31 de março, jornalismo, 100 dias do Lula 3 e o extremismo à espreita
Edmundo Siqueira 01/04/2023 16:01 - Atualizado em 01/04/2023 16:39
No próximo dia 10 de abril, o terceiro governo de Luiz Inácio completa 100 dias. É um marco um tanto alegórico, contado assim desde que Napoleão Bonaparte voltou da ilha de Elba. Nos Estados Unidos foi usado para medir os 100 dias de Franklin D. Roosevelt, que herdara uma crise econômica severa. Pode significar também um período de carência aceitável para se perceber a real cara do governo, ou para se criticar o mesmo com menos remorso. Porém governos não são iguais, assim como não são os contextos.

Em 31 de março de 1964, um sangrento regime de exceção, que duraria 21 anos, começava no Brasil. A ditadura militar iniciava um período de perseguição, tortura e assassinatos de opositores. Não havia eleição direta, o Congresso Nacional foi fechado e a imprensa, censurada.
31 de março de 1964: Tanques na Rua Gago Coutinho, em Laranjeiras, no Rio
31 de março de 1964: Tanques na Rua Gago Coutinho, em Laranjeiras, no Rio / Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Mesmo assim, era possível ver durante o governo Bolsonaro as Forças Armadas e o Ministério da Defesa comemorarem o 31 de março. Com orientação e anuência do governo, eram lidos textos elogiosos à ditadura nos quartéis, e os canais oficiais do governo emitiam mensagens que tentavam reescrever a história. Propaganda da ditadura, em última análise.
Foi um golpe de Estado, assim como tantos outros na história do Brasil. Foi deposto um governo civil com a justificativa falsa de combate ao comunismo (movimento já inexistente em 64, imagine o leitor, na atualidade). Mas na formação dos militares a imposição da ditadura é ensinado como sendo um movimento heroico.

Não foi uma exclusividade — a comemoração do 31 de março — do governo Bolsonaro. Era uma data comumente lembrada com satisfação pelas Forças Armadas. Por pressão social, a data havia sido colocada no lixo da história em 2009, mas que seria revisitada quando a extrema-direita assumiu o poder, em 2019.
Neste 31 de março, no Lula III, a comemoração foi novamente proibida, amassada e jogada mais uma vez na latrina — seu lugar. 
Bolsonaro, enquanto deputado, posa para foto com faixa em defesa do golpe militar de 64
Bolsonaro, enquanto deputado, posa para foto com faixa em defesa do golpe militar de 64 / Foto: Reprodução
Si hay gobierno, soy contra

Na frase imortalizada por Millôr, é sabido que “jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”. A máxima é verdadeira quando pensamos na obrigatoriedade de atuar na função jornalística de forma crítica e desconfiada. É preciso lembrar que são pessoas que nos governam; gente vinda da mesma realidade social, do mesmo caldo cultural, das mesmas incoerências que o Brasil fabricou e, essencialmente, da mesma desigualdade pornográfica que temos. Portanto, são falhas e miseravelmente sujeitas a cometerem atos anti-republicanos e criminosos, eventualmente.

Então deve-se efetivamente operar em um jornalismo crítico. Sempre. Mas há contextos e contextos. Não é uma “passada de pano” que se propõe, mas sim a responsabilidade de entender que esse — o Lula III — é um governo com uma missão diferente de qualquer outro, pelo menos na Nova República.
Um governo que foi eleito por uma frente ampla que não se formou orbitando um líder popular de esquerda, como aconteceu em outros países, mas sim por uma ideia de defesa democrática. Ideia que se mostrou essencial no último 8 de janeiro, quando vândalos (terroristas?) invadiram as sedes dos poderes em Brasília propondo exatamente o mesmo de 1964: golpe de Estado.
Bolsonaristas presos no 8 de janeiro
Bolsonaristas presos no 8 de janeiro / REUTERS


O governo Bolsonaro não pode ser tratado como representante de uma visão de mundo específica que serve a (necessária) alternância de poder. A ideia central do bolsonarismo é a subversão total das bases da Constituição de 1988. “Construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor” estão no artigo 3º da CF, mas não estão na agenda da extrema-direita brasileira que tem em Bolsonaro seu maior representante. Isso sem falar na anti-ciência praticada na maior pandemia de nossa era.

O desafio de criticar Lula sem apoiar Bolsonaro

Não é possível fazer o que está sendo chamado de “falsa simetria” sem que se comprometa uma ideia de Brasil construída desde a redemocratização, desde que uma encarniçada ditadura militar foi vencida. É preciso que uma direita democrática se firme no país, e para isso uma oposição responsável precisa existir.

Não significa dizer que o jornalismo e a sociedade organizada precisem pisar em ovos. Críticas ajudam a formar um governo melhor e manter a frente ampla democrática criada. Mas é necessário que o jornalismo profissional tenha aprendido com a forma de cobertura de antes.
Combater fake news é uma obrigação, mas é preciso mais. É preciso informar que uma boa parte dos brasileiros aceita como opção de voto alguém que duvida do próprio sistema eleitoral.
Reprodução
Esse contingente de pessoas considera viver em país sem uma democracia funcional em nome de combater o mesmo fantasma ilusório de 64. Uma realidade paralela que foi alimentada por parte do jornalismo dos anos 1960 e está sendo substituída por veículos como a Jovem Pan e por um sem número de canais do YouTube e mensagens de WhatsApp.

Avaliar 100 dias de qualquer governo é um desafio, tanto por seu pouco tempo (são apenas 6,84% dos 4 anos), quanto pelo contexto que se insere. E o Lula III apresenta um desafio 100 vezes maior. Por que? Explico. O extremismo que está à espreita — que se  alimenta, também, do otimismo exagerado da esquerda e do radicalismo de parte dela que coloca como inimigo quem critica responsavelmente — já s mostrou organizado e capaz de provocar rupturas. 
31 de março deve permanecer no esgoto. 
*
O que o blog já disse sobre o assunto: 


ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]