Cidades naturais: o excesso e a escassez das águas em Campos e suas implicações
Edmundo Siqueira 19/05/2024 11:19 - Atualizado em 19/05/2024 11:56
 
Registro de cheia na área urbana de Campos dos Goytacazes: região tara luta histórica com o acúmulo e a estiagem de recursos hídricos
Registro de cheia na área urbana de Campos dos Goytacazes: região tara luta histórica com o acúmulo e a estiagem de recursos hídricos / Imagem: João Pimentel

onseguiram! Estão tirando ali”, comemorava uma moradora ao ver sua vizinha ser retirada de uma casa alagada em Santo Eduardo, distrito de Campos dos Goytacazes, cidade de porte médio com cerca de 500 mil habitantes, situada na região norte do estado do Rio de Janeiro. Localizado próximo a divisa com o Espírito Santo, Santo Eduardo estava completamente submerso em março deste ano, pelas fortes chuvas que caíram de um só vez na região.


A moradora foi resgatada pelo telhado de sua residência pelo comerciante Guilherme Fiuza, depois que ouviu seu pedido de ajuda. “Ela estava pedindo socorro, e quando entrei pelo telhado, com ajuda de um sobrinho da senhora, conseguimos resgatar ela com vida, graças a Deus”, relatou Fiuza a uma reportagem de TV. As chuvas intensas na Bacia do Rio Itabapoana provocaram a cheia repentina em Santo Eduardo. Dados da estação meteorológica mais próxima ao local indicaram que 270 mm de chuva caíram em 24 horas na região. Desde meados dos anos 1970 a localidade não via uma cheia tão devastadora.

O Rio Itabapoana é um exemplo de como os recursos hídricos determinam as localizações geográficas de cidades e estados. O seu curso é exatamente a divisa entre os estados do Espírito Santo e o Rio de Janeiro. Em Campos, além do Itabapoana e de outros corpos hídricos, o Rio Paraíba foi o principal motivo de escolha dos colonizadores para criar um núcleo urbano, ainda no século XVII.
Enchente em Santo Eduardo em março de 2024, distrito de Campos, próximo à divisa com o Espírito Santo e do Rio Itabapoana que determina as cheias na região e delimita a fronteira.
Enchente em Santo Eduardo em março de 2024, distrito de Campos, próximo à divisa com o Espírito Santo e do Rio Itabapoana que determina as cheias na região e delimita a fronteira. / PMCG


Um século antes, em 1534, foi implantado o sistema de capitanias hereditárias pelo rei Dom João III de Portugal como uma forma de promover a colonização e o desenvolvimento do Brasil. Campos cumpria o que estava na “Carta de Doação das Capitanias Hereditárias”, que permitia aos donatários a criação de vilas, desde que situadas ao longo da costa ou dos rios.

João Pimentel
A escolha do local da então Vila de São Salvador cumpria uma determinação legal de Portugal, mas também era a escolha possível, pelas determinações da própria geografia da região. Na margem sul do Paraíba, este era o local “predestinado” para Campos, como afirmou o geógrafo e geólogo Alberto Lamego, em seu livro “O Homem e o Brejo”, publicado em 1945 pelo IBGE.


“Só existe um lugar alto na inflexão do rio ocupada pela cidade. Só ali, naquele local predestinado, é que, justamente ao centro e ao alto do fértil lençol argiloso, poderia nascer a vila, ao mesmo tempo ao abrigo das enchentes e à beira do caminho líquido para o mar”, dizia Lamego.
Nas vastas planícies alagadiças do que hoje se compreende como Norte e Noroeste Fluminenses, com seus sinuosos cursos d'água, criou-se um solo muito fértil que logo atraiu os olhares do Império e possibilitou que Campos pudesse ser a potência em gado e cana-de-açúcar em seus primeiros ciclos econômicos. Os aluviões, guardiões silenciosos de eras passadas, como depósitos de sedimentos, possibilitaram essa fertilidade.

A água como fonte de riqueza e tragédias

A cada inundação, a cada mudança no curso d'água, são depositadas novas camadas de sedimentos, formando um registro geológico da passagem do tempo. Nos estuários — local onde rios encontram o mar — os aluviões criam paisagens híbridas, onde água doce e salgada se misturam, constituindo-se um berço de biodiversidade e de recursos naturais.

