Mulheres de areia: arte, memória e cooperativismo mudam realidades em Atafona
Edmundo Siqueira 02/06/2024 22:16 - Atualizado em 02/06/2024 22:38
Atafona, norte do estado do Rio de Janeiro - foz do rio Paraíba e uma praia que desaparece a cada ano.
Atafona, norte do estado do Rio de Janeiro - foz do rio Paraíba e uma praia que desaparece a cada ano. / https:/www.soudonadaminhavida.com.br/atafona/
A praia de Atafona pertence ao pequeno município de São João da Barra, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro. Dos cerca de 37 mil habitantes, 17% são atafonenses. Para se manter nessa condição, mulheres e homens da praia precisam conviver com os desafios e belezas de um lugar único.

O local abriga a foz de um dos principais rios do país, o Paraíba do Sul. Trata-se de um estuário em formato de delta que começou sua história em meados de 1630, atraindo pessoas pela pesca, que acabaram por se fixar ali, quando ainda era chamada de “São João da Praia”, em homenagem a São João Batista.

O convívio secular dos moradores com o mar e a foz do Paraíba foi fortemente impactado há pelo menos 60 anos. Em um processo lento e contínuo, a erosão costeira já destruiu 14 quarteirões de Atafona e continua a causar prejuízos e um processo migratório inevitável.

Mas há quem decidiu resistir. Em um constante processo de adaptação, principalmente fortalecido pelo vínculo afetivo com a localidade, um grupo de mulheres foi ouvido pelo projeto “Mulheres de Areia, Memórias de Atafona”, aprovado em edital de 2023 da Lei Paulo Gustavo.

Em abril, uma roda de conversa foi realizada com o tema “Como as mulheres da região afetam e são afetadas pelo território em que vivem?”, como uma das etapas do projeto, que visa mapear essa relação com a localidade por meio de entrevistas, pesquisa, fotografias e vídeos, valorizando a história local pela narrativa de oito de suas moradoras.
Entrevista de Sônia Ferreira para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona". Moradora da praia que resistiu por décadas à erosão e hoje atua na área cultural e social do município.
Entrevista de Sônia Ferreira para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona". Moradora da praia que resistiu por décadas à erosão e hoje atua na área cultural e social do município. / https:/www.soudonadaminhavida.com.br/atafona/

“Receber um debate tão relevante não só valoriza, como reforça o sentimento de pertencimento da nossa comunidade. Atafona é um lugar que encanta com seu cenário emblemático e seu povo apaixonado”, disse na ocasião o secretário municipal de Turismo e Lazer de São João da Barra, Edivaldo Machado.

As oito mulheres escolhidas vieram do olhar da jornalista niteroiense Ana Luiza Cassalta, idealizadora do projeto, e pelo fotógrafo carioca Flávio Veloso. Para representar a comunidade foram ouvidas: Carmélia Barreto, Camila Hissa, Izabel Gregório, Joice Pedra, Lúcia de Jesus, Odinéia Pereira, Sônia Ferreira e Fernanda Pires.

Fernanda é líder da “Cooperativa Arte Peixe” e atualmente preside o Conselho das Mulheres do município. Nascida de um grupo de 20 mulheres de Atafona, a cooperativa buscou dar significado e lucro ao papel feminino na indústria da pesca.

No início do ano de 2007, o que era apenas uma ideia ganhou ares profissionais. Abraçando a oportunidade oferecida pelo Programa de Organização Produtiva de Comunidades (Produzir) do Ministério da Integração Nacional, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Estado do Rio de Janeiro (Senar), as mulheres aprenderam a se organizar em uma cooperativa e profissionalizar uma atividade o que já desenvolviam desde muito novas: o beneficiamento do pescado.

“Limpar camarão, filetar os peixes, cortar os filés, enfim, ajudava em casa nesses processos, até que veio esse curso do beneficiamento do pescado”, contou Fernanda Pires.

A ideia do programa Produzir era oferecer cursos de boas práticas de cooperativismo, higiene alimentar, meio ambiente e processamento do pescado, ensinando basicamente dois produtos, linguiça de camarão e hambúrguer de peixe. Mas a Cooperativa Arte Peixe decidiu ir além dos produtos alimentícios.

Na lógica de aproveitamento máximo, as mulheres utilizaram as escamas que sobravam da limpeza do pescado e começaram a produzir bijuterias. “Estou usando um brinco aqui hoje é de escama de peixe, uma bijuteria feita com as escamas”, mostrava, orgulhosa, uma das cooperadas em vídeo no Instagram.

