Forçoso é reconhecer que uns vivem mais que outros. Não em longevidade, mas em termos de experiência. Samyra Crespo é uma dessas pessoas. Acabo de ler dela “Conta quem viveu. Escreve quem se atreve: crônicas do meio ambiente no Brasil” (Curitiba: CRV, 2021). O primeiro atrevimento dela é escrever de forma simples e direta, como se conversasse com o leitor. Considerando sua formação acadêmica e sua vivência em instituições públicas e privadas, escrever de forma coloquial é correr o risco de ser criticada pelos seus pares, que só sabem se dirigir a eles mesmos, desprezando os colegas que escrevem de maneira simples.
Outro atrevimento é relatar sua vida sem rodeios. Ela passou a infância em Belo Horizonte e Salvador, transferindo-se com sua mãe e padrasto (que considera seu pai) para São Paulo, onde cursou graduação e pós-graduação na USP. Foi morar no Rio de Janeiro. Aí, ocorreu seu grande encontro com a questão ambiental na forma da crise em si e daqueles que militavam nela. As experiências de Samyra foram ricas. Entre 1991 e 2012, ela conduziu pesquisas para embasar seu famoso estudo “O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável”.
Conheci Samyra no início dos anos de 1990. Eu ministrava a disciplina Ecologia e desenvolvimento no curso de pós-graduação lato sensu em Planejamento ambiental da UFF. Fui convidado para ministrar palestras no curso Teoria e praxis do meio ambiente, coordenado por ela no Iser. Ao conhecê-la, percebi logo que ela tinha muitas ideias e planos na cabeça, assim como rodinhas nos pés, como escreve em seu livro. Confesso que me sentia constrangido ao lado dela. Samyra é muito segura. Tem forte personalidade e inibia uma pessoa como eu, tímido por natureza e estranhando a atenção dada a um professor que vive no interior do estado do Rio de Janeiro desde 1970.
Samyra continua a se atrever no livro. Ela não se intimida em citar autores não muito bem vistos pela academia, como Erich Fromm, Edgar Morin e Arnold Toynbee. Deste último, diz admirar sua obra máxima: “Um estudo de história”. Só ao ler seu livro, tomei conhecimento das nossas afinidades intelectuais. E confesso que me senti muito prestigiado quando ela me visitou em Campos, cidade em que vivo há mais de 50 anos depois de deixar o Rio de Janeiro, minha terra natal. Mais comovido ainda me senti em merecer dela um texto elogioso.
E, neste ponto, mais uma vez Samyra se atreve ao revelar seu entendimento sobre as posições filosóficas e políticas das pessoas com quem conviveu. E foram muitas. Quem se embrenhou na perigosa floresta do movimento em defesa da natureza sabe bem que havia nela grupos aguerridos em combate. Eles rotulavam os outros e buscavam mais aquilo que os separava que aquilo que os unia. Eram ambientalistas, socioambientalistas, conservacionistas, ecologistas, preservacionistas e mais alguns. Do outro lado, postavam-se os cientistas sociais completamente indiferentes à questão ambiental e rotulando seus ativistas de militantes rasos, talvez meio fanáticos e não merecedores de reconhecimento. No máximo, seriam objeto de pesquisa.
Sabemos que esses rótulos envolvem influências e alinhamentos ideológicos e políticos sutis. No fundo, voltamos às três tendências oriundas da Revolução Francesa apontados por Wallerstein: liberais, socialistas e anarquistas. Trava-se agora de se deparar com essas três tendências que aceitavam ou rejeitavam a questão ambiental.
Samyra, reconhecendo-se ambientalista, valoriza as outras posturas. Traça com linhas fortes a contribuição dos ecologistas como pensadores da questão ambiental. Enfatiza a importância do conservacionismo, realçando suas contribuições. Demonstra entender que aqueles que estão no serviço público em nome de uma causa têm uma dívida de gratidão com aqueles que se dedicam ao pensamento. Da mesma forma, os pensadores devem contar com os funcionários públicos. É importante trabalhar com a sociedade, com a saúde, com a alimentação, com a educação, assim como com o espírito.
E Samyra fala a partir de sua rica trajetória de vida. Ele viajou muito. Conheceu todos os continentes, inclusive o Antártico. Parece que ela viveu 50 anos em 30. De uma certa forma, a política direitista inculta atual uniu mais os brasileiros que pensam. Tolice as divergências de ideias progressistas quando se tem um governo como o atual. As experiências de Samyra no Ministério do Meio Ambiente e no Jardim Botânico mostram como o Brasil mudou. Se o mundo político que ela conheceu e viveu de perto não era bom, este superou tudo em termos de desvalorização da cultura e do ambiente.
Mas ela resiste. Ela abre a janela e ouve aves, deleitando-se com a música de Vivaldi que lhe chega por uma emissora de rádio. Samyra deve se lida. Ela estimula outros livros, escritos por pessoas que participaram ativamente dessa efervescência intelectual e política iniciada com a Conferência de Estocolmo, em 1972.