Porém, toda essa riqueza também traz problemas. Esses elementos somados moldam não apenas a terra, mas também determinam a vida que dela brota. Quando o curso das águas e das chuvas provocam aumento dos níveis hídricos, o rio e as lagoas avançam sobre a urbanidade que nasceu em volta deles. Assim como a escassez gerada pelos ciclos desses recursos dificultam sobremaneira o cultivo e toda cadeia produtiva que depende de água.
Os irmãos João e Frank Moraes pastoreiam o gado em meio ao mato seco em Cardoso Moreira
Os irmãos João e Frank Moraes pastoreiam o gado em meio ao mato seco em Cardoso Moreira / Brenno Carvalho / Agência O Globo
Histórico das maiores cheias em Campos dos Goytacazes e região Norte Fluminense.
Histórico das maiores cheias em Campos dos Goytacazes e região Norte Fluminense. / Edmundo Siqueira


A dificuldade em lidar com uma quantidade abissal de água não é uma exclusividade de Campos dos Goytacazes. A região sul do país atravessa uma das maiores tragédias climáticas já registradas, com 155 mortos, 94 desaparecidos, 540.188 desalojados e 2.304.422 pessoas afetadas (números deste domingo, 19). Com similaridades preocupantes com Campos, o Rio Grande do Sul precisa encontrar maneiras de coexistência de suas áreas urbanas com a abundância de rios e seus afluentes.

Em Campos, adaptações permanentes foram feitas para a conquista dos rios e a criação de novas rotas para escoamento de água e da produção. Entre as intervenções mais importantes estão barragens, diques e canais, que foram construídos a partir do início do século XX, principalmente.

A bacia do Paraíba do Sul é a maior e mais importante do sudeste brasileiro, usada para abastecer um contingente de mais de 15 milhões de pessoas. Segundo dados da ANA - Agência Nacional de Águas, a bacia possui 62.074 km2 de área e abrange 184 municípios, em três estados, sendo 39 em São Paulo, 88 em Minas Gerais e 57 no Rio de Janeiro.

O rio Paraíba do Sul nasce em São Paulo, com o resultado da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga. Essencial para todos os municípios de sua bacia hidrográfica, em abastecimento, diluição de esgotos, irrigação e geração de energia hidrelétrica.

As enchentes em Campos

Desde que começaram a ser monitoradas, as cheias do rio Paraíba aconteceram com mais intensidade nos meses de janeiro e fevereiro, com alguma recorrência em março, onde as águas fecham o verão. Porém, em um planeta em desequilíbrio climático, a previsibilidade pode ser um elemento faltante nas ações de prevenção.

Órgãos e estruturas de controle dos sistemas de proteção das cheias e estiagens de Campos dos Goytacazes e região.
Órgãos e estruturas de controle dos sistemas de proteção das cheias e estiagens de Campos dos Goytacazes e região. / Edmundo Siqueira


Em 2008, as cheias em Campos começaram em dezembro, como exceção à regra e como consequência de uma cheia histórica ocorrida no ano anterior, 2007, que disputa como a maior já vista com 1966.

No imaginário popular de Campos, a cheia de 1966 foi a maior de todos os tempos. Entre uma divergência geográfica e outra, e pela fragilidade de dados apurados no período, é difícil medir com exatidão a maior cheia da série histórica.

Em termos de magnitude, quando considerados os impactos das entradas pluviométricas, das chuvas, e das respostas fluviais, do rio Paraíba e seus afluentes, o evento de 1966 foi o maior, segundo os especialistas. Saindo do seu leito em 30 km no sentido da margem esquerda e por assustadores 120 km em sentido contrário, atingindo os municípios de São Fidélis e Itaocara, na confluência do Paraíba com o Rio Pomba.

O jornal 'O Globo' informava, no final de janeiro daquele ano, que havia 3.815 desabrigados em Campos, com estimativa de ao menos 250 mortos pelas inundações.

Em 2007, um evento climático devastador assolou Campos e região. Naquele ano, nos primeiros dias de janeiro, o Paraíba do Sul transbordou, atingindo a marca de 11,20 metros, bastante superior à cota crítica de 10,40. Das três pontes que faziam a ligação entre as margens direita e esquerda em Campos, apenas a General Dutra ficou transitável. Mas não durou muito. Um dia depois não suportou a correnteza e dois pilares afundaram.

