Arthur Soffiati - Nome feio
* Arthur Soffiati 29/03/2025 09:11 - Atualizado em 29/03/2025 09:11
Aconteceu comigo quando eu era criança, talvez 7 ou 8 anos. Parece que foi há mais de um século. Nada de extraordinário, mas comum naquela época em famílias de classe média. Morávamos em Paranaguá, Paraná, numa casa antiga com frente voltada para o rio Itiberê. Ela ficava (temo que tenha sido demolida) num terreno que se estendia de rua a rua. Nos fundos, havia um portão em frente a um cinema que eu frequentava todo fim de semana, assistindo a filmes de Tarzan e de faroeste.

Tanto eu contemplava o rio, na sacada em frente à casa, como conversava com meninos da minha idade no portão dos fundos. Certa vez apareceu um que discutiu comigo. Não lembro mais o motivo. Outros se juntaram a ele e a discussão aumentou. Houve briga física, que consistia em um, de mão fechada, socar a mão do outro, também fechada. Nada de soco da barriga ou na cara. Ninguém ficava machucado.

Um dos meninos perguntou se eu já havia visto uma boceta. De imediato, senti-me encantado com a palavra. Eu nunca ouvira palavra tão sonora. E o garoto debochou em meio a risadas: “Ele nunca viu uma boceta”. Todos riram também e se foram. Fiquei com a palavra na memória.

À noite, durante o jantar, tomei coragem e perguntei a meu pai: “Papai, o que é boceta?”. Minha mãe ficou branca. Meu único irmão tem quatro anos menos que eu. Não se importou. Meu pai explodiu: “Onde você ouviu isso? Nunca mais repita essa palavra. Levante e vá para seu quarto de castigo. Da próxima vez, apanha ou passo pimenta em sua boca suja.”

Eu me perguntava o que havia acontecido. O que fiz de errado. Por que uma palavra tão sonora deixou meu pai tão irado? Mais tarde, com calma, ele falou comigo que se tratava de nome feio. Que eu nunca mais devia repeti-lo. Desde criança, pensei muito sobre o mundo. Meu pai sabia o que era boceta. Ele também devia ter ouvido seu som e pronunciado a palavra, sendo castigado por meu avô. Os adultos aprenderam nomes feios e bonitos. Aprenderam a só pronunciar nomes bonitos e a calar nomes feios. Eu repetia mentalmente a palavra boceta e me perguntava como ela podia ser feia.

Trava-se de um significante cujo significado eu desconhecia e talvez, naquela idade, nem soubesse bem da existência de alguma parte no corpo das meninas e das mulheres com aquele nome. Eu brincava de casinha com duas meninas vizinhas. Até beijo na boca acontecia, imitando talvez o que elas viam entre seus pais.

Penso hoje que seria melhor meu pai aproveitar aquela oportunidade e ensinar o significado das palavras e me ensinando os sinônimos não feios para elas. Nossa mudança para o Rio de Janeiro me colocou em contato com meninos que me ensinariam muito mais. Fomos morar em Padre Miguel. Meus companheiros de rua riram muito de mim por desconhecer palavras para indicar “partes pudendas” do corpo humano. Era inevitável que isso acontecesse mais cedo ou mais tarde. E encontrei “boceta” com frequência lendo romances e contos de Machado de Assis. Significava apenas caixa, estojo. A figura mitológica de Pandora tinha uma boceta com todos os males do mundo. Passaram a escrever caixa.

Eram palavrões. Fiquei tão impactado com a explosão do meu pai em Paranaguá que não pronunciava nome feio nem mesmo entre aqueles meninos com quem brincava. E eles riam de mim. Não só aprendi muitos palavrões como também a função deles. Só lá pelos treze anos aprendi que boceta não é apenas parte do corpo feminino, mas também combina com uma parte do corpo masculino. Um amigo me emprestava revistinhas de Carlos Zéfiro, o famoso autor de histórias eróticas e pornográficas em quadrinhos. Nelas, aprendi muito sobre o corpo humano.

Hoje, penso que os nomes feios são mais sonoros que os nomes bonitos ou corretos. Para meus ouvidos, vagina, vulva, pênis, ânus, masturbação, ejaculação, clitóris são nomes feios do ponto de vista da sonoridade. É bem verdade que os antigos “nomes feios” não são mais tão feios assim. Eles figuram em poesias, contos e romances. Aparecem em reportagens e crônicas de jornal. Recentemente, foi noticiado que um diplomata recebeu uma carta pelo correio com o desenho de um pênis com asa. Era um passaralho. Ele provocou uma investigação policial, pensando que poderia ser sinal de algo pior. Foi brincadeira de um colega. Na minha adolescência, aprendi que tais palavras não eram usadas por meninas. Mas soube que, entre elas, era corrente o seu uso. Pronunciar “nomes feios”, para elas, era excitante.

No funk, por exemplo, é muito comum encontrar letras com “nomes feios”. Na verdade, são significantes sonoros aos meus ouvidos. Até mesmo pessoas da minha geração perderam a vergonha de pronunciá-los. Da minha parte, não gosto de significantes pronunciáveis naturalmente e gosto de significantes proibidos, embora tenha aprendido, à força de castigo, a não pronunciá-los. Trauma de infância.
*Professor, escritor, historiador e ambientalista

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