Folha Letras - Poesia difícil
* Arthur Soffiati - Atualizado em 09/10/2024 08:00
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Preliminarmente, identifico dois tipos de poeta: o que escreve sem conhecimento nenhum de literatura poética e o que se insere em alguma tradição poética. O primeiro tipo não conhece poesia e acredita que empilhar versos produz um poema. Com a liberdade dada pelo modernismo, o poeta descompromissado acha que escrever poesia é fácil. Escrever poesia exige o conhecimento da produção poética. Escrever poesia exige, portanto, muito trabalho além da inspiração.

Dentro da minha linha – conhecer poetas para escrever poesia –, fecho ainda mais o foco. Não sou romântico, parnasiano ou simbolista. Insiro-me no modernismo, mas não da primeira fase (Mário de Andrade) nem da segunda (Drummond), e sim da terceira (João Cabral de Melo Neto). Desculpo-me por minha pretensão.

Escrevo poesia desde 1965. São poemas sofríveis. Guardo alguns. A maioria foi perdida. Só em 1990, tomei coragem de publicar o livro intitulado “Depois do princípio e antes do fim”. Este título é um decassílabo. A Folha da Manhã o patrocinou, e até hoje sou agradecido por isso. Mais que o recurso financeiro, o importante foi o estímulo. Os poemas giram todos em torno da temática ambiental. Fui muito atrevido em preceder os poemas por um manifesto pela ecopoesia. Nele, um traço que vem se desenvolvendo em mim já aparece: a diluição do “eu” poético.

Pode-se dizer que não há novidade nisso. Geralmente, os poetas românticos, parnasianos e simbolistas não usavam o pronome pessoal “eu”. Mas a subjetividade está implícita. É perfeitamente possível distinguir a dicção romântica de uma dicção parnasiana. A dissolução do “eu” de que falo é a que propõe João Cabral de Melo Neto. Mesmo assim, o eu não desaparece nos seus poemas. A gente reconhece um poema dele. Manoel de Barros, em outro sentido, também busca a dissolução do eu nas plantas, pedras, água. Então, o que busco parece ser inalcançável: um poema sem poeta.

No meu segundo livro – “O direito e o avesso do mangue” (1999), título também com dez sílabas, a temática é o manguezal. Eu o escrevi durante minhas pesquisas para o doutorado. Enquanto andava na lama, eu registrava meus insights num gravador. Depois, trabalhava muito para produzir o poema. Avanço mais na elaboração, na forma e na arte de me esconder. Mas ainda estou lá.
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No meu terceiro livro – “Mínima poética” – (2011), o eu se oculta mais e os poemas se reduzem. Quem os lê em voz alta, buscando efeitos declamatórios, decepciona-se, pois são poemas para serem mais vistos que ouvidos. Há muito jogo de palavras e rimas inusitadas. Estou a caminho da dissolução.
Então, no quarto livro – “Todavia” (2014) – busco uma certa recuperação do passado. Trilhei várias vias e entendi que não cabia jogar tudo fora. O eu explícito aflora novamente. Chego mesmo a escrever um soneto inspirado pelo trabalho de uma enfermeira enquanto eu estava internado. Misturo línguas, escrevo para cachorros, gatos e netos.

Meu quinto livro – “Intervalo” – sugere uma pausa para um passo adiante. Uma amiga do Paraná leu os poemas para me ajudar na sua publicação. Ela leu os poemas em voz alta e não gostou, mas minha poesia nunca pretendeu ser oral. Ela nunca foi escrita para ser declamada, e sim para ser vista. Agora, além de João Cabral, descubro que também fui influenciado por mais três poetas; José Paulo Paes, Paulo Leminski e Paulo Henriques Britto. Este último faz a mesma busca que eu: dar sumiço no eu poético. Ele diz que, depois de João Cabral, escrever poesia se tornou muito difícil. Ele entende que não se pode deixar as palavras soltas, como fizeram os modernistas da primeira geração. Que é preciso domesticá-las. Ele reforça, portanto, uma espécie de formalismo. Seus poemas são curtos, com versos metrificados e com rimas inusitadas. Mais ainda, os poemas expressam uma visão de mundo. Ele é um cético que tenta aprender a viver e a morrer. Ele se debate inutilmente contra a morte e reconhece que morrerá como todo ser vivo. Sua poesia não agrada o leitor desprevenido por ser árida e nada romântica.

Paulo Henriques não escreve poemas. Ele constrói poemas. Escrever de acordo com as emoções, sem o compromisso da metrificação e da rima, é prazeroso, mas domesticar palavras é muito difícil. Tenho muita dificuldade de construir poemas. Não consigo mais escrever de acordo com o coração. Minha poesia é cerebral. Tem de ser construída. E a construção cansa.

Daí a minha decisão de lançar mais um livro e encerrar. Já tenho alguns poemas escritos. Reconheço que nunca fui inspirado no ato de escrever poesia. Mais que inspiração, existe em mim muita transpiração, como dizia Drummond. Nem mesmo sei se conseguirei lançar esse sexto livro. Há sempre o pessoal do “deixa disso”. Dizem que escrevo bem, mas acho que nunca leram nada do que compus. Como tenho pelo menos um livro inédito escrito em 1971 com poemas visuais muito influenciados pelo movimento do poema-processo, algumas pessoas mais chegadas a mim insistem para que ele seja publicado. Sugerem-me também uma antologia e a reunião dos meus livros num só. Seriam os poemas completos. Acho tudo um exagero.


Meu esperma
to
zoide
entra fundo
atrás do ó
vulo,
atravessa a vulva
cruza o ú
tero,
mas chega atrasado
para mudar o mundo.
***
São pequenos
e rastejantes
esses seres
gosmentos
que habitam meu quintal.
Eles sentem com o corpo,
não com a mente.
Mas eles é que são os donos da Terra
e herdarão o Reino dos Céus
***
Dá-me a mão
e não fala nada,
Lídia.
Nada de sentar-se
à beira do rio.
Nossos olhos
não suportam
as águas negras,
o cheiro acre.
Não haveria amor
que não já existisse.
****
A vida é cheia
de intervalo
Se calo
ou se falo,
de nada adianta,
pois a vida foi, é
e sempre será
um calo no pé.

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