Se não bastasse, dois diques se romperam. Na margem direita, em dois pontos: Alto do Viana, em São João da Barra, alagando cerca de 400 hectares de pasto e fruticultura, e na altura do bairro Pecuária, na área urbana de Campos. Na margem esquerda, próximo à localidade de Abadia, uma cratera foi aberta com mais de 100 metros de largura, inundando todo o entorno, constituído em sua maior parte por médias e pequenas propriedades rurais.
Foz em delta do Rio Paraíba do Sul: Atafona como estuário
Foz em delta do Rio Paraíba do Sul: Atafona como estuário / Comitê de Bacia da Região Hidrográfica do Baixo Paraíba


Na área residencial, um estudo da Defesa Civil de Campos dava conta de dez mil imóveis afetados, com estruturas comprometidas pelas inundações. Foram contabilizadas 48.068 pessoas desalojadas e 100.145 afetadas pelas cheias. O número de mortos não foi informado pelas autoridades da época.

Os prejuízos foram estimados, em valores da época, em 100 milhões. Atualizando a cifra, 323 milhões de reais foram contabilizados como perdas pela enchente de 2007. Mais de 50% da safra de cana-de-açúcar perdida. A economia urbana foi totalmente afetada.

A prevenção possível e a mitigação dos riscos

Os sistemas de proteção mais eficientes e usuais são as barragens. Na bacia do Rio Paraíba existem cinco ao longo do curso principal: Paraibuna e Santa Branca, em São Paulo, e no Rio de Janeiro, Funil, Santa Cecília e Ilha dos Pombos.

Além de barragens, as Centrais Hidrelétricas (PCHs) estão distribuídas ao longo dos afluentes, e como artérias fundamentais para o sistema funcionar bem, a região do Baixo Paraíba conta ainda com 389 canais entre primários e secundários, totalizando 1.293 km de extensão.

Os canais foram construídos em Campos para possibilitar a drenagem das áreas agricultáveis e em uma perspectiva higienista, onde as lideranças de Campos encomendaram ao engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, um plano de construção. Depois de Brito, o extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) atuou fortemente em Campos, construindo uma ampla malha de canais e diques de contenção por toda extensão da planície.
 
Tragédia de enormes proporções no Rio Grande do Sul, 155 mortos, 94 desaparecidos, 540.188 desalojados e 2.304.422 pessoas afetadas.
Tragédia de enormes proporções no Rio Grande do Sul, 155 mortos, 94 desaparecidos, 540.188 desalojados e 2.304.422 pessoas afetadas. / Rafa Neddermeyer - Agência Brasil


Barragens, diques, canais, PCHs e comportas formam um complexo sistema que pretende não apenas conter o avanço das águas nos períodos de cheia, como contornar os efeitos na estiagem. Desde de 2009, órgãos técnicos foram criados para gerir esses elementos, e atuar em conjunto com prefeituras e estados da federação. Foram criados os Comitês de Bacias Hidrográficas em todo Brasil e no Rio de Janeiro, o Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (Ceivap) e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea).

Sem manutenção, sem proteção

Embora exista um sistema atuando de forma perene para tentar controlar, prever e minimizar as tragédias provocadas por cheias e estiagens, com órgãos e pessoal especializados e comprometidos, para que seja realmente efetivo é necessário que o poder público atue também de forma perene na limpeza e manutenção.

Sem manutenção adequada, o sistema fica caótico. A drenagem que os canais artificiais e comportas manobráveis pela ação humana deveriam promover fica extremamente fragilizada. Com os eventos de 2007 e 2008 recursos públicos de grande porte foram aplicados para conter os danos, mas pouco de ação preventiva continuou a ser feita.

A maioria dos canais de Campos não recebe manutenção adequada, e muitos encontram-se completamente obstruídos por sedimentos e detritos jogados indiscriminadamente pela população e empresas, impedindo o correto escoamento das águas. Uma das principais artérias do sistema, o canal Campos-Macaé, construído em 1844 com aproximadamente 100 km de extensão, sendo o segundo maior canal artificial do planeta e a maior obra de engenharia no período do Império, está negligenciado e abandonado, e mesmo em área urbana é depósito de lixo e poluição, gerando diversos problemas e impedindo as soluções.

Campos e região possuem todos os elementos para conviver com os movimentos das águas de forma minimamente harmoniosa, e para que tragédias como a de Santo Eduardo não voltem a acontecer, ou pelo menos que não causem tantos estragos. O desequilíbrio climático causado pelo aquecimento global exige que sociedade e poder público se mobilizem não apenas na contenção de danos, mas na prevenção.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]