Perto dela, um senhor de uns 60 anos parecia não se preocupar com o transporte público. Olhava para a tela do celular e balançava a cabeça negativamente. Estava sentado no banco de aço debaixo da cobertura. Virgínia estava de pé, de braços cruzados, bolsa a tiracolo. Mexia uma das pernas demonstrando impaciência. Corte black power, salto alto e óculos escuros.
Percebendo que o ônibus ia mesmo demorar, decide sentar-se ao lado do senhor, que por sua vez não resiste à companhia e puxa conversa.
— Quente hoje, né?
— Tá sim. — Virgínia não pretendia estender, tentou ser monossilábica.
— Seu ônibus não veio? Vi que você estava meio impaciente.
— Está demorando hoje. E o do senhor?
— Ah não, estou esperando um Uber. Já cancelaram duas corridas aqui, mas acho que vem agora. Vamos ver. Me chamo Felício. E você?
— Virgínia.
Felício era um homem branco, vestia camisa da seleção brasileira, bermuda cáqui e sapatênis. Mesmo à luz do dia, Virgínia estava desconfortável com as perguntas, não sabia qual a real intenção. Além disso, pelo jeitão e pela vestimenta, Virgínia pensou que o homem poderia ter uma opinião política muito diferente da dela, o que ela não via problema, mas eram tempos difíceis, de muita radicalidade e ódio.
— Não vou te perturbar mais, Virgínia. Fica tranquila.
— Não está perturbando senhor. Felício, né? É que estou com pressa e esse ônibus nunca que vem.
— E ainda temos que olhar para esse valão aí, cheio de cocô.
— É o Campos-Macaé, o segundo maior canal artificial do mundo, sabia? Está mal cuidado, mas é muito simbólico, até por ter sido construído por mãos escravizadas, uma história que precisa ser contada.
Virgínia havia se formado em História recentemente.
— Eu chamo de valão mesmo. É feio e fedido. E esse negócio de ser construído por escravos, acho que não foi não. O pessoal era contratado.
— Isso não condiz com a realidade, Felício.
— Daqui a pouco você vai falar que é ciência né? Você parece ser uma moça inteligente, cai nessa de ciência não. Vi um vídeo no YouTube, um canal paralelo que eu sigo, que conta história como ela foi. Muita coisa está errada nos livros.
— São registros documentais, senhor — Virgínia já havia se arrependido de continuar a conversa. — Mas tudo bem, é uma opinião sua.
— Viu o debate ontem?
— Me desculpe, mas não quero falar desse assunto agora não.
— Você votou no Lula, né?
— Não entendi. Já supôs meu voto?
— Ah, você parece eleitora do Lula.
— Por que sou preta?
— Não, não disse isso. Porque é muito moderninha.
— Olha só, melhor a gente parar antes que o senhor fale algo que vá se arrepender. Mas para acalmar sua curiosidade preconceituosa, eu votei na Simone Tebet.
— Calma, menina! Tudo bem, não falo mais. Mas parabéns, não votou no nove dedos. No segundo turno vamos aposentar ele.
— Não voto em Bolsonaro, senhor. Ele representa o que há de pior na política, e é um risco enorme à democracia.
— Vocês e essa história de democracia. Isso nem existe direito. Antidemocrático é o STF que impediu o presidente de combater a pandemia.
— Não, Felício. Seguiram a Constituição. Os estados e os municípios também deveriam ser responsáveis pelo controle da pandemia. Foi só isso que o STF determinou. E aliás, se fosse seguido o que o presidente queria, todo mundo aglomerando, morreria muito mais gente.
— Que nada! Bolsonaro foi corajoso, isso sim. Nenhum outro governante no mundo falava o que ele falava.
— Pois é…
— Ele é o único certo no mundo.
— O senhor tomou cloroquina demais.
— E você, não? Tomou a ‘vachina’ né?
— Claro, quando teve, né? Depois do atraso proposital do presidente.
— Eu tomo cloroquina ainda, todo dia, e não tive nada.
— Eu tomei suco de graviola.
— Mas isso não tem relação nenhuma com o vírus.
— Exatamente. Esse é meu ponto.
A conversa começou a ficar tensa, Virgínia percebeu que não haveria qualquer entendimento. Felício estava preso a uma bolha de desinformação, mas lá ele era aceito, suas crenças eram confirmadas e era onde se sentia parte de uma missão, de um objetivo maior. Ele não estava de camisa da seleção; estava de uniforme. Virgínia não representava alguém com quem dialogar; era a personificação de um inimigo.
Ela se lembrou que alguns de seus amigos estavam também presos a uma bolha ideológica, de outra coloração. Por lá acreditam numa revolução com bases igualitárias utópicas, e se reuniam em apartamentos no Leblon, distantes do mundo real, e traçavam planos para uma nova sociedade. Essa, ainda mais utópica.
Então olhou para Felício, que procurava alguma coisa no celular, e percebeu que ele era mais vítima do que a origem do mal. Ele estava apenas sendo enganado. Por mais que uma de suas autoras preferidas tenha dito que não se pode banalizar o mal, ela percebeu ali naquela conversa que não há muito o que fazer. “A cadela do fascismo estará sempre no cio”, pensou.
Mas ainda olhando para Felício viu que isso está distante, infelizmente.
— Olha lá! Finalmente está vindo meu ônibus. Vou precisar ir, mas gostei de conversar com o senhor, apesar de discordarmos em quase tudo. Fica bem, tá?
— Também gostei. Quem sabe a gente não passe a concordar depois dessas eleições?
— Ih, Felício. Sei não, acho difícil. Mas podemos e devemos conversar. Isso eu sei. Para podermos convergir em algo. Agora deixo o senhor aí com esse belo Ipê amarelo, na nossa frente — Tchau! — disse Virgínia, já de pé, acenando para o ônibus.
Algum tempo depois, o Uber de Felício chegou. Já dentro do carro, o motorista de aplicativo comenta sobre o Ipê:
— Bonita essa árvore, né?
— É. Mas faz uma sujeirada danada.