Quem foi o campista que proclamou a República?
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Como poucos, ele entendia a importância da palavra. Nunca ousaria usar a linguagem como arma; era justamente o oposto. As palavras eram sua antiartilharia. Algo que substituía baionetas e lâminas. Não precisaria usar força bruta, ou instrumentos de açoite. Ele sabia bem como cortar a carne hipócrita de quem precisasse com palavras mordazes, essas impressas nos panfletos e em seus jornais, ou em dizeres de seus muitos discursos em linha reta, como flechas.
Mas estava cansado e adoecido. Morava em um barraco na freguesia de Inhaúma — o que mais tarde se tornaria subúrbio da grande metrópole Rio de Janeiro, fazendo divisa com outros bairros pobres como Pilares, Engenho de Dentro, Engenho da Rainha, Del Castilho e Higienópolis, além de parte do Complexo do Alemão. Já naquela época, era um local de miséria. Sentia que cada dia na situação de penúria em que vivia era como mais uma linha em sua sentença de morte: sozinho, desempregado, isolado e amaldiçoado por seu próprio talento e coragem.
Para garantir que a sanidade ainda andasse com ele, não o abandonasse como os outros, era preciso ao menos manter esperanças e projetos. Havia um, em especial, ao qual dedicava boa parte de seu tempo em Inhaúma. Achava uma ironia do destino que viesse parar naquela região que levava o nome do pássaro Inhuma, o Anhima cornuta. Ele se via como aquela ave, se identificava com sua cor preta, e mantinha um tufo de cabelo mais alto, já quase no bregma de seu crânio, pela calvície que aumentara – assim como o pequeno Inhuma, que ostentava um chifre pontiagudo sobre a cabeça. Havia desenhos sobre sua mesa de trabalho que, volta e meia, retratavam aquela simpatia de identificação com o animal.
Naquela tarde, não iria desenhar ou se debruçar sobre o “Santa Cruz”, nome que deu ao projeto. Estava terminando de escrever o discurso que havia rascunhado na noite anterior. Riscou uma ou duas frases, adicionou algumas palavras. “É isso.” Dobrou três vezes a folha e a colocou no bolso interno do terno. Em substituição da gravata borboleta, dois lenços: um branco, e o outro vermelho fosco. Passou a mão acima das orelhas para alinhar o cabelo, usou os dedos e unhas como pente, como se coçasse, e então repetindo o mesmo para a barba, que mantinha grande há bastante tempo. Olhou-se rapidamente no reflexo de um velho espelho do barracão e pôs-se a esperar o bonde do lado de fora.
Ali, esperando o bonde, lembrou-se de sua infância em Campos dos Goytacazes. Ele nasceu em 1853, concebido de um ato violento de um padre branco contra uma mulher escravizada de apenas 15 anos de idade. Mas cresceu como um homem livre, apesar de filho de escravizada, e apesar de preto em uma sociedade de alta cultura escravista. Teve acesso a boas escolas públicas e deu aulas particulares no Rio, onde uma de suas alunas iria se tornar sua esposa: Maria Henriqueta, filha de militar, branca, de classe alta. O futuro sogro dele frequentava o Clube Republicano e o levou para aquela realidade, para aquela necessidade que se converteria em golpe.
Ele era jornalista, sempre no entendimento da importância da palavra. Também era escritor, com livros publicados, e ainda farmacêutico. Quando a República ganhava contornos de realidade no Brasil, ele já era vereador no Rio de Janeiro. O jornalista convertido em político convenceu-se que a República era a saída. Havia sido uma das principais vozes da abolição, e se tornaria, igualmente, aquele que proclamaria a República.
Mas estava cansado e adoecido. Morava em um barraco na freguesia de Inhaúma — o que mais tarde se tornaria subúrbio da grande metrópole Rio de Janeiro, fazendo divisa com outros bairros pobres como Pilares, Engenho de Dentro, Engenho da Rainha, Del Castilho e Higienópolis, além de parte do Complexo do Alemão. Já naquela época, era um local de miséria. Sentia que cada dia na situação de penúria em que vivia era como mais uma linha em sua sentença de morte: sozinho, desempregado, isolado e amaldiçoado por seu próprio talento e coragem.
