A sociedade aberta, seus inimigos e os debates intolerantes
Edmundo Siqueira - Atualizado em 22/09/2024 22:27
Os algoritmos, a liberade e a tolerância
Os algoritmos, a liberade e a tolerância / Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira


Existem dois conceitos fundamentais quando pensamos em uma democracia liberal: liberdade e tolerância. E até mesmo por seus papéis fundacionais em um sistema repleto de freios e contrapesos, e com a necessidade perene de limitação de poder mesmo quando exercido pelo Estado (este limitado pela Constituição), são conceitos complexos e por vezes contraditórios.

Como a garantia de liberdade, que não pode assumir um caráter absoluto, devendo ser limitada e relativizada quando fere outros direitos fundamentais. Em uma democracia liberal deveria parecer claro que o limite da liberdade é a lei. Portanto, quando o direito de exercer a liberdade fere o ordenamento posto e pactuado coletivamente, essa garantia perde seu objeto; seu preceito.

Pode parecer uma contradição aparente, mas limitar a liberdade individual é papel de uma democracia liberal, justamente para garantir que haja convivência pacífica em âmbito coletivo. O direito de ir e vir, por exemplo, não pode ser exercido plenamente quando há uma situação extrema ou calamidade, justamente para proteger o indivíduo quando este quer assumir uma conduta que cause riscos para si e para seus conviventes. Limitações de direitos também falam sobre proteção.

Quando caminhamos em terrenos políticos, podemos perceber que a liberdade é usada como elemento central de discursos que buscam radicalidade e ruptura; travestidos de defensores da liberdade, subvertem seu real sentido. E por vezes conseguem convencer uma quantidade de pessoas suficiente para criar um movimento significativo socialmente, e é nesse ponto que as democracias liberais passam a ter um problema para resolver.
 
Estaremos prontos para o deserto de informações demasiadas?
Estaremos prontos para o deserto de informações demasiadas? / Arte digital criada por IA, por Edmundo Siqueira


Limitar ou ampliar?

A primeira reação dos democratas talvez seja limitar a presença desses transgressores libertários no debate público, bloqueando seus perfis nos ambientes digitais, impedindo que compareçam a debates televisionados ou mesmo dificultando seu acesso a partidos políticos ou candidaturas avulsas. A premissa é de que a voz desses indivíduos seja calada, impedindo que convençam outros de suas convicções deturpadas.

Mas como exercer esse controle de forma equilibrada? O direito, como ciência social, estabelece a intenção, o dolo, como um elemento central para o julgamento de crimes. A mesma conduta pode ter interpretações e punições diferentes a depender da intenção. Para se formar o dolo, o agente causador do ato ilícito precisa ter conhecimento da ilegalidade, vontade de agir e indiferença perante o resultado danoso.

Decisões judiciais que visam impedir que agentes políticos — investidos ou não em mandatos — atuem livremente para descumprir leis de forma dolosa, mesmo quando feito em ambientes virtuais, atendem à premissa da proteção do modo de vida da sociedade, do espírito das leis e da Constituição. Portanto, alguém que possui o dolo evidente de quebrar as vigas de sustentação da democracia precisa ser combatido, e calado quando o resultado danoso de sua conduta estiver em suas palavras.

Porém, mesmo havendo dolo no uso de liberdades individuais fundamentais como a livre expressão, é preciso que seu combate seja feito em bases razoáveis, e temporárias. Não se pode calar alguém na sociedade de forma indiscriminada, tampouco por tempo indeterminado. Caso contrário, estaremos supondo que aquele agente estará sempre cometendo ilegalidade em suas opiniões, e agiremos em censurá-lo previamente.

Karl Popper
Karl Popper / Reprodução
A tolerância e o debate público


O segundo conceito chave em uma democracia liberal, a tolerância, dialoga essencialmente com a liberdade de expressão nos tempos atuais. Produzimos a maior ferramenta de comunicação humana já vista, a mais global e a mais rápida que já existiu.

A internet não apenas possibilitou essa comunicação como retirou do processo entre emissor e receptor qualquer tipo de mediação ou filtro. Qualquer pessoa pode ser um produtor ou emissor de conteúdo e ele é distribuído para outrem sem passar por qualquer crivo de qualidade ou de senso de credibilidade.

A internet produziu um cenário libertário, mas concentrou em poucos controladores o poder sobre os meios em que as mensagens são produzidas. E criou os algoritmos para direcionar de forma automatizada as predileções e os ódios.

A questão é que “o meio é a mensagem”, como ensinou o filósofo canadense Marshall McLuhan. A forma como recebemos a informação é tão significativa quanto o conteúdo que ela transmite. Esse “meio”, apesar de aumentar significativamente a capacidade de comunicação entre os indivíduos, produziu paradoxalmente um enorme afastamento ideológico, social e afetivo.

Outro filósofo, contemporâneo de McLuhan, mas nascido em Londres, Karl Popper, ganhou notoriedade mundial ao descrever outro paradoxo: o da tolerância. Esse conceito é descrito por Popper em uma nota de rodapé em seu livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, e sua essência está na primeira frase: “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”.

“Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”, continua, na mesma nota de rodapé.

O que Karl Popper está dizendo é que as democracias liberais têm o dever de suprimir as tentativas intolerantes, e mesmo que “pela força”, pelo poder coercitivo do Estado, impedir que cresça na sociedade um sentimento de intolerância, de ódio ou de incapacidade de convívio.
Caso optamos por permitir, estaremos dando passos temporais largos para um passado incivilizado, e portanto destruindo o que chamamos de sistema democrático. Portanto, o debate público não pode acontecer à margem da lei, e jamais em bases intolerantes.

Se não defendermos a tolerância com firmeza, permitiremos que a liberdade, ao invés de um direito, se torne uma arma nas mãos de seus maiores inimigos.

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