Guimarães escreveu um romance regionalista, em um momento de intenso movimento abolicionista no Brasil. Campos era a cidade perfeita para a ficção ganhar ares de realidade. O escritor chamou o município de “fértil e opulento”, o localizando, não por acaso, “à margem do Paraíba”. Era uma das principais regiões do império português quando se instalou em terra brasilis — uma enorme planície com solo rico, rodeada de água e perto do porto do Rio de Janeiro, que se consolidou como grande produtora de cana-de-açúcar.
A opulência traria casarões e urbanidade para Campos, e uma economia baseada na exploração de pessoas escravizadas. A ideia da abolição foi atacada pela maioria dos senhores e comendadores da época com muita veemência; queriam uma contrapartida para aceitar perder a mão de obra gratuita. Em um desses casarões teria nascido a escrava Isaura, a mesma que o caseiro vê na janela do Solar que vigia.
No Solar dos Airizes — hoje à margem da BR 356 — teria inspirado Bernardo Guimarães como sendo o local em que Isaura havia nascido. Embora o escritor não dê nome ao local, o descreve: “edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas cobertas de mata em parte devastada pelo machado do lavrador”. Não fosse pelas "elevadas colinas”, o Airizes estaria perfeitamente encaixado. Guimarães continua:
“Em torno da deliciosa vivenda, a mão do homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e pomares deleitosos, em gramais e pingues pastagens, sombreadas aqui e acolá por gameleiras gigantescas, perobas, cedros e copaíbas, que atestavam o vigor da antiga floresta” — o Comendador Claudio do Couto e Souza foi o maior exportador de madeira de Campos, essa plantada nas terras do Solar dos Airizes.
“Quase não se via aí muro, cerca, nem valado; jardim, horta, pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos (...) os fundos eram ocupados por outros edifícios acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por trás dos quais se estendia o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia perder-se na barranca do grande rio” — o Airizes termina suas terras nos barrancos do rio Paraíba.
O caseiro do Solar pode não ver a escrava de “cor clara e tez delicada boca pequena, rosada e bem feita”, como descreveu Guimarães, mas caso fosse ele mesmo sensitivo pode ter visto vultos dos que moraram por lá, inclusive sendo de pessoas escravizadas, que pela violência que viveram não conseguiram seguir para outros planos.
A trama de Bernardo Guimarães foi adquirida pela Rede Globo e se tornou uma novela. A obra televisiva ganhou o mundo e é considerada umas das mais vistas já produzidas. Pela ambiência em Campos dos Goytacazes — o município que seria o Solar é nomeado e definido pelo escritor —, naturalmente a equipe da primeira e da segunda edição do folhetim precisaram conhecer a cidade, se inteirar de suas idiossincrasias e olhar de perto o Solar dos Airizes.
A ficção criada pelo escritor não pode ser considerada fantástica — não no sentido de fantasia, devaneio. A proximidade da trama com a realidade dos fatos, tanto no romance, como na telenovela “A Escrava Isaura”, torna-se um retrato fiel do Brasil escravista e dos comendadores campistas. Descrita como bela, uma “boa figura”, que trajava-se com “gosto e elegância”, tocava piano e cantava com perfeição e que “teve excelente educação”, Isaura foi descrita como alguém que poderia se passar por “uma senhora livre e de boa sociedade”.
Embora o Solar dos Airizes esteja em péssimas condições hoje — pelo desleixo da família que o herdou e dos governos “modernos” que administraram Campos e seus patrimônios históricos —, em nada lembrando o “edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso”, o mesmo preconceito continua vivo e lustrado, em décadas de enraizamento na sociedade.
Pode perfeitamente o Solar dos Airizes ser mesmo o trazido pelo romance de Bernardo Guimarães. As “colinas” e outras diferenças, meros artifícios narrativos, ou propositalmente colocados para descartar a inspiração direta — há mais semelhanças que diferenças.
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