Todos os dias quando acordo, uma lembrança teimosa me vem à cabeça. De quando eu acordava lá na fazenda. Levantava cedo, por volta de quatro e meia; cinco horas já estava na cozinha. Era uma mesa de madeira, meio antiga, mas muito bonita. Minha mãe usava um avental cor de camurça, uma saia abaixo do joelho e cabelos presos por um lenço. O cheiro do café ocupava o lugar da conversa; ela estava concentrada nos seus afazeres. Eu sentava na cabeceira, cotovelos na mesa, e admiração pela destreza e dedicação amorosa recebida. Esperava o sinal. Minha mãe apertava os dedos no pano de prato, e levava à mesa uma xícara quente e dois pães com manteiga. Às vezes com queijo, feito por ela mesma. Dava-me um beijo na testa quando estava menos aflita. Sempre me perguntava se as coisas estavam prontas para a escola. Dizia que sim, estavam, mas sempre faltava algum detalhe que ia ajeitar depois, sem que ela precisasse se preocupar. Saía por volta de seis da manhã, meu pai já estava na lida com os animais e pouco o via pela manhã. A casa foi ficando com a gente depois que o dono das terras morreu.
A São Paulo que me veio, ainda adolescente, era feia, cinzenta, uma garoa romantizada que nunca senti. Claro era o oposto da fazenda, mas não era apenas isso. Eu estava diferente ali. A gente saiu achando que seria melhor, que oportunidades apareceriam — não foi bem assim. Eles não resistiram. Meu pai foi o primeiro a querer voltar, estava deprimido e não se adaptava, de jeito algum. Minha mãe ainda insistia. Não sei se era teimosia, resistência ou negação. Mas, logo voltaram. Eu fiquei. Tinha conseguido um emprego no supermercado àquela altura, e estava quase deixando o almoxarifado para ir para o caixa.
Com a pandemia, o supermercado teve que demitir. Quase 15 pessoas foram dispensadas. Outras três pediram as contas. Eu pude permanecer, mas minha promoção sonhada ficou para depois. A ameaça de contrair o vírus era uma constante no almoxarifado. Recebíamos e despachávamos produtos a todo instante. Sabe-se lá de onde vinham e como eram manipulados. Todo mundo usava máscara, mesmo que alguns a usavam no queixo.
— Acho que já peguei esse troço — falava comigo mesmo. O maior risco nem era ali no trabalho, e sim até chegar lá. Os ônibus em Heliópolis continuavam lotados, e eram dois até o serviço. Quando tinha a sorte de ir sentado, fechava meus olhos. Inevitavelmente lembrava aquele tempo. Ah, que saudade! Um dia eu volto, quem sabe? Dia desses, sentado na janela — sorte dupla, vi um outdoor ao abrir os olhos. Nele tinha um rapaz negro, de óculos de haste amadeirada, terno bem cortado, um sorriso artificialmente branco e uma frase ao lado. “Seja um empreendedor”. A noção de empreendedorismo e de meritocracia é muito difundida em São Paulo. Deve ser porque alguns progrediram, venceram na vida. Embora sejam 12 milhões de pessoas vivendo aqui na capital. Não sei se tem espaço para todo mundo entrar nessa de empreendedor. Talvez não seja possível e acho que a ideia seja essa mesmo.
Hoje é domingo, amanhã, ônibus de novo e máscaras no queixo. Ainda sonho com a mãe e aquela fumaça com cheiro de grão queimado. Não tenho conseguido juntar um dinheiro para voltar lá na fazenda. Para colocar crédito no celular está difícil. Mas tenho que agradecer, até emprego ainda tenho e não passo fome. Tem um hospital do SUS aqui perto, para quando eu pegar o vírus. Com essa falta de leito que não sei. Mas, preciso lembrar da tolerância. Preciso ser tolerante. Ouvi isso esses dias quando fui fazer uma entrega na Vila Mariana e meu colega reclamou que a vida andava difícil. “Vocês precisam ser tolerantes”. Naquele dia, antes de entrar na Fiorino, já com a mão na porta, olhei para a casa do senhor que pediu para a gente ser mais compreensivo. "Vocês" que ele disse. Mas não parecia alguém que passasse dificuldades. Deve ter seus méritos. Disseram que ela era empreendedor.