Ronaldo Junior - Por que a Semana não terminou?
Matheus Berriel - Atualizado em 09/05/2022 19:02
Um movimento artístico, ao contrastar com o anterior, causa estranhamento, repulsa e até comentários raivosos de quem não aceita as tendências estéticas e os valores sociais de determinado recorte temporal.
Com a Semana de 22 não foi diferente, existindo apoiadores, odiadores — ou haters, no estrangeirismo forçado das redes sociais — e também aqueles que sequer compreendiam o que estavam presenciando, diante de um movimento explicitamente elitista e voltado para os principais centros urbanos do país.
Tais características ficam demonstradas a partir da demorada disseminação do modernismo pelo interior do Brasil, sendo seu impacto notado sobretudo nas capitais de alguns estados, onde publicações e informações chegavam mais rapidamente.
Campos, por exemplo, só teve seu marco modernista em 1954, capitaneado por nomes como Mário Newton Filho, Genaro de Vasconcelos, Vilmar Rangel e Oswaldo Martins, num periódico publicado sob o título “Horizonte 22”, que contou com seis edições ilustradas. A revista era organizada pelo Clube de Poesia de Campos, fundado em março daquele ano enquanto associação de poetas que compartilhavam de ideais próximos.
Como diz a apresentação do primeiro volume da revista “Horizonte 22”, escrita por Genaro, “assim lembramos o movimento renovador da Semana de Arte Moderna e procuramos honrar todos aquêles que, em terras do Brasil, buscaram, na primeira fase do Modernismo, novos caminhos para a Poesia e a Estética.”
Tal renovação estética encontrou dificuldades entre os artistas campistas, o que fica claro com a publicação da revista “Paralelo 38” — lançada ainda no ano de 1954 para fazer frente ao movimento de vanguarda representado pela revista “Horizonte 22” —, com vertente explicitamente passadista, para usar um termo com que os modernistas se referiam a movimentos anteriores. Nessa revista, que contou com um único volume, apareceram nomes como Pedro Batista Manhães, Gercy Pinheiro e Pedro Caputti.
Tal resistência às novas tendências, claro, tem como função zelar pela tradição literária anterior, mas também funciona como uma barreira que chega a dificultar o surgimento de movimentos de vanguarda no município ainda nos dias atuais — quando, em diversos lugares, já se fala em “pós-modernismo”, em nítida contradição com tais entraves existentes ainda hoje.
Tanto é que textos com padrões métricos, rímicos e formas fixas ainda preponderam na expressão literária local, em criações voltadas para a trova e para o soneto, em poemas quase invariavelmente colocados em forminhas fechadas, bem quadradinhas. A questão, porém, vai muito além das formas e dos recursos poéticos: é perceptível, ao olharmos para grupos de escritores institucionalizados, o passadismo temático, espiritual, a negação completa das novas vertentes e até a negação dos movimentos que se apresentam como livres e inovadores.
Diante disso, ao meu ver, Campos é um exemplo entre inúmeros outros municípios brasileiros que aparentam não ter rompido com tendências passadistas, não tendo sido factualmente alcançados pelo modernismo em suas tantas fases.
Como eu disse acima, esse é um olhar voltado para as instituições campistas — como as academias de letras e outras uniões de escritores, que concentram apenas uma ou outra voz que representa a vanguarda literária —, mas é preciso, sim, dizer que existe um movimento individual considerável no sentido de romper com o academicismo e com a escrita que se prende em conceituações e regularidades formais dentro do município de Campos.
O fato de esse movimento ser individualista — ou por esses escritores não encontrarem representação nas instituições ou por se alimentarem do sentimento exclusivista dos nossos tempos — prejudica a construção de um panorama artístico geral, uma vez que as tantas vozes que representam o modernismo campista se encontram dispersas, espalhadas em publicações individuais que muitas vezes sequer chegam a se apresentar em eventos literários locais e nem sempre aparecem na mídia do município, considerando o fato de estarem dissipadas.