Para garantir que a sanidade ainda andasse com ele, não o abandonasse como os outros, era preciso ao menos manter esperanças e projetos. Havia um, em especial, ao qual dedicava boa parte de seu tempo em Inhaúma. Achava uma ironia do destino que viesse parar naquela região que levava o nome do pássaro Inhuma, o Anhima cornuta. Ele se via como aquela ave, se identificava com sua cor preta, e mantinha um tufo de cabelo mais alto, já quase no bregma de seu crânio, pela calvície que aumentara – assim como o pequeno Inhuma, que ostentava um chifre pontiagudo sobre a cabeça. Havia desenhos sobre sua mesa de trabalho que, volta e meia, retratavam aquela simpatia de identificação com o animal.
Naquela tarde, não iria desenhar ou se debruçar sobre o “Santa Cruz”, nome que deu ao projeto. Estava terminando de escrever o discurso que havia rascunhado na noite anterior. Riscou uma ou duas frases, adicionou algumas palavras. “É isso.” Dobrou três vezes a folha e a colocou no bolso interno do terno. Em substituição da gravata borboleta, dois lenços: um branco, e o outro vermelho fosco. Passou a mão acima das orelhas para alinhar o cabelo, usou os dedos e unhas como pente, como se coçasse, e então repetindo o mesmo para a barba, que mantinha grande há bastante tempo. Olhou-se rapidamente no reflexo de um velho espelho do barracão e pôs-se a esperar o bonde do lado de fora.
Ali, esperando o bonde, lembrou-se de sua infância em Campos dos Goytacazes. Ele nasceu em 1853, concebido de um ato violento de um padre branco contra uma mulher escravizada de apenas 15 anos de idade. Mas cresceu como um homem livre, apesar de filho de escravizada, e apesar de preto em uma sociedade de alta cultura escravista. Teve acesso a boas escolas públicas e deu aulas particulares no Rio, onde uma de suas alunas iria se tornar sua esposa: Maria Henriqueta, filha de militar, branca, de classe alta. O futuro sogro dele frequentava o Clube Republicano e o levou para aquela realidade, para aquela necessidade que se converteria em golpe.
Ele era jornalista, sempre no entendimento da importância da palavra. Também era escritor, com livros publicados, e ainda farmacêutico. Quando a República ganhava contornos de realidade no Brasil, ele já era vereador no Rio de Janeiro. O jornalista convertido em político convenceu-se que a República era a saída. Havia sido uma das principais vozes da abolição, e se tornaria, igualmente, aquele que proclamaria a República.
Ainda esperando o bonde, lembrou-se com orgulho de seu ato, perante um grupo reunido na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, onde leu o documento que iria mudar o regime político-social do país, e mudaria os contornos do Brasil definitivamente. O documento, escrito por ele no ápice da revolta militar e de alguns setores sociais contra a monarquia, foi finalizado no jornal, onde deveria ser. A moção pública que ele confeccionou e leu no plenário da Câmara do Rio colocou fim à monarquia. Marechal Deodoro da Fonseca ainda elaborava a mudança de regime, e colocava as tropas nas ruas, mas ali, naquele espaço político, liderado por ele, a República nascia.
O bonde enfim chegara no ponto. Logo que subiu, foi reconhecido. Era seu aniversário naquele 9 de outubro. Sentou-se ao lado de um homem, e ouviu dele: “Que orgulho! Vou me sentar ao lado do campista que proclamou a República! Viva José do Patrocínio!”.
(Esse é um trecho de um livro inédito, de minha autoria, que será lançado em Campos, brevemente).
O bonde enfim chegara no ponto. Logo que subiu, foi reconhecido. Era seu aniversário naquele 9 de outubro. Sentou-se ao lado de um homem, e ouviu dele: “Que orgulho! Vou me sentar ao lado do campista que proclamou a República! Viva José do Patrocínio!”.
(Esse é um trecho de um livro inédito, de minha autoria, que será lançado em Campos, brevemente).