As pessoas são o que são
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A velha abriu a porta como se já me conhecesse. Me chamou de “filho”, pediu para que eu me sentasse em um sofá capeado por um tecido verde escuro e áspero, que fez um som de embrulho quando me sentei. Ela seguia para a cozinha enquanto me perguntava se queria uma xícara do café que acabara de sair. Agradeci, disse que aceitava.
Quando sentou-se em minha frente percebi que o vestido arrumado, o cabelo penteado fazendo uma onda sobre a testa e o batom rosado eram costume; ela sabia que eu iria, mas não fez questão de marcarmos horário e dia. A xícara com desenhos imitando um bordado, repousada em um pires branco, dava um ar de sofisticação, que não erraria em supor que ela gostava.
Falamos de amenidades enquanto eu bebia o café forte e cheiroso que foi servido gentilmente. Mas logo entramos no assunto que haveríamos de tratar naquela visita.
Estávamos ali para falar de uma reclamação que ela havia feito no Facebook. Ela aparentava uns 90 e poucos e era uma facebokiana convicta. Usou termos fortes e generalistas na postagem-desabafo: “tem que cair tudo mesmo” e “nada vai para frente nessa merda de cidade”. E ainda finalizou o irado texto ornamentado com a foto de um prédio vizinho a sua casa que estava em ruínas, dizendo que quem defende “prédio velho tem que lavar a boca” para falar dela. Disse também que era uma fiel pagadora de impostos.
Pessoalmente era o oposto. Era uma velinha amável, tinha três gatos siameses e tudo na sua casa era muito limpo e arrumado. Os gatos olhavam para mim, um naquela posição tipicamente felina de ataque e o outro em cima da cristaleira, com o rabo balançando para fora do móvel; quase deu para ouvir um tic-tac vindo de lá. Os móveis da casa eram todos de madeira maciça, com aparência conservada, mas que diziam ter uns 100 anos de idade, possivelmente pertencido aos pais da dona da casa — essa possivelmente também herdada.
Apesar de amável, a senhora na minha frente estava irredutível. Queria, porque queria, a demolição do prédio histórico vizinho. Expliquei que era tombado, que havia uma história ali e que a construção remontaria aos primórdios da cidade. Não alterou um milímetro da sua convicção. Quanto mais falava da importância de mantê-lo, mais ela fazia uma cara de achar aquilo tudo uma bobagem.
Tendo a certeza que ela me achava um idiota ou um idealista — talvez os dois —, e me vi encerrando a conversa depois de agradecender o café e elogiar a qualidade da bebida. Ela voltou a ficar amável e doce comigo. Disse, mentindo, que gostou de mim e que eu poderia voltar sempre que quisesse; mentindo de novo.
Antes da despedida final, conversamos um pouco sobre a casa em que ela morava. Confirmou minha suspeita que havia sido herdada dos pais. E disse ainda, orgulhosa, que muita coisa ali havia vindo da Europa. “Berço da civilização”, ela me contou. Não resisti e retruquei: “Mas a senhora percebe que se orgulha de coisas históricas e preservadas?”, ela fechou a cara novamente. E em frase finalística: “Lá meu filho, as pessoas dão valor à história, por isso são o que são”.
A velha abriu a porta como se já me conhecesse. Me chamou de “filho”, pediu para que eu me sentasse em um sofá capeado por um tecido verde escuro e áspero, que fez um som de embrulho quando me sentei. Ela seguia para a cozinha enquanto me perguntava se queria uma xícara do café que acabara de sair. Agradeci, disse que aceitava.
Quando sentou-se em minha frente percebi que o vestido arrumado, o cabelo penteado fazendo uma onda sobre a testa e o batom rosado eram costume; ela sabia que eu iria, mas não fez questão de marcarmos horário e dia. A xícara com desenhos imitando um bordado, repousada em um pires branco, dava um ar de sofisticação, que não erraria em supor que ela gostava.
Falamos de amenidades enquanto eu bebia o café forte e cheiroso que foi servido gentilmente. Mas logo entramos no assunto que haveríamos de tratar naquela visita.
Estávamos ali para falar de uma reclamação que ela havia feito no Facebook. Ela aparentava uns 90 e poucos e era uma facebokiana convicta. Usou termos fortes e generalistas na postagem-desabafo: “tem que cair tudo mesmo” e “nada vai para frente nessa merda de cidade”. E ainda finalizou o irado texto ornamentado com a foto de um prédio vizinho a sua casa que estava em ruínas, dizendo que quem defende “prédio velho tem que lavar a boca” para falar dela. Disse também que era uma fiel pagadora de impostos.
Pessoalmente era o oposto. Era uma velinha amável, tinha três gatos siameses e tudo na sua casa era muito limpo e arrumado. Os gatos olhavam para mim, um naquela posição tipicamente felina de ataque e o outro em cima da cristaleira, com o rabo balançando para fora do móvel; quase deu para ouvir um tic-tac vindo de lá. Os móveis da casa eram todos de madeira maciça, com aparência conservada, mas que diziam ter uns 100 anos de idade, possivelmente pertencido aos pais da dona da casa — essa possivelmente também herdada.
Apesar de amável, a senhora na minha frente estava irredutível. Queria, porque queria, a demolição do prédio histórico vizinho. Expliquei que era tombado, que havia uma história ali e que a construção remontaria aos primórdios da cidade. Não alterou um milímetro da sua convicção. Quanto mais falava da importância de mantê-lo, mais ela fazia uma cara de achar aquilo tudo uma bobagem.
Tendo a certeza que ela me achava um idiota ou um idealista — talvez os dois —, e me vi encerrando a conversa depois de agradecender o café e elogiar a qualidade da bebida. Ela voltou a ficar amável e doce comigo. Disse, mentindo, que gostou de mim e que eu poderia voltar sempre que quisesse; mentindo de novo.
Antes da despedida final, conversamos um pouco sobre a casa em que ela morava. Confirmou minha suspeita que havia sido herdada dos pais. E disse ainda, orgulhosa, que muita coisa ali havia vindo da Europa. “Berço da civilização”, ela me contou. Não resisti e retruquei: “Mas a senhora percebe que se orgulha de coisas históricas e preservadas?”, ela fechou a cara novamente. E em frase finalística: “Lá meu filho, as pessoas dão valor à história, por isso são o que são”.
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