Sana Gimenes: Por onde andam nossas Bentas Pereira?
Um dos símbolos oficiais do município de Campos dos Goytacazes é o seu brasão de armas que traz a divisa latina “IPSÆ MATRONÆ HIC PRO JURE PUGNANT”. Em bom português: “Aqui até as mulheres lutam pelo direito”. Esclarece a Lei Municipal Nº 8.494/13 que essa legenda recorda o papel de mulheres como Benta Pereira e sua filha Mariana Barreto, que no século XVIII lutaram por justiça em uma época em que não existiam cidadãos e sim súditos, e as mulheres não possuíam os direitos civis e políticos mais básicos. Além disso, essa frase também homenagearia as inúmeras e anônimas mulheres que trabalharam pelo progresso da cidade.
Ainda que a expressão pareça ofensiva atualmente, remetendo a uma suposta incapacidade feminina para a vida pública, cabe lembrar que quando a insígnia foi adotada na simbologia do município as mulheres brasileiras não possuíam direito ao voto, algo que só veio a ser plenamente garantido no país em 1946. Outro ponto que levanta alguma polêmica é o fato de que, a despeito de sua coragem na luta contra o domínio arbitrário do Visconde de Asseca sobre estas terras, Benta Pereira foi uma latifundiária escravocrata e cogita-se que sua alçada ao posto maior do panteão campista possa estar ligada ao apagamento elitista (e racista) de uma figura marcante da história goitacá que foi o abolicionista negro José do Patrocínio.
A grande historiadora Michelle Perrot aborda em sua obra a questão do uso da imagem feminina como uma alegoria que tudo (ou nada) pode significar. Nessa linha, mitificar a mulher serve para retirá-la do campo do real. Em outras palavras, é possível admirar sem eleger. O exemplo mais emblemático desse fenômeno é que a personificação dos ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade é a figura feminina da Marianne, muito embora as mulheres tenham sido alijadas durante muito tempo das conquistas cidadãs da república francesa.
Ainda assim, como explicar que em 2024 o município de Campos não possua nenhuma mulher em sua Câmara de Vereadores e que a próxima legislatura será composta por uma única vereadora, eleita, porém, em razão do prestígio político de seu pai? É sabido que o campo da política é historicamente refratário às mulheres porque há uma subordinação decorrente de um discurso que é construído ao longo do tempo sobre os papéis que os seres humanos devem desempenhar a partir de suas diferenças sexuais. Essas diferenças são traduzidas como desigualdades e fazem com que as mulheres possuam uma cidadania defeituosa, designada por práticas sociais discriminatórias, ou até mesmo pelo texto das leis. Além disso, as instituições políticas das democracias liberais se baseiam na dicotomia entre o mundo público e o mundo privado e a esfera pública está associada a atributos considerados naturalmente masculinos como a força e a assertividade, enquanto os espaços privados estão ligados a características que seriam supostamente femininas, como a sensibilidade e o cuidado.
Essa lógica é adaptada, inclusive, ao campo da própria esfera política já que os cargos a que as mulheres costumam ter acesso estão ligados à agenda social, ou seja, são focados principalmente em áreas como assistência social, saúde e educação. Vê-se, então, que mesmo na esfera pública a divisão sexual do trabalho é replicada. Pesquisas mostram que o Brasil tem uma das mais baixas presenças de mulheres em cargos eletivos de todo o mundo, estando mais atrasado do que quase todos os países latino-americanos. Um dos maiores desafios à igualdade de gênero é justamente a dimensão do empoderamento político e as democracias representativas dos Estados modernos seguem, reiteradamente, mostrando seus limites no que se refere à inclusão das minorias. Ao afirmar que todos os indivíduos são, em tese, livres e iguais em direitos e deveres, as especificidades de grupos minoritários, como as mulheres, são apagadas, o que dificulta a promoção de medidas apropriadas à sua inclusão social.
Daí decorre a necessidade de que sejam promovidas políticas afirmativas, como é o caso das leis de cotas. Este instrumento soluciona, de certo modo, o ingrato paradoxo de exigir que uma mulher possua direitos apenas na qualidade de um indivíduo abstrato, mas permitir sua exclusão social com base em sua identidade de grupo. Cabe destacar, porém, que a política de cotas não se baseia na ideia de que haveria uma singularidade moral entre as mulheres que as façam mais compromissadas ou que os interesses de todas as mulheres sejam sempre os mesmos. Obviamente, a partir de seu lugar no mundo, é possível que as mulheres eleitas representem interesses muito distintos. Mas a presença da mulher na política é fundamental porque a organização da sociedade impõe experiências de gênero diferenciadas aos indivíduos.
A chamada violência política de gênero é um problema que só recentemente passou a ser formal e legalmente combatido no Brasil. Ela pode ser definida como qualquer ameaça ou agressão de cunho físico, psicológico, moral e sexual que tenha o intuito de dificultar e até mesmo impedir as mulheres de exercerem seus direitos políticos. É uma violência tão generalizada que independe do espectro ideológico da mulher. Alguns poderiam argumentar que o ambiente da política é sempre muito acalorado e que as ofensas são comuns, porém, enquanto os homens são normalmente desmerecidos quanto à sua capacidade intelectual ou honestidade, as mulheres são atacadas por questões pessoais, em geral relacionadas à sua aparência, estabilidade emocional ou conduta sexual. De todo modo, para além de simples ofensas ou ameaças, a violência política de gênero pode levar até à morte, vide o caso da vereadora Marielle Franco. Enquanto esse tipo de violência não for superado, as Benta Pereira continuarão sendo apenas mitologia.
Nos últimos tempos, tem-se visto uma demonização da política tradicional. Contudo, prefiro encerrar este artigo com a mensagem de esperança que o processo eleitoral deveria representar. Portanto, é uma boa surpresa ver nossa futura e mais jovem edil do Brasil falar de bandeiras como diversidade e direitos das mulheres. Ela também se posicionou publicamente contra a infeliz ideia do pai e mentor político de conceder a Medalha Tiradentes, mais alta honraria da Alerj, a um tipo como Pablo Marçal. Começou bem e, a exemplo de Benta Pereira, parece ser aguerrida. Porém, como diria o nobre titular deste espaço, Aluysio Abreu Barbosa, a ver.