completamente com relação a Meroé. Os quadris das figuras femininas na arte pictórica e escultórica egípcia são estreitos. Já nas figuras femininas meroíticas, os quadris são largos, aproximando-se da anatomia negra. As mulheres são roliças. Não há como negar a forte influência egípcia na civilização que se desenvolveu em Meroé, tanto na cultura imaterial quanto na material. Os cultos do sol (Amon) e de Isis predominavam, assim como pirâmides, templos, palácios, monumentos, esculturas e baixos-relevos. Por outro lado, esses traços foram se adaptando à quase ilha de Meroé, um território muito grande e comprido. O leão e o elefante eram animais muito mais comuns na civilização meroítica que na egípcia. Eram, inclusive, animais sagrados. A cerâmica meroítica apresenta características fortemente locais, que a distinguem da cerâmica egípcia.
Pelos cálculos de arqueólogos e historiadores, essa civilização perdurou do século VI a. C. ao século IV d. C. Mil anos, portanto. O governante do império unido de Meroé era normalmente um homem, mas as mulheres desempenhavam papel destacado. Civilização é uma realidade sempre mais ampla que Estado. Se a civilização meroítica existiu durante mil anos, governos meroíticos foram registrados entre cerca de 590 a. C e 300 d. C. (890 anos seguidos).
A região em que a civilização se estendeu era tomada por muitos e grandes pântanos, mas numa faixa estreita ladeada por desertos. Meroé manteve contatos com o Mediterrâneo e bem provavelmente com a Pérsia e a Índia. Durante 1.500 anos, Meroé ocupou e governou parte do território egípcio, a partir do Império Médio (2000-1700 a. C.). No Novo Império (1580-1100 a. C.), o domínio egípcio se estendeu até a quarta catarata (na verdade até a terceira, pois os historiadores contam as quedas d’água do baixo para o alto leito de um rio). Esse domínio recuou, permitindo a formação do primeiro Estado meroítico, com sede em Napata. A situação se inverteu: Napata dominou o Egito até 654 a.C., mas o faraó Psamético II retomou a independência do Egito em 591 a.C.
Dentro do território pelo qual se estendeu a civilização meroítica, chuvas anuais diretas e abundantes criaram um quadro natural distinto do Egito. A civilização meroítica produziu fartas colheitas e férteis pastagens. A economia rural pôde sustentar a pujante civilização numa estreita faixa de terra cultivável. Além do mais, eram fartas as fontes de ferro e madeira. A presença desta segunda atesta as relações com a zona florestal da África.
Meroé foi um ponto comercial importante, ligando a África Ocidental ao mar Vermelho e daí ao Oriente. Mantinha também relações com o mundo greco-romano, tendo sido derrotado pelo Império Romano. Em 350 d.C., o rei meroíta Aezanes converteu-se ao cristianismo. Progressivamente, a protegida civilização do alto Nilo foi sendo helenizada e perdendo seus fortes traços culturais.
A escrita meroítica já foi decifrada, revelando uma língua ainda problemática. Trata-se de um sistema que adaptou a escrita hieroglífica egípcia. Vários dos deuses também são egípcios, mas Apedemek é nativo (deus leão). O elefante também era cultuado.
Em sua expansão máxima, a civilização meroítica alcançou 1.120 km em linha reta. Meroé foi uma civilização essencialmente sedentária de Dakka (Núbia egípcia) a Sennar (no médio Nilo Azul). Talvez a influência meroítica tenha alcançado o centro-oeste da África.
Civilização cristã copta
Por mais que nos últimos 50 anos tenham sido publicados estudos sobre as civilizações africanas, elas continuam bastante desconhecidas. A escravização de negros africanos lançou sobre o continente a pecha de que negros escravizáveis não poderiam criar uma civilização. Existe também um fator de ordem cultural que dificulta o estudo das civilizações africanas: a interferência cristã dos primeiros tempos e a do islamismo a partir do século VII. É muito comum também pensar-se logo na civilização egípcia quando se fala em civilizações africanas.
A civilização de Axum reuniu-se sob império de mesmo nome e se tornou conhecida no século I. Sua localização corresponde à atual Etiópia, incluindo a Eritréia, Djibuti, parte do Sudão e Iêmen, na outra margem do mar Vermelho e já na Ásia. Os povos que formariam a civilização e o império viviam na região correspondente desde o século V a. C. A partir dela, outras áreas ao redor foram conquistadas ou obrigadas a pagar tributos. Além disso, Axum tornou-se grande centro comercial, entre o mar Mediterrâneo e a Índia. Existia uma escrita própria, chamada de ge’ez.
O império de Axum converteu-se ao cristianismo como religião oficial em meados do século VI. O núcleo do império tornou-se a base de uma civilização cristã independente de Roma e de Constantinopla, ou seja, do cristianismo católico e ortodoxo. Nos primeiros tempos do Cristianismo, houve muita discussão sobre a natureza de Cristo. Surgiram distintas interpretações. Para os seguidores do teólogo Ário, Jesus era totalmente humano e não Deus encarnado. Eutiques e seus seguidores sustentavam que Jesus apresentava apenas natureza divina, concepção que evoluiu para o monofisismo/miafisismo, segundo a qual as naturezas divina e humana de Jesus estão unidas de tal forma que não é possível distingui-las. Nestório, patriarca de Constantinopla, conseguiu muitos adeptos ao afirmar que as duas naturezas de Cristo estão separadas. O catolicismo acredita que as duas naturezas de Cristo — humana e divina — estão ligadas intrinsecamente pela união hipostática, ou seja, Jesus tem duas naturezas, humana e divina, inseparáveis.
Pelos Concílios Ecumênicos de Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431), Calcedônia (451), segundo de Constantinopla (553), terceiro de Constantinopla (681), segundo de Niceia (787), de toda essa discussão bizantina que hoje perdeu o sentido, o catolicismo apostólico romano saiu vitorioso. Os nestorianos refugiaram-se no Oriente Médio, chegando até o Japão, e os monofisistas fixaram-se no Egito e na Etiópia. Posteriormente, dividiram-se em várias igrejas independentes.
O nestorianismo hoje é representado pela Igreja Assíria do Oriente e pela Igreja Sírio-Caldeia do Oriente. Toynbee considerou o nestorianismo uma denominação cristã contida pelo islamismo em sua expansão.
O monofisismo, por sua vez, fixou-se na Etiópia e no Egito, tendo desenvolvimento próprio. Toynbee entende que o monofisismo sofreu fraco estímulo do islamismo e não cresceu (“Um estudo da história”. Brasília: Editora Universidade de Brasília/São Paulo: Martins Fontes, 1986). Para tanto, ele usa o conceito de civilização abortada. Não se trata de um bom conceito. Afinal, o monofisismo copta continua existindo em igrejas independentes. O monofisismo, como qualquer outra concepção religiosa, modificou-se com o passar do tempo. Sem confundir biologia com sociologia e história, não se pode traçar a trajetória de vida de uma pessoa que não chegou a existir por ter sido abortada. Não se pode dizer o mesmo de uma cultura, traçando para ela outra trajetória que não a percorrida por ela. Não se pode dizer que ela ganharia grandes proporções se nenhuma força lhe tolhesse o caminho
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