Em 31 de março de 1964, um sangrento regime de exceção, que duraria 21 anos, começava no Brasil. A ditadura militar iniciava um período de perseguição, tortura e assassinatos de opositores. Não havia eleição direta, o Congresso Nacional foi fechado e a imprensa, censurada.
Mesmo assim, era possível ver durante o governo Bolsonaro as Forças Armadas e o Ministério da Defesa comemorarem o 31 de março. Com orientação e anuência do governo, eram lidos textos elogiosos à ditadura nos quartéis, e os canais oficiais do governo emitiam mensagens que tentavam reescrever a história. Propaganda da ditadura, em última análise.
Não foi uma exclusividade — a comemoração do 31 de março — do governo Bolsonaro. Era uma data comumente lembrada com satisfação pelas Forças Armadas. Por pressão social, a data havia sido colocada no lixo da história em 2009, mas que seria revisitada quando a extrema-direita assumiu o poder, em 2019.
Na frase imortalizada por Millôr, é sabido que “jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”. A máxima é verdadeira quando pensamos na obrigatoriedade de atuar na função jornalística de forma crítica e desconfiada. É preciso lembrar que são pessoas que nos governam; gente vinda da mesma realidade social, do mesmo caldo cultural, das mesmas incoerências que o Brasil fabricou e, essencialmente, da mesma desigualdade pornográfica que temos. Portanto, são falhas e miseravelmente sujeitas a cometerem atos anti-republicanos e criminosos, eventualmente.
Então deve-se efetivamente operar em um jornalismo crítico. Sempre. Mas há contextos e contextos. Não é uma “passada de pano” que se propõe, mas sim a responsabilidade de entender que esse — o Lula III — é um governo com uma missão diferente de qualquer outro, pelo menos na Nova República.
O governo Bolsonaro não pode ser tratado como representante de uma visão de mundo específica que serve a (necessária) alternância de poder. A ideia central do bolsonarismo é a subversão total das bases da Constituição de 1988. “Construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor” estão no artigo 3º da CF, mas não estão na agenda da extrema-direita brasileira que tem em Bolsonaro seu maior representante. Isso sem falar na anti-ciência praticada na maior pandemia de nossa era.
O desafio de criticar Lula sem apoiar Bolsonaro
Não é possível fazer o que está sendo chamado de “falsa simetria” sem que se comprometa uma ideia de Brasil construída desde a redemocratização, desde que uma encarniçada ditadura militar foi vencida. É preciso que uma direita democrática se firme no país, e para isso uma oposição responsável precisa existir.
Não significa dizer que o jornalismo e a sociedade organizada precisem pisar em ovos. Críticas ajudam a formar um governo melhor e manter a frente ampla democrática criada. Mas é necessário que o jornalismo profissional tenha aprendido com a forma de cobertura de antes.
Avaliar 100 dias de qualquer governo é um desafio, tanto por seu pouco tempo (são apenas 6,84% dos 4 anos), quanto pelo contexto que se insere. E o Lula III apresenta um desafio 100 vezes maior. Por que? Explico. O extremismo que está à espreita — que se alimenta, também, do otimismo exagerado da esquerda e do radicalismo de parte dela que coloca como inimigo quem critica responsavelmente — já s mostrou organizado e capaz de provocar rupturas.