A mesma consumidora se queixa do centro em dias de semana, e do próprio Mercado. “Apesar de gostar de ir ao Mercado aos domingos, o ambiente não é dos melhores. As bancas poderiam ser diferentes, não sei, o local poderia ser mais atrativo para os consumidores”. Sobre frequentar o Centro para compras em dias de semana, Manuela é taxativa:
“Prefiro ir a Pelinca para fazer compras. Infelizmente o centro não tem as lojas que preciso, não tem muitas opções de almoço, e acho tudo muito poluído, com muita informação. Só vou ao Centro para um compra específica, algo que não encontro em outros lugares, normalmente de armarinho”.
O projeto atual para a revitalização do Centro Histórico de Campos foi chamado de “Retrofit 4.0”, pela prefeitura. Fazendo alusão ao modelo de engenharia e arquitetura que busca adequação de construções já ultrapassadas, um processo de modernização não apenas na estrutura, mas em iluminação e fachada. O projeto pretende transformar a realidade atual do centro, incentivando com isenção de impostos e promessas de melhoria em infraestrutura e transporte.
Segundo a prefeitura, o projeto prevê alguns benefícios para imóveis participantes. A ideia central é repovoar o centro, permitindo que prédios de uso misto — residencial e comercial — sejam construídos no Centro. Adequações no gabarito (altura máxima permitida) das edificações é um dos caminhos propostos. Atualmente o gabarito do centro é de 13 metros, devendo passar para 27,5 com o início do projeto.
Estão também previstas a isenção do IPTU nos dois primeiros anos para os imóveis requalificados (de uso misto), redução para 2% na alíquota do Imposto sobre Serviços de Qualquer natureza (ISS), isenção do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e a implantação de um procedimento especial aprovação das obras, chamado pela prefeitura de REAP (Regime Especial de Atendimento Prioritário – procedimento Aprova Rápido).
Para tentar resolver a questão da disponibilidade de vagas de estacionamento — problema antigo do Centro que afugenta consumidores e dificulta o acesso dos comerciários — o Projeto Retrofit 4.0 prevê a flexibilização, nos edifícios que forem requalificados, da obrigatoriedade de previsão de vagas. Além disso, o projeto contempla acordos com os proprietários dos estacionamentos do Centro para aplicação de preços promocionais em dias de eventos e datas especiais.
Tentativas e projetos anteriores
O Centro de Campos dos Goytacazes não é chamado de “histórico” sem motivo. Os primeiros centros urbanos de toda região Norte e Noroeste Fluminense — Campos e São João da Barra — datam de 1676. A agropecuária e a importância econômica e política do centro comercial de Campos ditou a ascensão, em 1835, da vila de São Salvador à categoria de cidade.
Campos experimentou as primeiras intervenções urbanísticas em meados do século XIX, quando foram construídos canais, estradas de ferro, instalação de água e esgoto e a primeira energia elétrica pública da América Latina. A ideia era inserir o Centro de Campos no processo de modernização brasileiro.
No século seguinte, novos projetos urbanísticos foram implementados. Em um dos mais ambiciosos, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito desenvolveu uma ampla reordenação do Centro, em 1902. O projeto, baseado em ‘ordem e progresso’, se preocupou essencialmente com as questões de higiene e saneamento públicos, se estendendo por toda cidade.
Os pontos de centralidade do empresariado e da intelectualidade concentravam-se nessas áreas, onde se convencionou chamar de “Boulevard da Imprensa”. Como em outros processos e urbanização, a população menos favorecida foi deixada à margem e passou a viver em zonas mais distantes da cidade. A periferia de Campos começou a ser criada nesse período, em áreas com poucos serviços e infraestrutura, e ainda alagadiças.
Em 1944, o arquiteto e então prefeito de Campos, Raul David Linhares, elaborou o PDUC (Plano de Desenvolvimento Urbanístico e Territorial de Campos). Na década de 1980, houveram pequenas adequações e tentativas de projetos urbanísticos, e em 2011, no governo Rosinha Garotinho, seguia outro projeto reformista, que começou com a reforma da Praça São Salvador, bastante criticada ainda hoje, pela retirada de árvores e descaracterização do estilo original.
Críticas ao projeto atual - Retrofit 4.0
A reforma da Praça São Salvador é ainda hoje tido como um exemplo de reformulação urbanística mal sucedido. A população não teve acesso ao planejamento, e a execução aconteceu de forma encoberta, com tapumes em volta da obra. O piso de mármore instalado em toda praça alterou a temperatura do local e o convívio social desapareceu do ambiente.
Apresentado para o setor produtivo em junho deste ano, o Projeto Retrofit 4.0 padece, até o momento, da mesma dificuldade. Sem discussões abertas ao restante da sociedade, e ainda sem Audiência Pública na Câmara de Vereadores, as intervenções foram propostas sem ouvir a maior parte dos frequentadores do Centro: trabalhadores, classe média e pessoas de menor renda.
Teresa Peixoto, Doutora em Estudos Urbanos pela Uenf, avaliou o projeto Retrofit apresentado pela prefeitura. A pesquisadora teve acesso a uma apresentação de 32 slides desenvolvida pela Secretaria Municipal de Planejamento Urbano.
