Tchutchuca não!
Edmundo Siqueira 19/08/2022 21:42 - Atualizado em 19/08/2022 21:47
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Sexta-feira, depois do expediente.
— E aí, viu a última do seu presidente? — perguntou Lídia, enquanto abria o armário onde estava sua bolsa, na sala de descompressão do hospital.
— Não, qual? — respondeu Marcelo, ainda de jaleco, no sofá, com o celular nas maões, sem levantar os olhos.
— Como qual? A do tchutchuca, no cercadinho ontem, um youtuber...
— Ah sim. Aquele cara é petista — interrompeu Marcelo.
Lídia e Marcelo são amigos de longa data. Ela recém-formada em medicina; ele terminando a residência em ortopedia. Foram trabalhar no mesmo hospital público da cidade. Não raro, se encontravam na sala de descanso dos médicos. Apesar de discordarem em muitas coisas, mantinham a amizade.
— Como assim, Marcelo? O cara é ex-militar, frequentador do cercadinho, não tem ligação nenhuma com o PT. Ah, e ainda chamou o Lula de ladrão no vídeo.
— Ué, e não é ladrão, não?
— Pode até ser, mas estamos falando de outra coisa. Você achou o que da truculência do presidente?
O vídeo em questão foi gravado de próprio punho pelo youtuber e influencer Wilker Leão, em uma confusão no "cercadinho" do Palácio do Planalto, em Brasília. Leão chamou Bolsonaro de “tchutchuca do centrão”, "safado", "covarde" e "vagabundo".
Antes de responder a Lídia, Marcelo fez uma pausa.
Deixou o celular de lado, cruzou as pernas e olhou para ela. Lembrou, com uma ligeira imagem mental, do vídeo que tinha assistido. Principalmente do momento que um rapaz de cavanhaque e camisa de time era puxado pelo colarinho pelo presidente da república, que tentava tomar o celular a força.
— Quer saber? Achei certo. Bolsonaro não leva desaforo para casa. É macho. O cara o ofendeu. Queria o quê?
— Mas ué, não são vocês que defendem tanto a liberdade de expressão?
— Lídia, olha só. Você está confundindo as coisas.
— Eu que estou? Só vale liberdade quando vem de gente que vocês concordam? Mesmo sendo qualquer absurdo, tipo aquele deputado careca, fortão, que foi preso por ameaçar ministros do Supremo?
— O Daniel Silveira? Prender ele foi um absurdo.
— Esse mesmo. Então ele pode ter liberdade de expressão, o rapaz do vídeo não?
Marcelo deixa o celular novamente. 
— Sabia que desacato é crime?
— Ah enfim entendeu. A liberdade termina no crime. Era isso que sempre tentei que você entendesse.
Lídia fazia o gesto de uma prece. 
— Ah peraí, não é assim não. O cara chamando o presidente de tchutchuca...
— Tchutchuca do centrão — Lídia não conseguiu disfarçar um sorriso.
— Vou discutir com você não — Marcelo voltou a olhar para o celular, e escrevia no WhatsApp.
Reprodução
Lídia enfim fecha o armário, coloca a bolsa em um dos ombros, e junta os cabelos com as mãos, para prender com um elástico que estava preso entre seus dentes. Pensava o porquê que o amigo se incomodou tanto com o termo “tchutchuca”. Recordou-se de um episódio de 2019, quando um deputado chamou o ministro da Economia, Paulo Guedes, de “tigrão com os aposentados” e de “tchutchuca com a turma mais privilegiada do país", e como Guedes havia reagido mal.

“Tchutchuca” vem do funk. Em geral é um apelido dado a uma menina para chamá-la de bonita, como uma forma de dizer que ela é atraente. A expressão ganhou outros significados, mas sempre relacionado à ideia de submissão feminina, de controle, com cunho sexual.
— Também não quero discutir, Marcelo. Hoje é sexta, tô cansada pra caramba. Mas só uma última coisa. — disse Lídia, virando-se para Marcelo, já com uma das mãos na porta — Por que chamar de tchutchuca ofende tanto vocês? É masculinidade frágil?
— Para com esse mimimi feminista. Tem nada disso. O cara ofendeu a honra do presidente. Esse negócio de Centrão...aquela cambada.
— Mas Bolsonaro sempre foi dessa “cambada”, Marcelo. Ele é cria do Centrão, e esses dias até assumiu isso publicamente.
— O cara é contra o sistema, Lídia. Luta contra isso daí. Só porque era do baixo clero vocês acham que ele era do Centrão, que está aliado do Centrão — Marcelo falava em tom mais comedido, ainda olhando para o celular, fingindo ler uma mensagem.
— E o orçamento secreto, Marcelo? O governo está nas mãos do Lira, essa emenda kamikaze, às vésperas das eleições, evidentemente inconstitucional e todo o fisiologismo. Como que Bolsonaro não é do Centrão?
— Fake news.
— Tá bom, Marcelo — Lídia falava já do lado de fora da sala, com a porta entreaberta — Deixa eu ir. Até mais.
A porta se fecha. Marcelo põe o celular no sofá novamente, coloca o cotovelo esquerdo na guarda, e segura o queixo. Olhando para o vazio, fala baixo, para si mesmo:
— Tá, do Centrão pode até ser. Mas tchutchuca, não.
Agência Brasil

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