— Antão! Vi na Folha da Manhã. Maisi parece que vai diretinho lá pru Açu.— É, dizem que vai descê no aeroporto, e vai tê uma turma lá pra recebê o homi.
Os dois homens conversam em uma marquise, no centro da cidade, com o rio Paraíba, ainda mais cheio que o normal, ao fundo. O ônibus que os levaria para Santo Amaro demorava. Havia um conflito na cidade envolvendo o transporte alternativo, e as manifestações teria afetado os horários.
Era sexta-feira, e um dos homens tinha uma sacola grande, presa entre suas canelas, com as compras que havia feito. Era dia de levar biscoitos para os filhos, que aguardavam ansiosos, pois sabiam que só as sextas teriam. O outro morava só, havia perdido a esposa para o covid. Carregava uma mochila com o uniforme usado durante a semana.
— O presidente vem fazê o que aqui? Será que vai trazê vacina pra nós? — Parece que vai lançar umas obra. Vacina não, siminino. Ele não gosta não. — Oia. Bicho doido. Se Maria tivesse tomado as vacina, estaria aqui ainda. — Deus que sabe disso daí...quem te falou que vacina ia salvá ela? — O dotô que atendeu ela, ué. Eu não pude tê estudo. Quem estudou pra médico sabe. — Mais que o presidente? — Siminino, cê não lembra que ele foi pra televisão falar que era uma gripezinha? E aí o que aconteceu...morreu gente pra cabrunco. Minha Maria, inclusivi. Mas ó, eles estão com a vida ganha. Deixa esse povo lá — disse sem disfarçar a tristeza. — Melhor — disse o outro homem, que olhava o Paraíba, com os braços sobre a mureta.
Mais rápido que poderiam supor, o ônibus havia chegado. Um ajeitou a mochila nos ombros, o outro verificava os biscoitos na sacola. Embarcaram. Cumprimentaram o trocador, e encontraram um assento que podiam sentar juntos.
O coletivo não tinha conforto algum, porém, mesmo com o calor quase insuportável do janeiro na planície, o cansaço mútuo, e os buracos na via que chegavam a interromper a fala pelo impacto, os dois continuaram a conversar.
— Sabe o que acontece? É ano de eleição, não é? Aí eles fica assim, tudo doido. Disse que Bolsonaro tá caído, que não ganha não. Aí deve tá rodando tudo. Mas é muito doido aquele cabrunco. — E vamo votá em quem? Tem ninguém não... — É, tem não. Lula robou nós. Tal de Bolsonaro é doido. Vou votá no juiz. — No tal do Moro? Rapaz, esses dia vi uma entrevista com ele. Coitado. A gente tem estudo não, mas aquele rapaz sabe de nada não. Muito ruinzinho. — Parece que é mesmo. Mas pelo menos é honesto né... — Hum. Disse que os dois emprego que ele teve sem ser de juiz, foi de safadeza. Com Bolsonaro foi por que prendeu o outro que ia ganhar, aí virô ministro, e o outro numa empresa doida aí, ganhou uns milhão pra salvá as outra que ele tinha destruído. — Então tá ruim. — Tá. Tem o Ciro Gome, né. Mas ganha não. Aí vou votá nele não; num ganha, num voto. Mas dîze que não tem nada contra ele. — Vô nem votá. — Faz isso não, siminino. Aí que as coisa piora mesmo.
No caminho, um outdoor despontava na paisagem, e chamou a atenção dos dois. Trazia a foto do presidente, com mensagem de boas vindas à cidade.
— Ó lá. Tem jeito não, a turma é muito burra mesmo. — Ah rapaiz, tem um pessoal em Campos que é apaixonado por ele. Tem um com nome de empresa de ônibus que chega a babá quando fala dele. Quando vê ele ao vivo vai até chorar. Tem uns outro que fica no Feice falando que vacina num presta, xingando a justiça, os deputado... — Esse povo não pensa nas coisa? Não vê nada que tá acontecendo não? Só ir no mercado gente... — Hum. A maioria que gosta de Bolsonaro é gente com dinheiro. Acho que eles não liga pros outro não. Toma até vacina escondido, fura fila e tudo. Tem educação nenhuma, nenhuma. Estudaram, mas tem educação não.
Os dois ficaram em silêncio. O cansaço havia, enfim, superado a vontade de continuar conversando. Um dos homens se acomodou melhor, colocou a mochila encostada na janela do ônibus e repousou a cabeça. Cerrou os olhos. O outro se manteve do mesmo jeito, mexendo-se apenas pelo sacolejo do veículo. Refletia sobre a conversa e sobre a visita do presidente da República na cidade. Passado cerca de um minuto, balançava a cabeça de um lado para o outro, em sinal de negação. Disse baixo, como se apenas para si mesmo, procurando não acordar seu companheiro de viagem: