O que estava se desenhando nas ruas de Paris naquele final de século, mudaria o mundo definitivamente. O resultado de toda aquela agitação, sustentada por comerciantes ricos, políticos radicais e até por pequenos camponeses, foi o início de uma revolução que está na base de todas democracias liberais da atualidade. A Revolução Francesa e a Americana (deflagrada pouco antes) ofereceram os fundamentos do que entendemos por uma República Constitucionalista.
Porém, mudanças de regime e processos revolucionários — por sua própria natureza — não são feitos de forma pacífica. É preciso que armas sejam empunhadas, e um dos lados consiga impor seus desejos, para que o outro submeta-se a eles. Sem incutir juízo de valor e sem a dualidade inocente que venha definir “bem” e “mal”, é sempre pela força que esses processos acontecem na história.
Na revolução parisiense, foi necessário criar uma milícia, chamada de “Guarda Nacional”. O grupo paramilitar cumpriria dois objetivos fundamentais: a proteção contra os possíveis excessos de uma multidão revoltada e, principalmente, conter a investidas da nobreza e de suas tropas em retomar o status do Antigo Regime. A Guarda Nacional teria necessariamente controle civil, independência das tropas reais e capacidade de reação violenta, essencialmente para controle de ameaças internas, não invasões estrangeiras.
No Brasil Império, nos anos 1830, foi criada uma Guarda Nacional com propósitos parecidos, mas que deveria proteger o status quo. À época, já éramos uma nação regida por uma Constituição, que havia sido promulgada em 1824, constituindo, portanto, uma monarquia constitucional. Essa, a que a Guarda Nacional deveria defender, com poderes de forças armadas, e pelo compromisso firmado de seus membros de sedimentar a tranquilidade e a ordem pública.
Esse novo braço armado que o Brasil estabeleceu, poderia participar todo brasileiro, entre 21 e 60 anos. Porém, era preciso possuir “direitos políticos” para tal, que eram garantidos basicamente pela condição financeira. Com essa exigência, o Império excluía qualquer possibilidade de uma participação efetivamente popular.
Na prática, consolidou-se como um instrumento político militar das classes dominantes, agindo no reforço do poder local, principalmente nas pequenas cidades, dando sustentação aramada ao coronelismo e o clientelismo da oligarquias políticas, historicamente ligadas ao latifúndio e a escravidão.
A “nova” Guarda Nacional
A Guarda Nacional, por aqui, terminou em 1918, durante a Primeira República. Foi absorvida pelo Exército. Mas o governo atual, via ministro da Justiça e Segurança Pública, deve enviar ao Congresso, ainda em fevereiro, um conjunto de propostas que está sendo chamado de “Pacote da Democracia”. Dentro dele, segue uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende recriar a Guarda Nacional.
O Palácio do Planalto, sede da Presidência da República, é protegido não apenas pela Polícia Militar do DF. A missão é compartilhada com o Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), também conhecido como Batalhão Duque de Caxias. Diferente da proposta da Guarda Nacional que o governo prepara, o BGP é uma unidade pertencente ao Exército, que conta com cinco Companhias de Infantaria de Guarda, cada uma com aproximadamente 200 soldados. Um trecho da música desse batalhão ressalta que “desde o império” ele representa uma “sentinela imortal”.
Durante a invasão de 8 de janeiro, o BGP não cumpriu sua atribuição primeira — fato inédito em sua longa história. Não havia efetivos para proteger o Palácio do Planalto, e apenas uma parte do batalhão foi acionada, mesmo assim depois que as sedes dos três poderes já haviam sido tomadas.
O cenário devastador de 8 de janeiro afetou ainda mais a confiança que governo e sociedade depositam nas Forças Armadas. Em um país que já sofreu golpes e viveu uma ditadura militar sangrenta por mais de 20 anos, a descrença de que o alto comando militar esteja definitivamente alinhado à preceitos democráticos é justificável.
A história — e os acontecimentos recentes — justificam a criação de uma Guarda Nacional, que não esteja subordinada ao Exército e que atue a favor da democracia. Porém, há amparo constitucional na Carta de 1988? A criação de outro braço armado resolve o abalo de confiança? A democracia brasileira depende de aparatos paramilitares para sobreviver?
A proposta de criação de uma nova Guarda Nacional está longe de ser um consenso, mesmo entre os membros do governo. Desperdício de dinheiro público, anacronismo e aumento desnecessário da tensão com o Exército estão entre os argumentos mais utilizados para impedir que a ideia prospere.
Com ou sem Guarda Nacional, a necessidade premente de uma discussão jurídica e social aprofundada em relação ao papel das Forças Armadas, continua. Quebrar o monopólio das armas não impedirá que os militares continuem a ambicionar o poder ou a cometerem insubordinações.
Militar da ativa não participa da vida política — essa é a regra nas democracias. Braços armados não podem interferir nas decisões políticas e costumeiras do país, pois quando o fazem, a balança de forças fica fatalmente desequilibrada. As Forças Armadas subordinam-se ao poder civil em um regime democrático por força constitucional, e é ela, a Constituição, que rege as relações e está acima dos poderes constituídos.
Um dos artigos da Carta Magna, o art. 142, é constantemente utilizado por golpistas numa tentativa de dar contornos legais ao intento. Porém, o legislador constitucional não previa no texto do artigo em permitir que o Exército atue como um poder moderador — vale lembrar que a última Constituição do Brasil foi escrita no pós-ditadura militar, em um processo de reabertura democrática.
Diz o art. 142: “As Forças Armadas (...) são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
A “garantia da lei e da ordem” proposta pelo legislador não confere ao artigo poderes de intervir na democracia. Até mesmo pela regulamentação que sofreu em legislação complementar no governo Fernando Henrique Cardoso. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) é a única instituição que tem a missão de interpretar — e guardar — a Constituição, não cabendo, portanto, às Forças Armadas esse papel.
Embora tenha supremacia sobre à República, a Constituição é um ordenamento jurídico criado por determinações humanas, e como tal não são imutáveis, tampouco possuem o condão de paralisar o tempo e as mudanças na sociedade que ela mesma ampara. O papel da Constituição não é a eliminação de conflitos, mesmo entre os poderes. A real função da Lei Maior é dirimir os inevitáveis conflitos através de princípios norteadores — esses imutáveis enquanto pactuados.