Arthur Soffiati - Goa e Campos no contexto da globalização (III)
Arthur Soffiati 14/02/2024 08:54 - Atualizado em 14/02/2024 08:54
Existem globalizações parciais e globalizações totais, globalizações políticas e globalizações culturais. No fim, todas são culturais. As globalizações parciais foram promovidas por algumas civilizações do passado que criaram impérios, como a mesopotâmica, a egípcia, a chinesa e a greco-romana. Esses impérios permitiram grande movimentação de pessoas e a circulação de bens culturais, que acabaram se mesclando. Houve também globalizações apenas culturais pela força de civilizações que não praticaram conquistas militares permitindo a difusão de suas culturas. Para além de suas fronteiras, suas culturas circulavam e atingiam outras. No caso da chinesa e da greco-romana, por exemplo, suas culturas atravessaram as fronteiras dos impérios.
Apenas uma globalização foi total até hoje: a constituída pela civilização ocidental. Ela começou na Europa Ocidental durante o século XV. Portugal foi o país pioneiro nesse processo de globalização tanto político quanto cultural. Seguiram-se Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Ela foi também cultural, atingindo lugares não incorporados aos impérios coloniais. Atualmente, ela chega mesmo a ultrapassar os limites do planeta Terra, alcançando o espaço e outros astros com os artefatos enviados para lá a fim de explorá-los e conhecê-los.
Portugal iniciou a construção do seu império marítimo com a conquista da cidade de Ceuta aos muçulmanos, no norte da África, e prosseguiu com a expansão marítima pelo Atlântico Sul, conquistando pontos nas costas ocidental e oriental da África até alcançar seu objetivo, chegando a Calicute, na Índia, no final do século XV. Nesse processo, incorporou parte do território sul-americano, dando-lhe o nome de Brasil. Foi o maior território dos domínios portugueses.
No século XVI, esse império estava formado e, de certa maneira, consolidado: vários territórios na África, com destaque para Angola e Moçambique; Goa, Damão, Diu, Ormuz, Malaca, Macau e Timor, na Ásia; e Brasil, na América. Esses territórios foram dominados diretamente. Havia também pontos não integrantes do império colonial com forte presença portuguesa, como o Ceilão e a Indonésia, por exemplo.
Os domínios territoriais portugueses não foram tão extensos como os dos ingleses. Com exceção do Brasil, as outras partes eram exíguas. Mas, fora de Lisboa, Goa era o principal centro econômico, político e cultural lusitano. Ela centralizava o comércio do oriente, canalizando-o para Portugal. Nem Luanda nem Salvador alcançaram a mesma importância de Goa.
O domínio político e a circulação econômica permitiram que a cultura ocidental, em sua expressão lusitana, exercesse grande influência nas partes integrantes do império. Bastaria mencionar duas: a língua e o Catolicismo Romano. Por outro lado, a cultura ocidental também absorveu elementos das culturas dominadas. Basta citar a incorporação de vocábulos de outras línguas pelo português e as influências das culturas dominadas à cultura portuguesa, como foram os casos da China, da Índia e do Brasil.
Normalmente, dedicamos mais atenção ao que chamamos de cultura imaterial e material, ou seja, o que é produzido pela humanidade: língua, religião, artes. Não merecem muito a nossa atenção os vegetais e os animais. Eles também acabam integrando as culturas quando os estudamos com fins puramente científicos, quando os domesticamos para finalidades econômicas, quando os empregamos como medicamentos, quando os usamos como alimento e culinária e outras finalidades mais.
Com a expansão econômica, política e cultural da Europa por todo o planeta, a circulação de espécies vegetais e animais aumentou exponencialmente. Atualmente, plantas como a batata inglesa (que não é nativa da Inglaterra) e o tomate estão presentes no mundo todo, assim como o mexilhão-zebra, o caramujo africano, o caranguejo-vermelho-americano, a vespa asiática gigante, a carpa, a tilápia etc. Essas plantas e animais não migraram por conta própria, mas por ação direta e indireta do ser humano no seio de uma economia-mundo. Algumas se adaptaram bem aos ambientes para os quais foram transplantadas, não causando impacto ambiental significativo. Outras, como a tilápia e o caramujo africano, concorrem com as espécies nativas e as eliminam.
Muitas das espécies vegetais transplantadas da Ásia para a América e vice-versa adaptaram-se de tal forma que passam como nativas. Para um levantamento breve dessas espécies, poderíamos recorrer aos dois volumes de “Colóquio dos simples e drogas das Índias” (Lisboa: Imprensa Nacional, 1987), do famoso médico Garcia de Orta. Português, jovem ele se transferiu para Goa, dedicando-se ao estudo das propriedades medicinais de plantas. Não o faremos porque ele viveu no século XVI, antes da criação da nomenclatura binária criada por Lineu no século XVIII. O holandês Jan Huygen Linschoten, que viveu alguns anos em Goa, deixou-nos o livro “Itinerário, viagem ou navegação para as Índias Orientais ou portuguesas” (Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997). Trata-se de um documento precioso, com ilustrações características dos holandeses.
