Arthur Soffiati - Filmes centenários (I)
Matheus Berriel - Atualizado em 18/05/2022 01:00
Em 1922, assinalam-se o bicentenário da independência oficial do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna brasileira, o cinquentenário da Conferência de Estocolmo, os 30 anos da Conferencia Rio 92 e o centenário de vários filmes importantes.
Em 1922, o cinema já estava consolidado como meio de comunicação, e alguns diretores já haviam produzido obras de arte nessa nova linguagem. Nesse mesmo ano de 1922, Mário de Andrade escreveu, no sexto número da revista “Klaxon”, que “O cinema realiza a vida no que esta apresenta de movimento e simultaneidade visual. Diferença-se por muito do teatro em cuja base está a observação subjetiva e a palavra. O cinema é mudo; e quanto mais prescindir da palavra escrita mais se confinará ao seu papel e aos seus meios de construção artística. Segue-se daí que tanto mais cinemática será a obra cinematográfica quanto mais se livrar da palavra que é grafia imóvel. As cenas, por si, devem possuir a clareza demonstrativa da ação; e esta, por si, revelar todas as minúcias dos caracteres e o dinamismo trágico do fato sem que o artista criador se sirva de palavras que esclareçam o espectador. A fita que, além da indicação inicial das personagens, não tivesse mais dizer elucidativo nenhum, seria eminentemente artística e, ao menos nesse sentido, uma obra-prima”.
Assim como a pintura independe da literatura, embora se valha do desenho como passo inicial, e este, o desenho, não depende da pintura. Assim como música não depende de nenhuma outra arte para se realizar enquanto arte. Assim como a literatura depende apenas da palavra. Assim como a escultura e a arquitetura não precisam recorrer a outra arte, o cinema depende da fotografia, assim como a pintura depende do desenho. O cinema pode se tornar uma arte pura, sem recorrer à palavra. Esse foi o objetivo de Dziga Vertov. Em outras palavras, o cinema mudo esteve mais próximo de uma nova expressão artística. Indo mais adiante, podemos dizer que os quadrinhos dependem do desenho e que são uma espécie de cinema lento, podendo, inclusive, dispensar a palavra, como fizeram “Reizinho”, de Soglow, e “Pinduca”, de Liney. A dança poderia dispensar (e talvez devesse) libertar-se da música, pois, com ela, ou a dança se subordina à música ou esta se subordina à dança.
Em 1922, a indústria cinematográfica já produzia muitos filmes por ano. O cinema estava equiparado nos Estados Unidos, na Europa Ocidental, na Rússia e no Japão, porque os efeitos especiais ainda não eram tão caros como acontece atualmente. Em todos os gêneros, foram produzidos filmes importantes há 100 anos: drama, aventura, comédia, terror, documentário e animação, sendo o mais celebrado de todos “Nosferatu”, filme de terror dirigido pelo famoso Friedrich Wilhelm Murnau na Alemanha. Sigamos os filmes pela ordem dos gêneros arrolados.

A esposa do faraó
Um monumental filme lançado em 1922 foi “A esposa do faraó”, do renomado cineasta alemão Ernst Lubitsch. Na década de 1920, o cinema não contava com tantos efeitos especiais. Assim, não apenas os Estados Unidos, mas também países da Europa Ocidental, a Rússia e o Japão podiam promover produções cinematográficas de qualidade relativamente equivalente. Contava mais o talento do diretor.
Mas, “A esposa do faraó” excede. Trata-se de uma produção caríssima para a época. O filme é rodado em estúdio e ambiente externo na própria Alemanha. Muitos dos cenários foram construídos em tamanho original. Imaginemos um templo de madeira ganhando a proporção de um templo egípcio de pedra. Uma verdadeira cidade egípcia foi construída em Berlim. O número de figurantes é impressionante. No tempo em que o filme foi rodado, não havia técnicas capazes de multiplicar 20 pessoas e criar a ilusão de 200, como fazem os estúdios modernos. Os trajes foram cuidadosamente reconstituídos por Lubitsch, que era filho de alfaiate e grande pesquisador.
Essa preciosidade cinematográfica teria se perdido se não fossem uma cópia quase completa encontrada na União Soviética e fragmentos descobertos na Itália. Essa dispersão indica a circulação de filmes pela Europa e Estados Unidos. No mundo, enfim, pois a globalização ocidental já avançara bastante. Mostra também que as barreiras ideológicas não impediam essa circulação. Mas, as adaptações dos filmes a cada regime político eram efetuadas. “A esposa do faraó” pode ser visto como um filme tipicamente ocidental, embora ambientado num Egito reinterpretado pela contemporaneidade. O roteiro enfatiza uma guerra entre o Egito faraônico e a Núbia, tratada no filme como Etiópia. O que o imperador Samlak (Paul Wegener), da Núbia, deseja é o casamento de sua filha com o faraó Amenes (representado pelo legendário Emil Jannings). Mas. o faraó se apaixona pela escrava grega Theonis (Dagny Servaes). Estamos diante de um drama histórico.
Há paixões, beijos, ciúme, inveja, cobiça. Tudo aquilo que a União Soviética entendia como paixões burguesas que deveriam ser banidas. Com o formato e o conteúdo das legendas, tentou-se amenizar a marca individualista do ocidente. O faraó, porém, encontra um rival na pessoa do filho de um de seus conselheiros, talvez o mais importante deles. E, na guerra contra os núbios, aparentemente Amenes morre com uma flechada. Por mais déspota que o faraó fosse, um líder não poderia morrer na concepção soviética.
O corajoso filho do conselheiro lidera as impressionantes multidões egípcias contra as multidões núbias. A legião de mulheres clama por seus maridos mortos na guerra. A rainha é responsabilizada pela morte. Amenes retorna. Ele não havia morrido de fato. Reclama sua esposa. O final infeliz para o triângulo amoroso contraria os padrões norte-americanos e soviéticos. Aqueles porque o amor sempre deve triunfar. Estes porque um líder não deve sucumbir a paixões pessoais.
A restauração do filme foi trabalhosa. Certas partes até hoje não foram encontradas. A solução foi substituí-las por fotografias. O filme apresenta as colorações sépia, azulada e avermelhada, que se alternam. A trilha sonora original é grandiosa. Foi composta por Eduard Künneke e novamente executada pela WDR Rundfunkorchester Köln, conduzida por Frank Strobel, para ser novamente sincronizada ao filme de 100 minutos.
“A mulher do faraó” consagra o monumentalismo que Lubitsch já revelara em “Madame DuBarry” (1919), “Sumurun” (1920) e “Ana Bolena” (1920), credenciando-o para ser convidado a trabalhar nos Estados Unidos, onde foi um consagrado diretor.
Ainda marcado pelo teatro, o filme se divide em atos. São grandiosos os planos fixos abertos e os planos-sequência. Os closes e os cortes são efetuados como em sua época: por círculos que se fecham e que se abrem.

