Podia ser assim
Edmundo Siqueira 10/06/2023 10:22 - Atualizado em 12/06/2023 21:48
Desceu a ponte da Lapa pela direita, já que estava no sentido centro da cidade. Estava correndo; se exercitando. A mulher havia saído de sua casa em Guarus e ganhava a beira rio pela margem oposta. Cabelos presos, fone de ouvido, blusa branca — calça de suplex até o meio da canela, meias brancas e tênis de corrida.

Depois que passou da Igreja Nossa Senhora da Lapa, encontrou outros praticando caminhadas e corridas, alguns na mesma direção e outros que iam e voltavam até a curva que o rio faz, como se fosse uma enseada, no cais da Lapa.

Assim como a corredora, muitos usavam a XV de novembro para algum tipo de atividade física. Outros percorriam a pé seus trajetos por aquela via, buscando se movimentar de forma mais racional, econômica e sustentável. Mas é certo que aquelas margens urbanas do Paraíba atraíam pela beleza e pela arborização. Para o tráfego dos carros, duas pistas movimentadas de sentidos opostos separaram-se por um canteiro cheio de árvores — ipês e paus-ferro. A via mais próxima do rio terminava em um meio-fio, que por sua vez dava início a uma estreita pista asfaltada, com espaço para duas bicicletas transitarem. Jáessa ciclovia terminava em um calçadão construído no alargamento do dique, onde as pessoas se exercitavam.

A corrida que a mulher fazia naquele dia acontecia um pouco mais tarde que de costume. Percebeu que os pontos de transporte coletivo espalhados na XV de novembro já estavam cheios. O dique calçado em que corria contornava as estações-tubo, feitas de aço e vidro (inspiradas nas de Curitiba), onde as pessoas que aguardavam os ônibus podiam ver quem passava e a paisagem que o Paraíba formava na cidade. A única estação que se diferenciava era a que ficava em frente a Praça São Salvador. Um retângulo de madeira nascido do chão, com vegetação no teto e que tinha como parede de fundo um grande painel que trazia a imagem do cais da Lapa. Nas laterais, telas divulgavam eventos. Essa estação marcava o principal ponto de atravessamento da praça para a beira-rio e vice-versa.

A corrida da mulher iria terminar exatamente naquela estação. Parou com as mãos na cintura, ofegante, puxando e soltando o ar com movimentos do tronco. Tirou os fones e os deixou pendurados nos ombros. Recuperou o fôlego e decidiu atravessar para a praça. No meio do trajeto, reparou na beleza que o dique da beira rio formava ao continuar até a ponte General Dutra, mantendo a ciclovia, o calçadão e as árvores.

Escolheu um dos bancos de ferro da praça São Salvador mantidos no mesmo estilo há mais de um século, e descansou na sombra. À sua frente estava um chafariz importado da Bélgica pela empresa inglesa “Campos Syndicate Ltda”. Aquele seria único no mundo se não houvesse uma fonte idêntica na Europa. Ao seu lado, no final da praça, uma imponente catedral católica de diversos estilos arquitetônicos formava uma construção harmônica. Era a igreja matriz. Alguns metros depois do chafariz belga estava seu prédio preferido: outra igreja, a Mãe dos Homens, com um solar anexo, ambos de dois pavimentos. Havia uma torre mais alta do lado direito, com um sino. Quando aquela construção fazia esquina com a avenida Alberto Torres seguia na mesma altura. Ela observava os detalhes da parte superior, com pequenas esculturas e uma espécie de coroa no topo do desenho de alvenaria que formava-se ao centro.

Já na construção solarenga que ia até a beira rio, havia quatro janelões de cada lado de uma grande porta central, que eram dispostos igualmente no primeiro e no segundo andar. Cada janela acima tinha pequenas sacadas com grades de ferros pretos. As colunas brancas que demarcavam a porta central eram listradas, como se fossem grandes tijolos brancos aparentes. O mesmo acontecia ao lado, nas divisões estruturais da igreja. Ela admirava aquelas construções não apenas por suas belezas, mas pela função que a Santa Casa de Misericórdia cumpriu e cumpria em Campos. Ali, sentada, fez uma pequena digressão mental sobre a ‘roda dos expostos’, e se entristeceu pensando nas crianças que eram abandonadas em uma estrutura cilíndrica de ferro com duas faces, que quando girada expunha para o interior da Santa Casa o filho de alguém ali deixado.

Mas o motivo de ter atravessado para a praça não era apenas de contemplação e descanso. Mesmo porque, como sempre acontecia a partir das quintas-feiras, a São Salvador ficava repleta de pessoas entre campistas e turistas que usavam a orla do Paraíba para esporte e lazer, e iam até o miolo do centro histórico para aproveitar a programação cultural e os cafés que havia no interior e ao lado do Museu Histórico, no Solar do Visconde de Araruama, no mesmo lado da Santa Casa, mais perto da Igreja. O Museu promovia uma palestra sobre a questão escravista e suas relações perversas com Campos.

Mas a intenção dela era participar do “Encontro de Lyras” que a centenária Sociedade Musical Lira de Apolo promovia. Ela gostava de música e estava desenvolvendo uma tese na Uenf sobre as Liras, mas qualquer motivo de frequentar aquele belíssimo prédio era aproveitado por ela. O estilo arquitetônico eclético, a fachada repleta de detalhes significantes e os dois telhados pontiagudos, arrematados por uma lira estilizada, construíram o cenário perfeito para que qualquer iniciativa ficasse mágica.

Ao seguir para a Lira, ela retomou aos ouvidos os dois fones que tocavam sua playlist de corridas. E ignorou os sons da rua. Faria o trajeto apenas admirando o Banco do Brasil ao seu lado esquerdo, construído há mais de um século na primeira esquina que havia daquele lado da praça, depois do rio. As paredes laterais do banco terminavam em um torre arredondada com um cúpula no alto, toda construção repleta de detalhes romanos — ou gregos, não sabia ao certo —, de cor branca. Assim como a Santa Casa, também era listrada pelos vincos de toda estrutura do primeiro pavimento. Ali era a quinta agência do Brasil, e havia sido transformada em centro de convenções e eventos. Uma espécie de CCBB fora da capital. Passou por ele e chegou até a Lira, sem deixar de perceber os Correios do centro, construção também de esquina no mesmo estilo do Banco do Brasil, que apesar de possuir menos detalhes, era igualmente belo e representativo.
Passou pela banca do Coliseu e viu a manchete da Folha da Manhã e do Monitor Campista — este que voltara a circular como uma espécie de jornal escola, ocupando o título de segundo jornal mais antigo do país, agora focado em cultura e turismo — sobre um prêmio que a cidade ganhou pela aplicação exemplar dos recursos dos royalties do petróleo (parágrafo incluído por sugestão e texto, adaptado, do jornalista Vitor Menezes). 

A Lira estava cheia, e uma infinidade de celulares filmavam as bandas da cidade que se apresentavam. Ela virou-se para a direção do rio e teve a visão oposta da praça, e orgulhou-se de morar em uma cidade que soube manter tudo aquilo e aproveitar de forma incrível toda aquela história. O turismo era um dos braços econômicos mais pujantes de Campos.

Podia ser assim.
 
 
 
 
 
 
Santa Casa de Misericórdia no centro de Campos, anexa a Igreja Mãe dos Homens
Cais do Paraíba e o centro de Campos
Prédio do Banco do Brasil, no centro de Campos - quinta agência no país
Correios e Telégrafos no centro de Campos
Praça do Santíssimo Salvador

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