Entre os portugueses, as ilustrações não eram comuns, com exceção de mapas. Mas as plantas ocupam apenas uma dimensão do livro. No final do século XX, José E. Mendes Ferrão efetuou um pedagógico levantamento do intercâmbio de espécies vegetais entre as Índias Orientais (Ásia), África e as Índias Ocidentais (América) em “A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses” (Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993). O livro não se prende a territórios politicamente delimitados, mas a continentes. O foco deste artigo é o papel de Goa e da capitania de São Tomé, no Brasil, no intercâmbio de plantas durante os séculos XVI e XVII. Portanto, o livro “Flora de Goa e Savantvadi” (Lisboa: Imprensa Nacional, 1898), de D.G Dalgado, pareceu-nos o mais adequado ponto de partida. Ele tem mais de um século. Já está desatualizado, mas mostra o intercâmbio botânico leste-oeste-leste exatamente a partir de Goa. Tomando-o como ponto de partida, as atualizações não se tornam problemáticas.
Comecemos com as plantas herbáceas. Não se sabe quem trouxe o capim pé-de-galinha (Eleusine indica) para o Norte-Noroeste Fluminense, mas ele é onipresente. Floresce tanto na zona rural como nas cidades, entre pedras. O capim furachão (Panicum repens L.) parece ter sido introduzido no Brasil no século XVII, vindo da Ásia através de Goa. No entanto, a gramínea mais comum e conhecida na antiga capitania de São Tomé é a cana-de-açúcar (Sacharum officinarum). De origem indiana, em sentido restrito, e asiática, em sentido amplo, ela não foi trazida de Goa diretamente para o Brasil. Sua trajetória foi longa. Ela foi introduzida por árabes no Mediterrâneo, sendo cultivada no sul da Europa, sobretudo nas ilhas. Ganhou as ilhas de Porto Santo e Madeira, assim como o arquipélago dos Açores. Como o açúcar dela tinha grande valor econômico na Europa, a Coroa portuguesa logo percebeu que a cana seria o produto ideal para colonizar o Brasil. Havia, nessa colônia, solos e clima apropriados, além de espaço. É bem verdade que ele estava coberto por florestas e água. Mas esses obstáculos naturais não eram intransponíveis. As florestas foram derrubadas (sobretudo a Mata Atlântica) e as áreas alagadas foram progressivamente dessecadas. Ao lado do gado bovino, que veio do sul da Europa, a cana foi o vegetal que integrou a capitania de São Tomé ao império colonial português. Ela também desempenha importante papel econômico em Goa. O caldo extraído da cana é progressivamente transformado em açúcar. O número de engenhos em funcionamento no Distrito dos Campos Goytacazes ultrapassou 400 unidades no século XIX. Em 1920, contavam-se 32 grandes usinas na região Norte Fluminense, correspondente à antiga capitania de São Tomé.
O agrião (Nasturtium officinale) é planta herbácea nativa da Eurásia, crescendo junto a áreas úmidas. D.G Dalgado anota que ela foi levada pelos portugueses de Goa para a América. No Norte-Noroeste Fluminense, o agrião é cultivado em pequena escala, embora o ambiente nativo seja bastante propício a ele. É usado em saladas caseiras. O pepino (Cucumis sativus) é originário das regiões montanhosas da Índia. Sustenta-se que Cristóvão Colombo o introduziu na América. No Brasil, a introdução deve ter sido feita pelos portugueses a partir de Goa. É também usado em saladas caseiras. Desenvolve-se muito bem nas terras da antiga capitania de São Tomé. O melão (Cucumis melo), da família do pepino, é fruta originária do Oriente Médio com inúmeras variedades. Sua resistência à aridez é muito grande. Seu fruto é muito apreciado no mundo todo. Daí seu valor econômico. No território da antiga capitania de São Tomé, o melão é cultivado em escala menor que a cana e maior que o pepino para fins comerciais. Notemos que vegetais encontrados na natureza são retirados dela, cultivados, modificados e usados na vida humana. Continuam sendo naturais, mas adquirem um caráter cultural. Além da cana-de-açúcar, todos eles aproximam áreas distantes do antigo império colonial português. Essa aproximação ficará mais consolidada quando analisarmos plantas de maior porte.
O jasmim-da-Índia (Quisqualis indica) também se aclimatou muito bem às terras do Brasil e, particularmente, aos jardins públicos e particulares. Não se trata de uma planta com alto valor econômico e cultivada em larga escala. Deve ter sido trazida por portugueses de Goa para o Brasil pela sua beleza e perfume. Já a mamona (Ricinus communis) foi provavelmente introduzida como uma planta sem grande utilidade econômica e medicinal. Sua adaptação aos diversos tipos de terreno foi muito bem-sucedida. Mais tarde, seu valor foi descoberto principalmente como fornecedora de matéria-prima para a fabricação de combustível. Trata-se de uma espécie pioneira encontrada tanto no campo quanto na cidade. É espontânea. Não precisa ser plantada. Cresce muito bem em terrenos baldios.
A amoreira (Morus nigra) já tem porte arbóreo. É originária da Ásia Menor e foi introduzida no Mediterrâneo no séc. XIV. Trata-se de uma espécie bem conhecida e cultivada na China para alimentar o bicho-da-seda, que produz fios com os quais se tece a fina seda. Houve tentativas de produzir seda no Brasil, mas essa atividade não prosperou. A espécie é encontrada tanto em Goa quanto no território da antiga capitania de São Tomé.
Aguardemos as árvores e as espécies nativas do Brasil que se adaptaram a Goa.

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