Sérgio Arruda de Moura: La brevità della vita
Sérgio Arruda de Moura 15/05/2020 13:52 - Atualizado em 22/05/2020 18:53
De todas as coisas deste mundo, uma das poucas que verdadeiramente permanece diante da voragem do tempo, especialmente por causa dos meios de que dispomos hoje, é o livro, isto é, o livro tanto na sua acepção material quanto imaterial.
O livro é assim: só existe quando lido. Podemos ter um exemplar de uma edição qualquer e nunca tê-lo lido. Podemos ter lido um, emprestado da biblioteca, e não ter um volume seu. O livro é aquele objeto que se pode muito bem guardar na memória, sem precisar necessariamente guardá-lo consigo na estante. Conheço gente que se desfaz dele assim que o lê. A mim, o livro é uma eterna companhia porque ele terá sempre de ser completado em leitura.
Tenho um exemplar nas mãos que remonta há tempos muito distantes de nossa era. Seu título é comovente: "La brevità della vita" (minha edição é italiana, de 1992). "De brevitate vitae" é o seu título em latim. Já em português é tão simplesmente "Sobre a brevidade da vida". Seu autor, o filósofo estoico Sêneca, da Roma Imperial do século I, o compôs em perfeito acordo com uma das mais inquietantes angústias do homem: a brevidade da vida. Mas, seria mesmo? O filósofo tenta responder.
Encontrei este livro há alguns anos nas minhas andanças pelo centro do Rio de Janeiro, nas ainda resistentes bancas de livreiros ocasionais à frente de um negócio que se mantém entre nós: a venda de livros usados.
"La brevità della vita" também me chamou a atenção (além do preço módico de apenas R$ 3) por um aspecto inusitado: ele pertenceu um dia a um abnegado colecionador de livros, a um dono de biblioteca, que agora se desfaz. Se herdeiro tinha, não se interessou por ela. Em quase todos os livros à escolha dos passantes naquela banquinha desajeitada, havia uma etiqueta com o nome, telefone e endereço de seu dono, prática bastante saudável dada a forma como os livros costumam desaparecer de nossas prateleiras, principalmente de quem tem o hábito de emprestá-los. Seu antigo dono era um homem culto, pois sua coleção tinha não só o critério da diversidade, mas também o da filosofia e da literatura. Se o tempo lhe foi breve não sei, mas pode ter sido o tempo aproveitado tal como Sêneca provavelmente lhe ensinou.
Sêneca estava certo. Seu pequeno tratado sobre os cuidados que devemos ter do nosso tempo, escrito sob a forma de cartas ao seu interlocutor, enternece. É quase uma literatura de ajuda, no sentido de que toda literatura ajuda, mas nasce do escopo de um autêntico filósofo estoicista, para quem a felicidade é resultado da sabedoria, e que ela, portanto, não é externa ao homem. Para isso, ele deve superar emoções destrutivas e se desocupar da mesquinhez dos projetos inúteis. "La brevità" é uma ode ao ócio, no sentido de que este deve ser cultivado em detrimento da dedicação muito recorrente entre nós de uma vida muito atribulada. O estoicismo critica o homem que decide levar sua vida sem se dar conta de que o bem mais precioso é ele próprio. O homem atormentado pelo tempo tem sua imagem relacionada a um cachorro bravo amarrado a uma carroça que o leva para lá e para cá contrariamente a sua vontade, ou a um barco sem rumo em um mar revolto, sem um timoneiro controlando seu destino.
Muito culto, como cabe a um filósofo, Sêneca ilustra sua tese filosófica com a vida e os hábitos de homens célebres de seu tempo. Sobre um certo Lívio Druso, escreve ele no capítulo 3: “Homem violento e arrebatador, após ter dado curso a novas leis e às más medidas dos Gracos, com apoio de uma vasta multidão de toda a Itália, não vendo uma saída para sua política, que já não mais podia levar adiante, nem, uma vez precipitada, abandonar, amaldiçoou sua vida agitada desde o princípio e declarou nunca ter tido férias, nem mesmo quando menino”.
Não sei por que esta passagem me lembra tão efusivamente os nossos políticos e nossa política, especialmente os atuais. Também por isso, lembram-me da agitação destas últimas semanas no congresso nacional quando o chamado Centrão se lançam qual urubus na carniça de um naco podre do poder que ainda se mantém contra tudo e contra todos.
Sêneca está coberto de razão. “Aquele que emprega todo o tempo consigo próprio, que ordena cada dia como se fosse uma vida, nem deseja o amanhã, nem o teme” – típica recomendação que soa estranho ao filósofo clássico que viria mais de milênio depois dele, aquele que buscará a todo custo a verdade e um sistema que lhe explique. A filosofia do estoicismo é individualista no sentido de que o indivíduo é o que basta. Não se trata de relevar o ócio em detrimento do trabalho, nem de sufragar a si próprio esquecendo-se do outro. O homem correto é a meta da humanidade. Para isso, todos devem se guiar.
Voltando à brevidade da vida, nos queixamos de que tudo passa rápido demais. O pobre livreiro da banquinha desajeitada e que me vendeu o livro já deve saber disso mesmo desconhecendo o filósofo e a filosofia. Quanto ao outrora proprietário de uma biblioteca que agora se dispersa pelo mundo, este viu nos livros o melhor lugar para ocupar seu tempo. E este certamente lhe trouxe serenidade e sabedoria para fazer frente à brevidade do tempo.

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