A sorridente madame Beudet
Nos primórdios do cinema, destacaram-se duas mulheres como diretoras, pelo menos. Uma foi Alice Guy Blaché (1873-1968), que se destacou na comédia, mas não apenas. A outra foi Germaine Dulac (1882-1942), um dos poucos nomes do cinema surrealista, ao lado de Luís Buñuel. Ela já vinha produzindo na segunda década do século XX. Seu maior sucesso é “Âmes de fous”(1918). Foi uma das mais importantes diretoras da escola impressionista, tipicamente francesa.
Em 1922, ela roteirizou e dirigiu “A sorridente madame Beudet”, retratando a vida de uma mulher casada com um homem rico, do ramo de tecidos. Ela era uma mulher sensível e intelectualizada, que se sentia muito solitária ao lado de seu marido e amigos. O sr. Beudet era risonho e brincalhão, mas meio tosco. Sua diversão predileta era simular o suicídio, colocando uma pistola sem munição na cabeça. Madame Beudet detestava esse tipo de brincadeira, assim como detestava vida social e frivolidades. Tocar piano e ler livros eram suas atividades preferidas, já que era comum naquela época as mulheres casadas ficarem em casa. Ela pensa em se matar de verdade, e o marido descobre, declarando que a amava e que não podia viver sem ela. O filme tem 40 minutos apenas.
Germaine Dulac é uma das pioneiras do movimento feminista e revela seu ativismo no cinema e na vida real. Ela também simpatizou com o socialismo. Quando aderiu ao surrealismo, ela roteirizou e dirigiu “A concha e o clérigo” (“La coquille et le clergyman”), em1928, pouco antes de “Um cão andaluz”, de Luis Buñuel, o mais famoso filme surrealista.

Dr. Mabuse
Em 1922, Fritz Lang lançou “Dr. Mabuse” em duas partes. A primeira tem como subtítulo “O jogador”. A segunda subintitula-se “O inferno do crime”. A duração total é de 230 minutos. Na época, filmes longos ficavam muito caros, mas não eram raros. Estamos na Alemanha de entreguerras (1918-1939). O país está falido. Vive uma superinflação. O ambiente é bastante favorável às oscilações na bolsa de valores, às falências, ao estímulo de propostas extremistas (vide o nazismo) e aos vigaristas.
A origem da história é um romance policial de Norbert Jacques. Mabuse é médico psicanalista, com especialidade em hipnose. É também um bandido que se vale do seu conhecimento para cometer crimes quase perfeitos. Ele tem muitos disfarces e consegue hipnotizar indivíduos e grupos. É capaz de levar uma pessoa a cometer crimes em seu lugar. É capaz de levar pessoas a se suicidarem. Mabuse é um arquicriminoso que acaba enfrentando um policial íntegro e inteligente.
No filme de 1922, Mabuse leva um conde a ludibriar parceiros num jogo de cartas ou a iludir esses parceiros. Acusado de roubar no jogo, o conde perde o respeito da sua mulher, representada pela bela Aud Egede Nissen. Mabuse separa o casal, leva o conde ao suicídio e deseja sua esposa. Hipnotizado num evento público, o detetive é levado a se jogar de um precipício com seu carro, mas é salvo no momento final. O automóvel se lança de um penhasco numa cena que já havia sido produzida por Charles Chaplin em seu primeiro filme, de 1914.
Agora, o cerco ao Dr. Mabuse se opera com ajuda do exército. Ele ainda foge pela rede subterrânea de esgotos, mas é encontrado e preso. Não é o seu final. Ele voltará com direção de Lang ainda duas vezes e algumas vezes mais com diferentes diretores.
No filme de 1922, Lang revela sua tendência ao monumentalismo e ao tridimensionalismo. Os recursos do cinema são empregados: planos fixos abertos; travellings, closes em círculos, também usados para cortes. O clima do filme não é inteiramente expressionista. Mas, é tipicamente alemão por sua dramaticidade.

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