Trata-se, pois, de uma contradição curiosa: uma associação poética — o Clube de Poesia de Campos — fez surgir o modernismo campista, e a barreira que se encontra nos dias atuais é justamente a desassociação de tais poetas vanguardistas. A lacuna, talvez, reside na necessidade de termos uma Semana de Arte Moderna própria, para concentrar tais artistas e fazer com que todos pensem e critiquem e criem com base na estética de seu tempo. Como questionou meu caro amigo Carlos Augusto Alencar, não seria o Festival Doces Palavras (FDP!) a Semana de Arte Moderna campista? Vale a reflexão.
A referida desassociação gera o fortalecimento, em compensação, de associações que, por tradição, acabam por prezar mais pelo passadismo do que pela vanguarda. E as vozes modernas de Campos se perdem pela dispersão, reclusas e individuais que são. Por outro lado, isso também gera uma dificuldade de aceitação social da arte moderna, já que os autores nem sempre encontram leitores que apreciem a beleza de sua imperfeição formal ou de sua liberdade criativa, já que o “mais bonito” é o mais certinho, é o simétrico, o rimado.
A questão que incomoda é o fato de, ainda hoje, haver tanta relutância em aceitar e valorizar determinados movimentos artísticos. Tanto que acredito que Anita Malfatti, se pintasse nos nossos dias, veria muitos narizes torcidos para seus homens amarelos, e que Mário de Andrade talvez sequer conseguisse encontrar uma editora que aceitasse publicar “Macunaíma”. Manuel Bandeira, coitado, talvez só conseguisse ter seu poema “Os sapos” recitado em encontros íntimos com poucos amigos. Tudo isso sob a crítica raivosa de inúmeros Monteiros Lobatos conservadores — que se proliferam em qualquer tempo.
Isso faz com que o modernismo, no meu entender, se apresente em ciclos que mesclam o passadismo com nuances de vanguarda — muitas vezes tímida — no panorama do que se publica contemporaneamente, não havendo, pelo menos em Campos, um período a partir do qual podemos dizer que entrou em vigor o modernismo na literatura.
Há que se considerar, porém, que todo movimento carrega traços do passado consigo, de modo que o modernismo funciona como uma gama de expressões que mesclam, por exemplo, os versos livres e brancos de Manuel Bandeira com os sonetos rimados de Vinicius de Moraes, sendo cabível a liberdade expressiva e criativa que dá margem a formas fixas ou não — pois vai muito além disso, tendo a ver com a plena liberdade de expressão literária.
A questão, talvez, pode ser resumida no espírito com que as criações são concebidas, pois é nítida a diferença entre romper e compactuar com determinado estilo pelo tema e pelas ideias debatidas em um texto, não havendo espaço para o sentimento que se fecha na contagem de sílabas métricas e deixa de libertar-se pela sonoridade vocabular por não concordar com o significado denotativo de uma palavra — com esses ideais, comecei a escrever poesia, tendo “Poética”, de Manuel Bandeira, como lema da minha criação desde então.
Para fins de conclusão — deste debate inconcluível —, digo que, enquanto os escritores não experimentarem a inquietação livre de Ferreira Gullar — que, em “A luta corporal” (1954), chegou a romper com a simples formação das palavras na escrita do poema — e se mantiverem sob a mesmice pacífica das formas perfeitas, a Semana não terá acabado, mesmo cem anos depois.

*Texto publicado no dia 19 de fevereiro de 2022 no blog Extravio, hospedado no portal Folha1, com publicações autorais semanais, sempre aos sábados.
**Ronaldo Junior nasceu em março de 1996 no Rio de Janeiro. É bacharel em Direito e estudante de Letras – Português e Literaturas. Ocupa a cadeira nº 7 da Academia Campista de Letras, patronímica de Eloy Ornelas. É, também, membro da Academia Pedralva Letras e Artes e de outras instituições culturais. Site: www.ronaldojuniorescritor.com.

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