Crônica de domingo: #Deixem a mulher trabalhar!
19/07/2020 22:07 - Atualizado em 19/07/2020 22:08
Para ela, era mais um dia normal no tal “novo normal”. Na TV, antes de sair, ouviu a recomendação de ficar em casa. “Fique em casa!”. “Se puder”, já dizem os apresentadores de rádio e TV, de um tempo pra cá. No ponto do ônibus, daquela manhã, estavam um monte de gente que pertencia ao grupo dos que “não podem”. Gente dos serviços essenciais, gente de comércio, que está abrindo no sistema de entrega na porta do estabelecimento, gente da periferia, pessoal das padarias, das farmácias, gente que mora em Guarus, mas precisa ir ao centro trabalhar.
Ela estava ali no ponto. Atrás dela e daquela gente toda – uma boa parte de máscara, é verdade –, que lotava o transporte público da cidade, podia-se ver um outdoor. Ela nem percebeu, era mais uma daquelas propagandas de loja do shopping. Esses dias viu um desses divulgando uma live e deu uma risada interna. Propaganda de rua para evento virtual! Pois sim. “Dá retorno financeiro assim, essas lives?” Indagou-se, também sem externar para suas companhias que chocalhavam no mesmo transporte público. Mas não percebeu que aquele outdoor era um pouco diferente.
Assim que subiu no ônibus, depois de sentar-se e de um bom dia, sufocado pela máscara, para quem já estava sentando próximo à janela, pôde ver melhor a placa de propaganda. Era o presidente Bolsonaro. Dessa vez não resistiu e provocou o rapaz de mochila e fone no ouvido, que pela janela também olhava o outdoor:
—Ué, propaganda do presidente? perguntou a mulher. Já estamos em campanha? Esse ano não é para prefeito?
—Tô vendo isso também. Né campanha não, senhora. É que o pessoal aí está satisfeito com Bolsonaro.
—Que engraçado. Cada doido com sua loucura.
—Eu gostei. Recebi meus R$ 600,00 direitinho, governo de respeito. Tá colocando ordem nas coisas. Bolsonaro é patriota.
—Olha menino, não tenho tempo de ler muito as notícias não, mas esses R$ 600 foram aprovados pela Câmara. Parece que Bolsonaro queria dar R$ 200. E ainda somos o 2º pior país do mundo nessa coisa toda de coronavírus.
—A senhora tá lendo muito o Globo. O dinheiro veio do governo. E pelo que sei somos o que tem mais curados. Se usássemos a cloroquina, ia está tudo resolvido. E chegou aonde chegou por causa dos Governadores. E aqui por causa desse Rafael aí, que fechou tudo.
—Eu sou enfermeira. 25 anos lá no Ferreira. Não receito remédio não. Mas pelo que ouço lá dos médicos, essa história de mais curados é por que temos muitos casos, então é natural que tenhamos mais curados. E olha, já vi um monte morrer desse troço. Não desejo a ninguém. Não é nada de gripezinha. Mas, deixa isso pra lá, eles estão ricos e a gente aqui nesse ônibus.
O rapaz voltou a colocar os dois fones de ouvido, a mulher segurou sua bolsa mais firme, o ônibus já tinha saído do ponto. Mais adiante a mulher viu outro outdoor daqueles. Olhou com mais atenção. Dessa vez, sem conversar, conseguiu ler a frase que tinha depois da hashtag: “deixeohomemtrabalhar”. Pensou até em mostrar para o menino, mas achou que não valeria a pena.
Ao descer perto do hospital, lá estava outra propaganda de rua. Pensou: “Caramba. Esse pessoal gastou foi é dinheiro com isso. Devem estar querendo que ele trabalhe mesmo”. Para mais um dia de trabalho arriscado, colocou todos os EPI´s que tinha ali disponíveis e começou a ler os prontuários. Pouco depois, uma amiga que trabalhava na limpeza se aproxima. Voltou a tocar no assunto:
Deixa eu trabalhar.
Deixa eu trabalhar.
—Ei, você viu esse monte de placa na cidade com a cara do presidente? Perguntou ainda olhando para um prontuário com suspeita de covid-19. 
—Vi. Tem um montão. Deixa o homem trabalhar!
—Pois é. Mas tem alguém impedindo?
—Tem, menina. Vi ele falar no YouTube. Parece que é uma tal de democracia.
—Ah é? Bom, sei lá o que esse povo pensa. Olha, deixa eu trabalhar.

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    Edmundo Siqueira

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