Além da falta de inclusão da população no planejamento, as propostas de revitalização da área central sempre trazem conflitos entre os interesses comerciais e os patrimônios históricos. Criado em 2013, o Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (Coppam) determinou em 2015 o tombamento de prédios históricos na Avenida 7 de Setembro, Santos Dumont, Teotônio Ferreira de Araújo, Praça São Salvador, entre outros.
Teresa avalia que o projeto Retrofit trará consequências negativas para o patrimônio histórico, que apresenta no Centro diversas construções em estado de abandono, e recentemente um dos principais prédios, o Hotel Flávio, foi acometido por um incêndio e ainda segue interditado com risco de ruína total.
— Há uma máxima entre os estudiosos do urbano que diz ‘abandonar para depois transformar e adaptar aos interesses do capital’. Tenho pensado na problemática do centro histórico de Campos e, principalmente nessa proposta (Retrofit 4.0) que, a meu ver, vai acarretar consequências negativas para o patrimônio histórico e para a população que habitualmente usa, pratica e depende dos recursos que o centro oferece — avalia a pesquisadora.
Moradia, patrimônio, comércio, transporte público, acessibilidade, infraestrutura e acesso das camadas populares. Qual ‘novo centro’ virá?
Na proposta apresentada pela prefeitura, com concordância do chamado setor produtivo (comerciantes), estão previstas intervenções em áreas de alagamento — como no acesso à ponte Leonel Brizola —, a retomada da conversão subterrânea da fiação — iniciada nas intervenções do Centro do governo de Rosinha —, além de restauração de calçadas, bancos e dos monumentos da área central.
Entre as principais queixas de usuários do centro está a poluição visual das fachadas dos prédios. Com fiação exposta e emaranhada, e com marquises e materiais de publicidade que encobrem as construções históricas, o Centro se torna pouco atrativo esteticamente. O projeto Retrofit promete resolver também essa questão.
O empresário Edvar Chagas Júnior, presidente da CDL Campos, pondera que o projeto deve se preocupar com o patrimônio e que prefeitura e empresariado devem entender seu “valor e a importância". Edvar cita como o exemplo a livraria mais antiga do Brasil, a Ao Livro Verde, comércio da área central do município, que entrou com um pedido de autofalência em maio.
— Para mim o mais importante do Retrofit é a repovoação do Centro, voltar a ter moradores ali. E também a valorização do nosso patrimônio, do patrimônio histórico. Tudo isso deve ocorrer em modelo de PPP (Parceria Público Privada), onde temos que ter por parte da prefeitura a valorização dos patrimônios que são dela, como o Olavo Cardoso e outros que estão na área central, e também da iniciativa privada, que precisa entender o valor e a importância de um patrimônio histórico, como a Ao Livro Verde e outros também — ponderou Edvar Jr.
Mercado e Lapa
Previsto no projeto, a recuperação de patrimônio material do município deve passar inicialmente pelo prédio da Lira de Apolo, Teatro de Bolso e monumentos, e ser valorizado a partir da criação de um calendário de eventos culturais, de entretenimento e esportivos. A intenção da prefeitura é usar o turismo como um dos motores de investimento do Centro Histórico.
O Cais da Lapa, que passa atualmente por um processo de pintura artística, e o Mercado Municipal — objeto de projeto, já em andamento, que prevê a transferência da feira para a Praça da República, atrás da rodoviária Roberto Silveira, com posterior abertura do prédio centenário e criação de um boulevard em sua frente — estão incluídos no projeto do Retrofit, mas nos bastidores, segundo fonte, é dado como certo que só iniciarão em um possível novo governo Wladimir.
Novo Centro, velhos problemas
Prefeitura, poder legislativo e empresariado devem compreender que uma cidade não se resume em única forma, uma vez que seu espaço e seus habitantes configuram várias ‘cidades’ nela mesma.
“A multiplicidade de cores, aromas, casas, ruas e habitantes, entre incontáveis aspectos, exaltam a cidade como um organismo complexo, de difícil compreensão e contraditório por muitas vezes. Conhecer uma cidade não é apenas buscar as raízes etimológicas de seu nome, apontar seu lugar geográfico ou reduzi-la a uma classificação baseada em sua forma de povoamento ou estrutura espacial”, como ensina a arquiteta Catharina Prata, doutora em Ciências da Arquitetura, em sua tese de doutorado intitulada “Memória e Identidade em Campos dos Goytacazes”.
O Centro de Campos já recebeu diversas intervenções, e outra se mostra urgente em um cenário de falência de pontos comerciais tradicionais e esvaziamento da população. Porém, os prédios históricos não devem ser destruídos, mas sim incluídos no processo, assim como o centro do Rio de Janeiro, por exemplo, que sem o CCBB, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Paço Imperial e a Confeitaria Colombo não seria atrativo ao turismo e a própria população.
O patrimônio histórico e a população devem ser os principais parceiros do Projeto Retrofit 4.0, que traz em seu nome a ideia central de colocar o antigo em boa forma, e com a tecnologia necessária aos novos tempos, onde Manuelas e Teresas possam frequentar o Centro com prazer. Caso opte pelo isolamento e imposição, a linha entre retrofitado e fracassado será tênue.
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