Cravos e músicas como armas: a Revolução de Abril
Edmundo Siqueira 14/04/2024 16:51 - Atualizado em 14/04/2024 16:52
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Quando ouviram a música “Grândola, Vila Morena” tocar no rádio, os revolucionários portugueses entenderam como uma senha. Era isso que estava acordado entre os conspiradores: às 22h55, o poema musicado de Zeca Afonso deveria ser reproduzido em ondas curtas e a revolução teria início. E teve.

O que iniciou-se em Portugal naquele 25 de abril de 1974, após ser reproduzida a música que viria a se tornar o hino da revolução — “Grândola, Vila Morena” —, mudaria não apenas o país, mas principalmente romperia com a lógica colonialista que imperava há alguns séculos por lá.
Portugal ainda mantinha colônias na África e na Ásia quando o século XX iniciou, e assim como o Brasil fez em 1822, até então sua maior colônia, os países africanos e asiáticos tentavam suas independências, principalmente em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique. Esses conflitos ficaram conhecidos como “Guerra Colonial”.

As guerras coloniais custavam caro a Portugal. As baixas eram constantes, os campos de batalha levavam os jovens portugueses (estima-se que cerca de 90% da população masculina jovem do país havia morrido, ou estava inválida) e a guerra corroía a economia. O reino estava ameaçado, e a coroa que havia fugido de Napoleão e se instalado no Brasil, estava novamente com medo.

As ambições coloniais portuguesas não apenas saqueavam o próprio país como atrapalhava os interesses, também coloniais, dos britânicos. Até que em 1890 o Reino Unido deu um ultimato: ou Portugal retirava as tropas de algumas colônias e paravam os avanços, ou entraria em guerra com a superpotência inglesa. Com a crise crescente no reinado português, sem representatividade e sem dinheiro, o pior aconteceu, e em 1º de fevereiro de 1908, D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe são assassinados.

A monarquia ainda tentou ficar de pé por mais dois anos, mas era evidentemente insustentável. A República era o caminho óbvio naqueles tempos, e em 5 de outubro de 1910 ela foi implantada em Portugal. Mas democracia e republicanismo não são soluções mágicas, e as questões financeiras continuavam difíceis, além das negociações políticas seguirem extremamente desgastadas. Para piorar — e muito —, em julho de 1914 eclode a Primeira Guerra Mundial e não era possível deixar Portugal de fora.

Em guerra, socialmente destruído, sem juventude, sem recursos e com um governo não representativo, só restou um caminho para Portugal: o autoritarismo ditatorial. O exército tomou o poder em 1926, nomeando o ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar, então professor da Universidade de Coimbra, a Presidente do Conselho de Ministros, e deu-se início a uma ditadura militar. Em um regime autoritário de corporativismo de Estado, com partido único e sindicatos estatais, com afinidades diretas com o fascismo, Portugal tentava, pelo menos, colocar as finanças em dia.

A Revolução dos Cravos
Cenas da Revolução de 25 de Abril  em Portugal.
Cenas da Revolução de 25 de Abril em Portugal. / Reprodução

Ao contrário do Brasil, o fim da ditadura em Portugal não foi negociado. Revolucionários armados e militares dissidentes do governo derrubaram o regime ditatorial do Estado Novo (mesmo nome dado a Era Vargas no Brasil, também uma ditadura), e implantaram uma democracia.

Comemorações do 25 de Abril - A Revolução dos Cravos
Comemorações do 25 de Abril - A Revolução dos Cravos / Reprodução
A Revolução dos Cravos (em ato simbólico, cravos eram colocados nas bocas dos fuzis), também chamada de Revolução de Abril, teve seu início em 25 de abril de 1974, e exatos dois anos depois, uma nova Constituição, de forte orientação socialista, foi promulgada. Grândola, Vila Morena virou hino, e a população deu amplo apoio ao movimento.


Entre os líderes da Revolução estavam também os militares, principalmente o Movimento das Forças Armadas (MFA), composto na sua maior parte por capitães que tinham participado na Guerra Colonial. Com apoio de oficiais milicianos, e da maioria da população (apenas quatro civis mortos e quarenta e cinco feridos em Lisboa), o regime ditatorial estava deposto. O resto é história.

O povo, os cravos, a música e as armas

O que aconteceu em Portugal não se repetiu no Brasil. Embora houvesse movimentos armados revolucionários por aqui, todos foram violentamente sufocados e um regime de censura, torturas, mortes e desaparecimentos foi a tônica de uma ditadura que durou mais de 20 anos.

A escolha pelo conflito armado e pelas revoluções são sempre as últimas alternativas para enfrentar um regime autoritário e violento. Não podem ser consideradas como parte do processo civilizatório, assim como não podem as ditaduras. Ambas são deturpações civilizacionais que devem ser evitadas a qualquer custo.

A Revolução dos Cravos foi repleta de simbolismos, e o 25 de abril é comemorado ainda hoje no país. Conta-se que uma mulher, Celeste Caeiro, que trabalhava num restaurante na Rua Braamcamp, em Lisboa, andava pelas ruas da capital com um ramo de cravos brancos e vermelhos nas mãos. Ao ser avistada por um soldado, este lhe pediu um cigarro. Como ela não tinha, decidiu colocar no cano de sua arma um cravo. Depois, outros floristas repetiram o gesto.

Não é possível romantizar revoluções armadas, muita gente morreu durante o processo e as consequências de regimes ditatoriais e lutas armadas são sempre sangrentas. Ademais, Portugal, Europa e o mundo continuam instáveis e guerras continuam a acontecer; e o povo ainda não é o que "mais ordena". Mas Portugal mostrou que música e cravos são armas poderosas.

Zeca Afonso, autor da música Grândola, Vila Morena.
Zeca Afonso, autor da música Grândola, Vila Morena. / Reprodução
“Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, Vila Morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade”

Esse é um trecho de “Grândola, Vila Morena”, de autoria de Zeca Afonso. A música, ainda hoje considerada perigosa, embalou e deu alma à Revolução.

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