Trump, Kamala e um casamento em risco no Cinturão da Ferrugem
Edmundo Siqueira 03/11/2024 12:17 - Atualizado em 03/11/2024 12:20

Em uma matéria feita pelo editor de assuntos internacionais da rede britânica Sky News, Dominic Waghorn, publicada nesta sexta-feira (1), um casal de americanos foi entrevistado sobre as eleições presidenciais dos Estados Unidos, que acontecem na próxima terça-feira (5). Com seus votos já decididos, marido e mulher discordam frontalmente sobre os candidatos.

Don Young, 87 anos, é um ex-operário de uma das gigantescas siderúrgicas da Pensilvânia. Na entrevista, ele afirmou que a campanha de Donald Trump “literalmente reflete a de Adolf Hitler”. Já sua esposa, Barbara Young, é uma ativista pró-Trump, e, vestindo um boné de campanha de seu candidato, disse lamentar ouvir isso do marido.

A Pensilvânia faz parte do chamado "cinturão da ferrugem", um grupo de estados do nordeste e do meio-oeste dos Estados Unidos que também inclui Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa e Wisconsin. O cinturão reúne alguns estados decisivos para as eleições americanas — os chamados swing states — justamente pela oscilação de preferência entre democratas e republicanos.
Decisão dos Estados pêndulos nos EUA
Decisão dos Estados pêndulos nos EUA / infográfico de O Globo


Por exemplo, esses estados foram decisivos para a vitória de Barack Obama, do Partido Democrata, em 2008 e 2012. Já em 2016, o republicano Donald Trump conquistou todos os delegados da região, com exceção de Minnesota.

O casal Don e Barbara é representativo da divisão ideológica dessa região dos EUA. Mais que isso, reflete como o cidadão votante de lá vê o mundo, com quais lentes ideológicas interpreta a realidade e, consequentemente, as opções eleitorais para a presidência. São estados divididos, onde tanto candidatos democratas quanto republicanos têm chance, dependendo das propostas e convicções de cada eleição.

Estados como o Texas, por exemplo, são redutos históricos dos republicanos, com forte viés conservador. Eles contrastam com os estados-pêndulos, pois geralmente podem ser previstos com maior certeza. Assim, o partido conta com esses delegados no resultado final — ou com sua ausência.

Contudo, isso não é uma certeza absoluta: o próprio Texas começa a mostrar sinais de mudança de tendência, e uma vitória democrata, embora improvável, não é impossível. O estado ainda é considerado "sólido", ou seja, historicamente previsível. Hoje, há 139 delegados que representam estados sólidos do lado democrata, contra 94 do lado republicano, de um total de 538 em disputa.

Os sete estados-pêndulos somam 93 delegados. O número mágico para conquistar a Casa Branca é 270, representando a maioria simples. Do lado democrata, Kamala Harris conta com o apoio de 226 delegados, enquanto Trump tem 219. A possibilidade real de vitória, portanto, recai sobre os 93 delegados dos estados pendulares. Nos EUA, o candidato que vencer no voto popular em um estado leva todos os seus delegados, seja por 1 ou por 1 milhão de votos. No cômputo final, é possível perder no voto direto e mesmo assim vencer a eleição, pois o número de delegados é o que define o presidente.


Kamala Harris e Donald Trump: eleição apertada que depende dos Estados-Pêndulos.
Kamala Harris e Donald Trump: eleição apertada que depende dos Estados-Pêndulos. / Reprodução


O trumpismo no Cinturão
A posição externada por Don Young na entrevista é uma exceção que confirma a regra. Em geral, o homem que vive no Cinturão da Ferrugem é alguém que perdeu seu lugar no mundo. Os empregos nas fábricas permitiam que esses homens fossem os provedores da família, que pudessem comprar uma casa, um carro e fazer churrascos aos fins de semana.

Essa visão do papel masculino numa sociedade de estrutura patriarcal sustenta o público conservador, que sente que seu espaço no mundo está se fechando. A figura de Trump, implícita e explicitamente, carrega a promessa de um retorno a esses valores e de uma recuperação desses empregos.

Além dos saudosistas que viveram tempos mais prósperos, as novas gerações também sentem a quebra de um antigo "acordo" geracional da sociedade americana: de que sua vida seria melhor que a de seus pais. A retomada desse acordo é encarnada no ideal trumpista.

Barbara Young, por exemplo, afirmou que Trump lembra seu pai, a quem descreveu como "forte, rigoroso e cumpridor de sua palavra". Isso reflete como os ideais do candidato republicano atraem eleitores de diferentes gêneros e gerações que viveram em uma lógica familiar e econômica cada vez mais difícil de manter.

Isso ajuda a explicar por que o sucesso econômico de um governo nem sempre é determinante na escolha do eleitor. Embora a economia americana esteja relativamente estável, o empate nas pesquisas entre Kamala e Trump mostra que a disputa é emocional e identitária.

O fascismo repaginado nos EUA e no Brasil
Ser conservador não é sinônimo de ser reacionário, mas a ideia de um passado idealizado é poderosa e mobilizadora. No Brasil, Bolsonaro traz uma visão semelhante, com adaptações naturais às particularidades do país.

O militarismo é uma marca do bolsonarismo, que vê as forças armadas como garantidoras da “ordem” — uma perspectiva fortalecida pela Constituição de 1988. Isso é diferente dos EUA, onde os militares não atuam politicamente e são mobilizados para a defesa contra ameaças externas.
Ex-presidentes do EUA e do Brasil: Donald Trump e Bolsonaro
Ex-presidentes do EUA e do Brasil: Donald Trump e Bolsonaro / Reprodução/Folha de S.Paulo


Na entrevista, Don Young afirmou já ter visto muitos ditadores na história e que Trump se encaixa nesse perfil. Frequentemente, o republicano precisa refutar acusações de nazismo, o que sugere algumas similaridades aparentes.

O conceito de fascismo, embora específico de um período histórico, vem sendo repensado diante de líderes como Trump, Bolsonaro, Orbán, Putin e Netanyahu. Discursos de ódio, ataques a minorias, eliminação de adversários e negação da ciência e da intelectualidade são práticas comuns em suas plataformas.

Uma possível vitória de Donald Trump pode fortalecer e dar continuidade a esse ideal de extrema-direita que vem crescendo globalmente. A escolha entre Trump e Kamala pertence aos americanos, mas suas repercussões atingem o mundo todo, dado o poder dos EUA.

Na próxima terça-feira, os americanos decidirão entre dois candidatos com visões de mundo profundamente distintas, que definirão o papel do país em um mundo em tensão, como poucas vezes na história. No intrincado sistema eleitoral americano, o resultado final certamente não será conhecido no mesmo dia e deverá ser apertado.

Can your marriage survive a Donald Trump win (seu casamento sobreviverá à vitória de Donald Trump)?”, pergunta o título da matéria da Sky News. Mais que um casamento no Cinturão da Ferrugem, é preciso perguntar se o mundo, como o conhecemos, sobreviverá.

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