Desenvolvendo a cooperativa
Cooperadas da Arte Peixe, em Atafona, exibindo um dos produtos e matéria prima da empresa.
Cooperadas da Arte Peixe, em Atafona, exibindo um dos produtos e matéria prima da empresa. / Folha1
Depois do programa Produzir, as cooperadas da Arte e Peixe perceberam a necessidade de continuidade do aprendizado e capacitação. A participação em editais governamentais foi um dos caminhos que encontraram para investir na cooperativa e aproveitar os potenciais que viam nelas mesmas.


Em edital da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), a cooperativa adquiriu maquinários e insumos para aumentar a produção, e conseguiram ampliar o número de mulheres cadastradas na cooperativa.

Da ideia inicial, que era apenas criar uma renda extra à atividade da pesca e ajudar no orçamento familiar, as mulheres descobriram que a Arte Peixe podia criar pertencimento, cidadania, empoderamento feminino e significado à atividade. Trazer o porquê de trabalhar com o peixe.

Fernanda conta o relato de uma cooperada que disse ter se sentido “gente” depois da Arte Peixe:

“Antes eu não era gente, agora eu sou uma cooperada”, repetiu, emocionada, a frase que ouviu. “Na cooperativa elas se sentem outra pessoa, outra mulher, se sentem mais fortes. Fomos entendendo cada vez mais nosso papel enquanto empresa. Acredito muito nessa união”, reforçou Fernanda.

Hoje são vários produtos comercializados pela Arte Peixe. Além das linguiças e hambúrgueres aprendidos no início, a cooperativa vende bolinhos, quibes e todo tipo de quitute feito com pescados e camarão. Os peixes do mar e do rio também são comercializados limpos e embalados, inteiros ou processados. A produção passa dos 800 quilos mensais, com mão de obra exclusivamente feminina da cooperativa.

Além dos alimentos, as bijouterias com escamas naturais ou tingidas cumprem um papel de contornar a perecibilidade do pescado.

“Diferente de fazer um alimento para vender, quando fazemos uma bijuteria podemos guardar e esperar uma nova coleção, por exemplo, não precisamos vender naquele momento”, disse Fernanda que é também formada pelo Empretec, programa estabelecido pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, aplicado no Brasil pelo Sebrae.

Mulheres de Areia

No projeto de memória “Mulheres de Areia”, as personagens reais contam suas vivências e relatam o caso de amor com Atafona, apesar de tanta destruição e abandono.

O mar devorou o farol histórico da praia, bares, mercados, um hotel de quatro andares, mansões de veraneio de moradores das cidades vizinhas, igrejas e uma ilha, a “Ilha da Convivência”. Era lá que morava Carmélia Barreto, hoje com 75 anos e uma das escolhidas para o projeto de memória.
Entrevista de Fernanda Pires, líder da Cooperativa Arte Peixe, para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona"
Entrevista de Fernanda Pires, líder da Cooperativa Arte Peixe, para o projeto "Mulheres de Areia: Memórias de Atafona" / https:/www.soudonadaminhavida.com.br/atafona/
Carmélia concluiu seus estudos após os 50 anos de idade, e mesmo acometida por um grave problema auditivo, conquistou o sonho de ser escritora e lançou o livro “A Ilha da Convivência e seu povoado”.
A Ilha ficava a 200 metros da costa e hoje a única coisa que resta é uma estreita faixa de terra com tristes ruínas. Ao todo, os pesquisadores estimam que a erosão tenha contribuído para o surgimento de mais de 2 mil refugiados ambientais no local desde os anos 1960.

Esse cenário inóspito produziu literatura, poesia e outras formas de luta. As mulheres da Cooperativa Arte Peixe ressignificam uma atividade desenvolvida essencialmente por homens, que costumam levar meses no mar, onde a mulher ocupava um lugar de suporte em casa, e de espera.

“A Arte Peixe não pode ser de uma pessoa, tem que ser de várias. As mulheres se fortalecerem, mas os homens também. Chegamos em casa e explicamos por que estamos em um lugar coletivo cheio de mulheres, devemos fazer essa parceria de mãos dadas, não um contra o outro, para que possamos ter um amanhã melhor”, disse a líder da cooperativa.

Além de novos significados, elas entendem que também é preciso levar lucro e independência financeira para as cooperadas. O sucesso e o equilíbrio das contas da cooperativa é encarada como essencial para vencer as barreiras sociais e de um mercado muito competitivo.

“É importante aprender e contribuir nesses espaços, pois acabamos dando uma devolutiva, e comunicamos o município, fortalecemos todas as mulheres daqui. São lutas que participamos, espaços onde as mulheres possam se unir e se fortalecer”, concluiu Fernanda.
Cais do Imperador, em São João da Barra, norte do estado do Rio de Janeiro.
Cais do Imperador, em São João da Barra, norte do estado do Rio de Janeiro. / Reprodução
 

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