Genivaldo, Brecht e a bacia de sangue
Edmundo Siqueira 30/05/2022 00:02 - Atualizado em 30/05/2022 09:48
Domingo, 29.mai.22, às 23h52min.
 Bertolt Brecht (1898-1956).
Bertolt Brecht (1898-1956). / Picture Alliance
Dizem-me: — Vai comendo e vai bebendo! Alegra-te
com o que tens!
Mas como hei de comer e beber, se
O que eu como é tirado a quem tem fome, e
meu copo dӇgua falta a quem tem sede?
contudo eu como e bebo.
*
Bartolomeu chegou mais cedo que de costume. Sentou-se, abriu seus livros sobre a mesa — isso, como usualmente —, apoiou os cotovelos na madeira e entrelaçou os dedos, olhando para os volumes como se os examinasse. Começou a folhear com a mão esquerda, em silêncio, uma das obras.
As suas aulas eram no auditório da universidade. Sempre completos os 150 lugares, dispostos em forma de meio-círculo, deixando a mesa do professor no centro. As aulas de literatura estavam cobiçadas depois que ele assumiu a cadeira. Sua verve era conhecida. Encantava alguns e levava outros que queriam ver o 'circo pegar fogo' em alguma discussão acalorada.
Naquele dia, os alunos ainda se acomodavam enquanto Bartolomeu cumpria seus rituais. Alguns acabaram por perceber que o professor estava tenso. Apoiou os óculos em um livro ainda fechado e apertou o nariz abaixo da sobrancelha, perto dos olhos, com o dedo médio e o polegar.
— Vocês, todos vocês, viram o que aconteceu com o Genivaldo? — perguntou, ainda com sem abrir os olhos.
Alguns balançavam a cabeça positivamente, mas apenas o silêncio respondia.
— Tenho certeza que viram — Bartolomeu finalmente se levantou. — Um homem periférico e esquizofrênico, morto asfixiado, aos berros, em uma câmara de gás improvisada numa viatura do Estado. Viram, não viram?
O silêncio persistia, quebrado apenas pelo ranger que algumas cadeiras faziam pelo reacomodar de seus ocupantes. Depois da pergunta retórica, o professor continua:
— É impossível não citarmos o Brecht diante de tamanho absurdo. Ele é o autor que iremos trabalhar nesta noite. 
— A cadela do fascismo está sempre no cio, né professor? — disse um dos alunos, rompendo o silêncio da turma, querendo mostrar que conhecia uma das citações do autor.
— Sim, está. De fato, sempre está — Bartolomeu concorda antes de fazer uma pausa longa, com olhar perdido. Mas continua.
— Essa frase talvez seja uma das mais conhecidas do Brecht. “A cadela do fascismo está sempre no cio”; autoexplicativa, acho que não me cabe, portanto, maiores explicações. Ele encarou o fascismo de frente, e talvez tenha percebido que deixaria frutos nefastos.
— O que aconteceu com Genivaldo foi um ato fascista, professor? — interrompia outro discente.
— O que aconteceu com Genivaldo foi um ato covarde, cruel, execrável, desumano e estúpido. Chamem vocês de fascismo, comunismo, nazismo... Mas, estamos na academia. Devemos entender que o fascismo foi um momento histórico específico. Claro que existem paralelos, e talvez estejamos vivendo um desses momentos. Mas o fascismo deve ser conceituado em seu contexto histórico. Jogar esse conceito em outro tempo histórico me parece um erro. Mas, entremos no autor. Deixem-me pegar aqui o texto que vamos trabalhar hoje.
Bartolomeu fez uma pausa, antes de cumprir o que prometera. Passou o olho nos rostos que o olhavam. Pensou como são tempos difíceis e ponderou, meio que por algum tipo de alívio sem razão de ser, que não era apenas no Brasil. Lembrou que manifestantes vestidos de vikings invadiram o Capitólio americano, há pouquíssimo tempo, ameaçando a democracia mais longeva do mundo e causando cinco mortes. Lembrou-se da guerra na Ucrânia, e pensou como ditaduras sanguinárias continuam sendo criadas, sem preconceito com qualquer ideologia — são impostas no extremismo, de direita ou de esquerda.
Os pensamentos eram rápidos e doloridos. De cabeça baixa, novamente com olhar perdido, recordou do caso George Floyd, também morto por asfixia por policiais norte-americanos, há exatos dois anos. Uma coincidência macabra: Floyd e Genivaldo foram assassinados em 25 de maio. Bartolomeu pensou mais um pouco e tomou uma decisão.
— Então turma, não consigo. Preciso parar por aqui; pelo menos por hoje. Estão liberados, filhos. Semana que vem retornaremos, me desculpem.
Os alunos se entreolharam, surpresos, mas já fechando os cadernos e colocando as tampas nas canetas. O professor continuava de pé, no mesmo lugar, com as mãos na cintura e olhando para baixo como se procurasse alguma coisa. Mas, quando os primeiros estudantes começaram a se levantar para sair, foram interrompidos.
— Esperem! — Bartolomeu erguia uma das mãos. Levantou o rosto, e continuou. — Antes de irem, deixo uma reflexão, e peço que retornem na semana que vem para debatermos. Dizia ele, certa vez:
“em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural; nada deve parecer impossível de mudar”.
— Sim, meus caros, sempre há esperança. É possível, apesar de embrulhar o estômago. — concluiu.
— Ainda vale a pena lutar, professor?
— Imprescindível — respondeu. — Agora vão.
Enquanto arrumava os livros, já com poucos alunos no auditório, uma moça se aproximou de Bartolomeu e o indagou sobre como ela poderia se posicionar diante de tantos absurdos. O professor terminou de esvaziar a mesa, colocou o material em uma das mãos e a outra segurou o ombro da aluna. E disse:
— Não lavando as mãos, filha. Pois se o fizer, estará fazendo em uma bacia de sangue.
 

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